domingo, 23 de setembro de 2018

Vultos

     A mulher no corredor foi apenas a segunda mulher que amei. Às vezes os insanos me pedem para explicar... Como se cheiros, sensações e impressões pudessem mesmo ser resumidas. Não podem. Quiçá poderão ser descritas? Não, não podem. Defini-la ou definir-me no meu estado de torpor é apenas um jeito inédito de perder tempo, mas se o tempo também é meu, desperdiço-o como quiser. Se acaso sugerir que as estrelas falam, você acreditaria em mim? Há quem diga que estourar plástico bolha é relaxante, mas você seria capaz de convencer alguém disso? Explicado este fato, apresento aqui, na medida do possível, todas as verdades quais eu pude absorver em um momento de epifania. Contarei de como ela foi capaz de me fazer suprir a ausência que sinto de mim mesmo. Minha própria maneira de estourar bolhas. Falar sobre a segunda mulher que amei seria impossível até mesmo para Tom Cruise, mas amá-la, por outro lado, é uma missão acessível até mesmo para Robinson Crusoe. Ressalto, porém, antes do inevitável sobressalto: não pergunte quem ela é.
     Você vai pensar que eu enlouqueci, eu sei, mas confesso que, na verdade, foi pelo vulto dela que me apaixonei. Cada dia seu andar tinha uma postura diferente e eu? Abarcava tudo o que podia enquanto me enchia por meros lampejos de felicidade adolescente. Não, os vultos nunca mentem e minha animosidade jamais arrefecia quando se deparava com eles. Respirava fundo, acelerava meus passos, ansioso para tornar a imaginação em figura. Quando o rosto finalmente era revelado, aquela velha sensação se quebrava e me dominava a amargura. Um conselho fossilizado ressoa na consciência: nem mesmo a ilusão perdura. Retiro meu chapéu invisível e faço uma mesura. A mulher passa e no corredor do hotel a luz fraca revela sua pálida brancura. Deve ter pensado que eu estava embriagado. Sorrio e insinuo minhas desculpas. “Eu te confundi ainda agora com alguém. Perdão, senhorita. Boa janta e fique bem. Não sou quem você procura”. Esta era simpática e recompôs sua postura. Estava de calça de couro, mas imitou uma antiga dama. A delicadeza dos movimentos numa pintura. Toda mulher sabe como tratar quem do jeito certo a ama. Compreendem melhor que os homens que nem tudo que é belo perdura.
     A rotina de uma semana gira em loop em minha cabeça. Vou narrar um pouco desta aventura, antes que eu me esqueça. Os dias parecem iguais, mas são sutilmente diferentes. O segredo para se adaptar é acreditar que nada é permanente – nem mesmo o que se passa no coração inocente. Descia mais cedo que todos – todos os dias. Gosto da minha particularidade nos cafés da manhã, mesmo entre os desconhecidos novos colegas. Todo mundo merece ser aplaudido de pé ao menos uma vez na vida? Auggie tem razão, mas tenho minha própria opinião e vou dizê-la. Pois bem, acredito que todos mereçam uma semana de café da manhã reforçado em uma boa rede de hotelaria. Cheguei junto dos velhos enrugados e narigudos; mal vejo a hora de ser um deles. No metodismo nos equiparamos: minhas refeições são sempre iguais: café, ovos, lingüiça, bolo de laranja, bolo formigueiro e um croissant. É preciso homenagear os franceses de quando em quando. Os velhos parecem retratos nas paredes, incorrigivelmente repetitivos em suas posturas curvadas e tortas, mas uma criança chuta a porta de uma reluzente Mercedes e aparentemente ninguém se importa. O garoto desafia a observação dos poetas: a constatação é que todo pequeno nasce asceta. Ignoro o menino, mas não recuso o aprendizado. Só pais de comportamento viperino criam um garoto tão mimado.
     Subo para o meu quarto. Peguei uma maçã para comer mais tarde. Percorro o corredor enquanto finjo que sou um arremessador, mas subitamente paro. Uma mulher vem andando distraidamente. Conheço-a pelo faro. É mais sonhadora que eu... Seu vulto parece com a alma do universo. Quando seu rosto se revela, ela me lança uma estranha olhadela e pergunta do que eu preciso. A pergunta vaga me faz viajar, mas observo atento que ela não tem a magia que procuro no olhar. Deixo escapar um largo sorriso. “Obrigado, mas você não é quem estou a procurar”. Afinal, eu havia enxergado errado. O universo não estava ali. No dia seguinte o vulto da mulher se aproximou com pressa. O jeito de andar exalta que ela é alguém que só baixa os olhos para o que a interessa. Os passos barulhentos do salto alto pisam em qualquer encanto ou feitiço ancestral. De que adianta procurar em um robô, qualquer resquício da inocente vestal? Eu teria interesse nesse tipo de mulher, afinal? Seria mais fácil se eu estivesse procurando alguém de verdade.
     Tudo isso aconteceu em apenas uma semana. Eu me encantei com os diferentes formatos de imaginação reproduzidos no corredor. Juro que falo a verdade, embora não necessite do consentimento de vocês. O pragmatismo estava me matando e a sensação crescente de tumulto me fazia sentir vontade de sair correndo até me cansar. Consolei-me ao ler diários de homens e mulheres jamais compreendidos. Seria bom ter alguém para abraçar hoje ou apenas alguém para me ouvir falar debilmente sobre meus livros favoritos, mas tudo bem. Seria bom planejar o roteiro da viagem ao Japão, mas tudo bem. Seria bom sonhar que meus livros podem mudar o mundo e encontrar convicção em um olhar gentil e astuto. Eu diria Geffenia e você iria entender. Há sorrisos tão preciosos que, ainda que os veja uma vez a cada dois anos, enchem-me o coração de recordações luminosas. Conforto-me com as lembranças de uma felicidade pueril que talvez eu jamais possa recuperar. Faço perguntas e não confiro as respostas. Quero que digam, mas nem sempre quero saber. Transtorno pessoal, normal, quem liga para o que vai acontecer?
     Talvez tenha apelidado uma Gabriela de Ana, uma Isabela de Júlia e uma Beatriz de Michele, mas unicamente pelo pretexto de que não sabia seus nomes e honestamente nem queria saber. Desculpe se pensei nestes nomes de maneira errônea. Não esquecer é uma regra do meu coração. Quando digo os nomes em sussurros secretos, sinto-me um andarilho discreto, hábil em disfarçar minha solidão. Seria incrível não estar sozinho esta noite, mas tudo que eu possuo são espaços calculados para abrigar minha tristeza. Contemplativo, percorro minha vida desde o momento em que minhas memórias são exatas e precisas. Basta de imaginação. Preciso arrumar o rumo de minha vida, reflito quando me surpreendo com o tardar da hora. Entro em luto após mais uma despedida. Quem eu fui um dia está morto agora.
     Terei de fazer um breve resumo sobre as últimas situações, pois não sou suficientemente hábil ou talentoso para prender pessoas livres aqui por um período longo. A sombra da quarta mulher me deslumbrou; a da quinta me ofendeu; a da sexta me paralisou e a com a da sétima, eu chorei. Todas as mulheres possuíam diferentes aparências e essências, mas seus vultos eram quase idênticos. Deslumbrantes e capazes de tudo. Não me assustavam, mas me deixavam extasiado. Não havia façanhas impossíveis para elas. Enfim, agora chegava o momento de me despedir daqueles corredores escuros quais diversos vultos me desafiavam ao amor. Orgulhoso, aceitei o desafio, ainda que incerto sobre meus atos. Amei tantas sombras desconhecidas, ainda que ninguém tenha visto de fato. Às vezes é uma maldição ser alguém com pouco tato. Ainda que a alma seja nobre, eles te insultarão por ser miseravelmente pobre... Vil sonhador barato.
     Despedi-me do hotel e com a partida me despi de uma semana de solidão. No aeroporto carreguei o segredo da vida. Todos que entravam em contato comigo, presenteavam-me com diversos sorrisos e secretas orações. Suponho que por algumas horas, eu mesmo tivesse olhos mágicos. No Mc, uma mulher de verdade, muito mais que um vulto, tirou os sapatos para apoiar os pés no sofá. Cem mil vezes mais que uma sombra. A sua atitude demonstrava personalidade. Na pressa de retornar à minha cidade e no desespero de amar alguém que fosse mais que um mero vulto, eu me contentei em admirá-la discretamente. As mulheres já sofrem o bastante para terem de lidar com os curiosos e intrometidos. Ela estava relaxada e eu não queria estragar isso. Além do mais, eu ansiava mesmo em retornar à minha cidade. Decidi seguir o meu percurso. A vida se acelera e os minutos passam mais rápido. Logo será o dia das bruxas, o dia dos mortos e o dia do natal. Logo quem nasceu em 1989 terá 30 anos e os de 1992 pensarão que são velhos arrelientos. Logo tudo vai mudar e todos os momentos bons de agora vão se perder em um buraco negro. Terá de reaprender a ser feliz com uma vida completamente nova, que hoje o enche de medo. Sento-me vagarosamente no assento 17D. Sinto um estremecimento acompanhado pela pesada vibração do avião. Este pássaro de metal corta o vento enquanto devaneio sobre novos roteiros de ficção. Amanhã é sábado e depois é domingo e depois outubro. A vida passa e não encontro um sentido para tudo o que eu faço. Isso me relaxa... Às vezes é melhor não ser tão cheio de si. Observo pela janela as luzes das cidades durante o caminho. Penso nas pessoas que amo e nos desconhecidos que quero amar. É a sina de quem é assim tão sozinho...
     Dou nome a todas as coisas, exceto à segunda mulher que amei. Não sei dizer se foi engano, mas o amor não segue qualquer plano. Digo com segurança que ainda prefiro amar, ainda que o objeto de tanto amor seja uma ilusão. Não há vergonha em não ser completamente são. Quem sabe um dia, eu possa ser sólido e capaz de voar; ao mesmo tempo conseguir agüentar; raramente oscilar... Como faz todo e qualquer avião. Ah, mas é incrível o que se observa quando sobrevoa uma estrada qual costumava percorrer andando ou dirigindo. Sob novas perspectivas você conclui que o mundo é lindo. Quando menos se espera a gente se pega sonhando e sorrindo. Pensando em todos os amigos e amores ou em como nossas vidas são fugazes; em refeições maravilhosas ou bebidas quentes compartilhadas com amigos em bares; em dragões, furacões, verões e também nos antigos lares; na solidão necessária para o crescimento ou na provocação fundamental para o enfrentamento. Por fim, penso naquela que um dia foi a mulher da minha vida; aquela que amei mais do que a mim mesmo. Em seguida, eu penso em centenas de vultos que me bagunçam e me fazem querer vagar a esmo. Continuo sendo decente e ridículo. Nunca fui suficientemente bom para qualquer outro, exceto eu mesmo. Tento revelar a face de cada vulto, mas cada vulto se revela em seu próprio tempo. Queria poder amar todas essas sombras agora, mas suponho que deva esperar pelo devido momento. Sigo fazendo o que posso e se não for o bastante hoje, amanhã novamente eu tento.
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Desejo uma ótima semana aí pra vocês todos. Fiquem bem!