terça-feira, 30 de outubro de 2018

Relato do Catador de Restos

     Andei pelo centro de minha nova cidade sentindo saudade da velha qual jurei não retornar. É que o cheiro da antiga era discreto e minhas narinas, defeituosas e levemente funcionais, ainda conseguiam passar sem que eu sentisse novidades. Tive pavor de tudo o que era novo, pois o meu mundo era redondo, suave e agradável. Quem encontra um lugar de calmaria nesta imensidão, vez ou outra, deseja apenas retornar para o que é sossegado e bom. Não importa se esse lugar de calmaria é um quarto bagunçado, pois se é o seu lugar, ainda é mágico. Não importa se esse lugar existe meio aos solilóquios de um dramaturgo, garanto, ainda é mágico. Não importa se sua calmaria é uma pessoa exagerada e cheia de falhas de caráter. O riso fácil do qual sente falta lhe dirá o caminho. Há, porém, estradas sem curvas ou pontos para retorno. Por onde andar quando, sua cabeça e seu coração divergem e, os caminhos seguros são impossíveis, os seus antigos lares estão do outro lado do oceano de sua existência e o que é impossível acaba se tornando sua melhor expectativa de probabilidade na esperança?

     Intervalo. Fui ajeitar minhas pernas e bati meu joelho com força na mesa nova. Faz dez minutos, mas meu joelho continua dolorido e a mesa, impecável e linda, ainda está intacta. É motivo de contentamento. Se meu joelho velho quebrasse a mesa nova, eu talvez perdesse o rumo de meus pensamentos nesta noite, mas a vida seguiu como deve seguir. Imergi novamente e me lembrei de como tudo costumava ser. Fujo do que pode ser dolorido, mas inevitavelmente corro para o conforto das boas memórias. Todo mundo possui sua própria Estrada para Locais Seguros. Mergulho em mim, ou melhor dizendo, percorro-me. Quis de tudo nessa vida, mas sempre me indagava sobre a necessidade de querer ter o que eu queria. Nunca se utilizaram das duas versões comigo, embora, eu cansativamente tenha oferecido a oportunidade que todos se explicassem. Sofro o que existe, pois sou tão real quanto posso ser. Você teve dificuldades em aprender? Às vezes o que parece não é, e o que é, de todo jeito, é menos do que parece. Já foi enganado pela segurança de achar que sabe mais do que sabe, só por ter medo de não sabê-lo na integralidade?

     Amedrontado, eu me fugia. Quando me encontrava, corria. Quando criança, chorava. Quando adolescente, rugia. Que era eu ou que pensava ser? Um típico carneiro desferindo cabeçadas nos leões oportunos que tentavam se alimentar de mim? Não, diziam, você é um garoto e será sempre um garoto de pés sujos olhando para mundos que sequer existem! Rápido na sinceridade, devagar no raciocínio, excessivamente sensível até para os poetas falsos. Seu nariz, é bom que saiba, sempre será incapaz de captar os cheiros. Seus olhos não veem nada, tu sabe, no fundo da alma ainda é um garoto frágil e indefeso. Tento correr de volta. Quero minha Estrada para Locais Seguros. Tento dormir para me distanciar da pungência da dor, mas sigo insone. Fui traído pelos ditados populares: o tempo nunca curou minhas feridas. Cerrei os punhos e desafiei Deus e o Universo, anunciando, enfim, meu estado de loucura. Havia perdido para o mundo ou ganhado? Quem sabe dizer? Mas naquele momento foi o meu escape, a única fuga que eu precisava para correr até que não me restasse mais fôlego. Quando caí estirado no chão, dormi num sono profundo e sem sonhos. Quando acordei, infelizmente estava completamente lúcido, suspirei e chorei. O momento da jornada do fraco se decide aqui e sabia que, permanecendo ou não, eu era fraco e também forte. Tenha coragem, Daniel. Sussurrou um leão imaginário. Você já lutou com dragões maiores do que esse. Não é hora de uma reviravolta? Meus heróis, todos frutos de fantasia, se uniram para ecoar o cântico do meu renascimento insurgente. 

     Limpo a poeira da minha calça e com as mãos sujas de terra, eu seco minhas lágrimas. Essa é a minha história e eu me tornei um mero expectador. Há coisa mais deprimente? Sou o catador de restos, sempre perdido e confuso. Eu me alimento das sobras que me deixaram, pois, alguns acharam que possuíam o direito de determinar quais são os tesouros que eu mereço. Não mais, digo. Nunca mais e nunca novamente, repito. Essa é a minha história e eu sou o herói. Eu me recuso, anuncio. De agora para o resto dos meus dias, sejam eles muitos ou poucos, eu não sou mais o melancólico catador. Errei quando errei e me desculpei - fiz o que pude, basta. Acertei quando acertei - fiz o que pude, basta. Lamentações pela perda de algo irrecuperável? Já tive meu momento quase infinito de dor. Aprendi também que tudo que é passado é irrecuperável. É aqui que a onda quebra e que volto a ser mar. É aqui, no limite do que quase não deixou de ser, é que eu aprendo a ser mais uma vez, recomeço. Eu quis abraçar velhas partes que não existiam, pois tinham dado lugar ao que era novo. Eu também já não era mais quem eu havia sido: minhas roupas, meus pensamentos e meu jeito de andar haviam mudado. Quando foi que eu aconteci? Irrelevante. Essa é a pergunta errada. Sigo incomodando, mas não mais incomodado. Eu cutuco lagartas e elas se transformam em borboletas. Sorrio. Talvez esse seja meu dom. Ainda que voem para longe de mim, eu as contemplo com orgulho. Fiz parte da transformação e é motivo de alegria. Este herói agora tentará descansar. Quem sabe em um dia típico de inverno, cinzento e lúgubre, após uma garoa discreta, encontre eu a felicidade de maneira despretensiosa, onde nunca ousei procurar. Quem sabe não exista um mar verde e deslumbrante nos olhos de uma pessoa desconhecida? Nunca mais procurei, mas ainda observo com atenção tudo o que há em meu caminho, sei nadar. Quem sabe em um dia qualquer, eu ache algo que me sorria e valha a pena... Até lá sigo sozinho, mas hoje minha alma é serena.

domingo, 28 de outubro de 2018

O que trouxe para casa


     A manhã deste domingo foi terrível. A noite passada, péssima, revelou presságios do dia seguinte. O que estava por vir não poderia ser bom e não me refiro aqui aos presidenciáveis. Digitei em frenesi minhas frustrações e chorei como um bebê. Não nego que também sou um homem de oscilações, mas não sou de choro (ou não era), entretanto, as lágrimas escorreram. O café acalmou minha língua com o afago de seu gosto amargo. O açúcar só me faria irritar mais. Esbravejei mudo, cogitando quebrar tudo, mas consciente de que o prejuízo seria exclusivamente meu. Renove-se na temperança, sou capaz, certo, mas o que é que se pode fazer quando o motivo pelo qual sofre vai além daquilo que você pode controlar?

   Nada, óbvio. A constatação, porém, é inútil, pois não ameniza a dor. Estive inteiramente machucado hoje. Não esperei por empatia. Empatia não há. Não esperei compreensão. Estou acostumado a ser incompreendido. Esperei por calma e ela também não veio. Desejei que alguém me acalmasse e não havia alguém. Admiro o sossego, a tranquilidade e até o calor que se produz entre dois corpos quando o frio é insuportável demais. Quem não gosta de uma companhia boa? Quem não gosta de alguém disposto de verdade? Quem não sente falta de sentir falta? Soube que nada em minha casa me entreteria. Troquei de roupas quatro vezes, pois não conseguia me decidir se queria sair. Cogitei ir ao cinema, tomar sorvete ou correr. Optei pela terceira alternativa. Ao correr, porém, vi o quanto estava difícil observar o mundo. Não, eu não deveria acelerar as coisas. O momento era de passear e contemplar. Talvez existisse uma forma de encontrar alegria nas coisas que existiam por existir e que, ainda bem, estavam livres do controle de qualquer pessoa.
     
    Observei, enfim, o que havia. Ouvi primeiro. Os meus tênis mastigaram a areia vermelha e dura num croc-croc que me fez ter vontade de comer Fruit Loops. O chilrear animado das aves me animou. Segui e sorri, pois, vi duas araras cruzarem o céu. A sincronia delas era perfeita. Um avião também passou por cima de mim. O homem também faz coisas fantásticas. Meu coração estava mais quente e me senti acolhido pelo mundo. Talvez encontrasse um gato para adotar. Continuei a caminhada. Catei uma pedra comum, mas notei que até ela tinha seu formato próprio. Catei uma flor murcha do chão e me indaguei sobre o tempo que dura à beleza das coisas. Enfurnei-me para dentro dos bairros, contando as quadras para não me perder. Pensei em comprar ovos no mercado, mas o encontrei fechado. Olhei para os terrenos baldios e matagais, buscando um gato para ser meu companheiro de residência, mas encontrei um coelho branco (maior que a maioria dos gatos) de olhos verdes avermelhados. Dei dois passos em sua direção e ele se afastou. Como parecia assustado, eu o deixei em paz, mas veja, contemplando o mundo com tanta atenção, eu me esqueci de devanear. Quem sabe ele não estivesse me mostrando o caminho para o País das Maravilhas?
     
    O passeio chegava ao fim, mas tive tempo de fitar uma pomba nos olhos. Ela estava sentada em frente ao portão de uma casa e me encarou como se eu fosse idiota. Talvez ela estivesse certa e concluí que era hora de voltar para casa. Vi uma dúzia de crianças brincando na rua, a maioria delas concentrada no jogo de bets. Vi uma rosa vermelha de beleza cinematográfica qual me remeteu ao filme A Bela e a Fera. Não a encostei. Algo tão naturalmente lindo pode ficar como está. De repente me senti aliviado. Estava tudo bem agora. Dei algumas voltas pelo bairro e com meus próprios olhos pude contemplar o que é belo, sem precisar que toda aquela beleza me fosse explicada.
     
    No meu retorno para casa, notei que as minhas frustrações pela manhã, nada mais eram que pedras no meu caminho e que algumas delas não podiam ser quebradas ou removidas. A responsabilidade de trocar de rumo, quando o anterior se torna impossível de percorrer, é singular. Entro em casa e bebo água, como um pedaço de chocolate e revivo mentalmente todo o meu percurso. Esvazio meus bolsos e retiro deles a flor morta e a pedra ordinária. Olho para essas inutilidades com carinho e uma convicção firme se forma em minha mente. Eu trouxe para casa quase tudo, ainda que não tenha recolhido nada mais. Só deixei para trás a rosa vermelha mais perfeita e um coelho potencialmente mágico, mas tudo certo. Amanhã é um novo dia para acreditar em magia. Tudo vai ficar bem mais uma vez. 

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Sua loucura é linda

Andaram dizendo que eu sou louco
Pois não entendem o meu modo de agir
Ajo como desejo e me livro do sufoco
Quebro a ira com o ato de sorrir

Louco é quem aceita a normalidade
Vive como o resto do mundo
Somente mais um vagabundo
Vagando pela cidade

Uma garota distraída passa
Ao longe pensa numa outra dimensão
A janela da minha alma embaça
Acelera a batida do meu coração

Ela é fúria, alegria e tristeza
A onda calma e o mar em tormenta
Seus gestos distantes são repletos de beleza
Meus impulsos só aumentam  

Os olhos dela me lançaram magia
Fizeram com que eu me sentisse vivo
Está soturna, mas sua forma ainda é poesia
É neste instante tudo o que preciso

Então venha

A sua cólera é encanto
A qualquer tempo e hora
Sua ofensa aqui é bem-vinda

É pra ti que eu canto
Perceba sem demora
Sua loucura é linda

terça-feira, 23 de outubro de 2018

A falta que me faz

      Não creem a falta que ele me faz. Pensam que capazes de compreender? Tolos! Querem saber o que ele significa? Prometi que não contaria, mas o sussurro de um trovão me dissuadiu. Apareceu como um herói, de súbito, em um momento qual eu passava por grandes dificuldades. Confesso, por uma necessidade estúpida de ser sincero com quem me acompanha, que a surpresa causada pela sua primeira aparição me deixou irritado, ainda que eu soubesse de sua chegada. Ele era de uma branquidão hollywoodiana: irradiava vaidade e era diferente de tudo o que eu conhecia. Sua aparência me deixava irritadiço, mas não me enraiveci, não com qualquer ódio real ou digno. É claro que eu sabia que ele não tinha culpa de sua beleza. Ainda assim toda aquela mistura de emoções me acometeu. A sensação de desconforto equiparava-se talvez àquela da pedra pontiaguda que entra dentro do sapato em um momento crucial. Você não pode parar de se mover, portanto, deve carregar o fardo doloroso. Desde a primeira vez, ele foi incomodamente solícito e amigável, colocando-se à minha disposição. O tempo me faria valorizado. 

      Quando alguém, seja qual for sua forma ou jeito, surge em sua vida e se prontifica a ajudar, o instinto nos leva a recusar sua mão amiga e até sua presença. Há uma ferocidade orgulhosa e banal em cada um de nós. Funciona como uma espécie de potencial bélico e combativo, aguardando por uma oportunidade de saltar do escuro, assustar e ferir. Não há placas, mas lê-se em muitos pares de olhos a inscrição: Afaste-se! Cuidado! Cão bravo! O interlocutor não possui tempo e disposição para ouvir um romancista falar de romance, um arquiteto falar sobre casas ou um desconhecido discorrer sobre cães e gatos, ainda que todos os de bons corações amem os cães e gatos. A disposição, assim como a boa vontade, é seletiva. Esses grupos de pessoas, convencidos de que são mais do que são, decididos de que não precisam ser mais do que acham que devem ser, não se envergonham de quaisquer atitudes. Atentos e prontos, zombam as opiniões, sonhos e desejos alheios. O meu amigo branco tinha belos olhos opacos e nas noites trevosas, infinitas ou fugidias, era impressionante como brilhavam em um fulgor antinatural, lumiando todo o breu e mostrando os caminhos. Diferente dos outros quais citei, meu amigo não zombava os outros. Foi percebendo sua magnificência que comecei a sentir ciúmes dele. Ainda que eu fosse sua pessoa favorita, ele me garantia, era alguém que estava disposto a ajudar a todos, pois não era egoísta como eu. Assim logo se tornara amigo dos meus amigos e alguém importante para minha família. Só desejava ser útil.

     Passei a valorizá-lo como ele sempre mereceu. Passeávamos juntos, cantávamos juntos, estávamos juntos. Houve um dia, perto da minha segunda escola, qual fitei o céu estrelado em sua companhia. Creem que alguém maravilhoso assim não tivesse apreço pelas estrelas? Sempre dizia que seus olhos estavam em linha reta, como o poema de Fernando Pessoa, encarando o mundo de frente. Eu e ele inclusive recitávamos o poema em uníssono, tendo ele, claro, memorizado antes. Ó! Como às vezes deixamos escapar os grandes amigos. Há centenas de impressões erradas, certezas fundadas em argumentos falhos e sem fundamentos, mas que se valha a Lei da espada e do aço. Corte seco e fatal. Ó, meu amigo. Hoje sei dar valor, embora jamais prometa meu amor! Quem é louco de prometer algo que está, quase sempre, fora de qualquer controle?

      Ele agora está terrivelmente doente, mas não falharei em lhe ser útil, como sempre me foi. Os médicos, repletos de insensatez, divergem sobre a natureza de sua doença, porém, este amigo nunca falhou em acreditar em sua cura. Ficará bem, amigo. É forte, mais do que sonha, mais do que supõe. Ficará bem, amigo, e se não ficar, saiba que aqui, eu vou sempre sentir o efeito de sua ausência e a falta de seu companheirismo.  Você foi o melhor de todos. 

Obrigado por tudo, New Fiesta 2014.
     Nem tudo é o que parece. Este foi apenas um exercício diário de escrita. Agora que está concluído, eu reflito que, embora seja útil exercitar minha capacidade de escrever, este texto em particular não diz e nem quer dizer particularmente nada, pois eu deveria ter lavado a louça antes e dormido mais cedo. Boa noite. 

     O NFFSB olhou para o texto, achou ridículo e piscou seus faróis.
- Era só um problema de embreagem, irmãozinho. Você vai gastar mais de R$ 1.000,00 para salvar a minha vida, mas estaremos juntos outra vez. 

     É um preço muito alto. Talvez tenha chegado a hora de dizer adeus ao meu bom companheiro. Todo o meu discurso para, no final, sumir com a vaguidão do que não pode ser mais. Eu mudei de ideia. Até os bons amigos dizem adeus, então, eu vou para uma terra onde possa andar de bicicleta. Hasta Luego. 

domingo, 21 de outubro de 2018

O homem que matou o charme

       Mato meu charme. Tenho alguma beleza, não daquelas que me tornam realmente lindo aos olhos dos outros, mas que me tornam bonito em um senso comum. Reconheço-me com esta forma e me aceito. Não sou um dez, mas tampouco desejo sê-lo. O que importa, porém, não é isso. Um cara com a minha beleza e que saiba utilizar seu charme sabe ser quase sempre irresistível e fatal. Eu não ambiciono ser minimamente charmoso, uma vez que conheço todas as maneiras de matar meu charme e desconheço sequer um jeito eficaz de me impedir. Não consigo parar antes que minhas mãos estejam ensanguentadas.

   A metáfora soa pesada, porém, é exatamente como me sinto. Se, sou bonito (repito, não exageradamente), tenho um corpo qual me agrada e sou “suficientemente” inteligente, pois, como é possível acabar completamente com o próprio charme? Revelo a maneira: palavras! As mesmas palavras que seduzem, invariavelmente, podem ser palavras que chacinam. Em regra, sou escritor, mas minha eloquência é quase inexistente para com os desconhecidos. Quando não me dão intimidade, não a peço e tampouco a imploro. Nas conversas virtuais, todos reparam o fato de que sou prolixo. Quando me encontram, porém, se surpreendem com o quanto posso ser calado e introspectivo. Veja, não é que eu seja duas partes de coisas diferentes, mas que eu seja duas partes diferentes da mesma coisa. Subitamente me interesso por algo qual faz meus olhos brilharem de paixão e, se tenho uma chance de me aproximar, bem, eu me aproximo, é claro, desde que isso não me faça trair meus princípios. Há dragões que simplesmente existem belos e deitados em meio a rios de ouro. Contemplando-os, surgiu uma indagação na minha mente. São maravilhosos, por certo, mas se são tão belos, vale uma vida deitada em uma pilha de riquezas quando se pode voar pelos céus? A sensação de conforto no luxo é tão poderosa assim? Gargalho ao notar meus próprios pensamentos. Consterno-me ao me localizar dentro de minhas próprias percepções. Sou um tanto ridículo.
       
      Nunca me ensinaram a dialogar com maestria, assim como seis meses de curso de inglês aos nove anos de idade não me fizeram falar o idioma. Meus amigos à época certamente possuem certificados, mas eu passava minhas tardes em casa assistindo Invasão Anime na Fox Kids. Talvez nosso inglês em um duelo rivalizasse forças, porém, eles jamais aprenderão o que eu aprendi com os “desenhos japoneses”. Sorrio. Estou em um bar com um amigo. Uma garota me pergunta se eu estou com o loiro lindo. Dou um sorriso largo toda vez que penso nessa frase. Ela se insinua pra mim, assim como ficou claro que se insinuará para o meu amigo loiro e lindo, mas esses flertes inocentes me soam cômicos. Ela fala que está em um relacionamento aberto, à distância, depois toca meu peitoral. Eu dou risada. Não tinha reparado nela até que ela falasse comigo, mas agora é provável que eu não repare nela para o resto do ano. Não faço do ato dela um ato de vilania, até porque ela já estava alcoolizada. Talvez se ela tivesse me perguntado sobre dragões e fadas; cafés e chás; bolos bem doces ou a maneira que gosto de comer macarrão; sobre filmes marcantes ou livros emocionantes. Mas ela só quis saber do que não me interessava. Agradeci ao Universo, pois ainda poderia ser pior. Imagine que nestes tempos sombrios os números 17 e 13 causam tantos arrepios! Aos que me perguntam sobre meu voto, minto propositadamente, sabendo os deles, apenas para tumultuar e causar alvoroço. Aprecio o fato de ser rotulado imediatamente por pessoas que, na realidade, me desconhecem completamente. Querem descobrir minha identidade por meio de opções políticas? Rasos! Controlo a vontade de gargalhar, mas sorrio como alguém que se descobriu repentinamente com sorte. Penso no altruísmo de oportunidade e na oportunidade de consagração com a opinião popular. É tempo de unir forças, mas há confusão nítida entre enaltecer a causa e se enaltecer pela causa. O ciclo se repete. Quem são os inimigos? Eu penso o que eu penso ou penso o que pensaram por mim? Os inimigos, de fato, existem?

    Claro. Os tais inimigos são, na verdade, tão somente opositores. A imagem que gera o asco, quando não é sincera, provoca-nos náuseas secretamente. Pois bem, vai ousar gritar o que não se admite ouvir sequer em sussurros? Os dias parecem iguais, mas são ligeiramente diferentes. A vida vai indo, como só vai, o fluxo é ininterrupto, embora, as breves pausas sejam perceptíveis. A vida vai indo, como só vai, e, se não canalizar sua atenção no presente, vai se acostumar a se contentar com o que sobrou. Se você fosse um navio já haveria soçobrado; agradeça que seus pés tocam o chão e que as quedas não são definitivas. Levante-se e esteja preparado. 

     Ainda estou no bar. Mais de três pessoas já me disseram que este não é o meu lugar, pois eu tenho cara de lugares mais requintados. Repudio este comentário. Tenho apenas uma face e que ela me sirva a todos os lugares ou nenhum. Não há tantas belas pessoas hoje; tampouco há pessoas interessantes. Eis que me vejo cercado, mas me sinto liberto. Gostaria de conhecer uma pessoa de verdade e perguntar sobre o que a emociona e o que a faz feliz. Também é provável que eu perguntasse se ela bebe refrigerante e se o tereré lhe tira o sono. Contaria o dilema do furacão e aguardaria pela resposta; gostaria de saber se é o tipo de pessoa que divide ou não seus hábitos. Não julgaria quaisquer palavras. Aqui reside a mágica. A honestidade nos assuntos não vulgares, que me soam ligeiramente mais interessantes, afastaria todo o meu charme. Meu interlocutor me teria por um bobo afetado ou por um estranho. Se, mesmo de longe, alguém passasse perto de me entender, me olharia com desprezo e depois com admiração. Não perguntaria “Por que”, mas sim “Quem”? Eu me alegraria, pois seria a primeira pergunta relevante no último trimestre. “Sou aquele que não pode e tampouco sabe se quer seduzir alguém. Sou o homem que matou o charme, mas que jamais vai esquecer o seu nome”. Olharmo-nos-íamos felizes, cônscios de uma verdade fatal, que o restante do mundo jamais conheceria. Ainda que fôssemos pobres coitados, o momento seria de compartilhar riquezas invisíveis e até os dragões luxuosos sentiriam inveja da franqueza daqueles espíritos. 

     Pois bem, eu mato meu charme, todos os dias, mas dou a devida liberdade à minha alma. Mato meu charme. Não preciso dele. Tenho um nariz perfeito, disse a mulher da agência de modelos uma vez deixando claro que era minha única parte bela e singular. Nunca voltei. Ela não sabe do desvio de septo, da rinite e da adenoide. Claramente ela não sabia ver uma pessoa. Como pode saber sobre qualquer tipo de beleza? Meu nariz não é bom. Mato meu charme de novo, mas valho-me da alegria cotidiana. Sou uma pessoa que conhece a liberdade e isso me basta. Serei feliz em quinze minutos quando estiver bebendo meu café, solitariamente. Em seguida, serei feliz lendo os meus livros. Serei livre enquanto viver a minha vida, sem precisar me provar aos outros, pois tenho liberdade nas minhas atitudes reais e também nas sonhadas. Quem sabe um dia sejam todas as pessoas livres assim? Utopia. Na intenção de adquirir a liberdade, alerto, às vezes é preciso sujar as mãos. Mato meu charme de novo e os charmosos todos se perguntam... "E daí?"

Até mais


     Minha bisavó faleceu ontem pela manhã. Nestes momentos, aceitamos o que nos é dado, sem ter a convicção de qualquer coisa, pois nunca saberemos o que ocorre posteriormente. Devaneamos com reencarnações, lugares ermos, infernos e paraísos ou até mesmo com o nada. Desejamos pelo melhor da alma. Torcemos pelo melhor caminho seguinte. Os que partem, talvez, nos vejam de cima com um orgulho altivo. Como conhecem (agora) a próxima etapa, apenas observam alegres e saudosistas, as pessoas e o mundo que não mais a pertencem. Os que ficam sofrem, pois são eles que lidarão com a ausência. Não sei se acredito em Deus, mas rezei de coração pela alma da bisavó Palmira, pois em Algo creio e Algo há de abençoá-la pelas novas estradas. Ela viveu longamente e bem. Quem tem uma boa vida merece uma boa morte.

     Assim se vai, mas ainda fica, pois raízes são lançadas através de histórias passadas entre gerações. Ela vai. Nós continuamos. É nossos dever. As histórias e lembranças mais doces são reservadas aos mais próximos; as que eu tenho são raras e especiais. A voz marcante, chamando sempre um nome diferente; o cuidado e o carinho não eram exclusividade de uma ou outra pessoa. A insistência para que nós da família comêssemos mais um pouquinho, ainda que já estivéssemos fartos e cansados; o cheiro característico da casa, da sala, dos quartos, era de uma forma mágica também o cheiro dela.

     Vá, vó Palmira – para o sono eterno, em paz. Tantos aqui desejam neste instante um beijo, uma palavra e um abraço a mais... Mas que o adeus não seja definitivo. Quando penso naqueles que se foram e nos que ainda vão, aceno ao vento e sussurro, seguro: “Até mais”.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Atemporal

     Ontem tive um sonho nebuloso, delicioso e repleto de mentiras confortáveis. O relógio era meu amigo, ora, que banalidade, nunca nos demos bem. No plano real, ele me olhava com um esgar de ódio e murmurava com uma raiva palpável: “você está perdendo tempo, Daniel. Até quando vai se atrasar por mais de uma hora para seus compromissos?”. Ele falava que as broncas eram para o meu bem, porém, aprendi a desconfiar desse desonesto jeito lesto. Nesta ilusão noturna, o velho relógio até sorria e dizia: “bom dia, você pode fazer o que quiser”. Ele fez um acordo com o tempo para que revivêssemos meus melhores momentos, ao que nos sentamos e nos abraçamos. Não me pergunte como, pois as explicações nos sonhos são incompletas. As bebidas existiam conforme eu as imaginava. Brindei meus grandes momentos da vida, todos banais, como os de qualquer outro ser humano. O relógio me olhava e sorria com uma cumplicidade que só os grandes amigos compartilham; ambos, humano e ponteiros, bêbados com cerveja barata. Psiu! Você quer ver? Ele me perguntou arregalando as horas. Sim! Claro, eu desejo muito, mas isso vai me ajudar? Ele me deu três tapinhas nos ombros e disse: Ah! Você diz que não é curioso! Há-há! Tic! Tac! Veja isso! Vegeta, olha bem!

     Tudo aconteceu como em uma pré-morte. Todos os minutos da minha vida, dos mais inúteis como verões desperdiçados em escritórios, choros derramados em velórios até os mais incríveis sorrisos. Primeiro, ele me fez enraivecer, mas o relógio observava o filme da minha vida com um orgulho paternal. Decidi que me assistiria. Olhei para a tela da memória e o branco ganhou forma. Chorei pelas pessoas que partiram sem despedidas, sabendo que algumas delas haviam morrido e outras não. Por fim, o relógio me cutucou e disse: isso vai fazer você acreditar que vale a pena. Prendi a respiração e fiquei atento. Tudo veio como se na velocidade da luz. O dia que lati para espantar cinco cães grandes que se aproximavam alvoroçados e raivosos de minha cadela; quando guardei a calça de minha avó na geladeira; quando fiz meus bonecos saltarem de paraquedas e descerem pela “tirolesa”. Não esqueço o primeiro beijo; o filme era Se Eu Fosse Você, e, estava tão divertido que até hoje me surpreendo com o momento qual parei de hesitar... Precisamos desses atos de coragem. Vi-me mais. O primeiro toque; a primeira oportunidade perdida e o primeiro sexo. O primeiro sexo com amor. Ri da minha inocência ao deixar um ovo de páscoa na geladeira por três meses, pois era o formato mais parecido que existia com um digi-ovo. Ri da minha indecência em urinar no sabonete líquido do colégio e de tirar fotocópias da minha bunda em locais totalmente inadequados. Alegrei-me de como me emocionava por coisas ridículas. Ri de como me apaixonei, pensei, para vida toda, com menos de um mês de momentos divididos. Ri de como nunca compartilhei meus melhores hábitos e sorri satisfeito, pois são somente meus até hoje. Fiz coisas ruins, nunca excessivas e chorei. Hoje sofro mais do que sou feliz, mas valorizo meus dias. Valorizo minhas pessoas. Amo com toda a minha alma tudo o que tenho, sabendo que não tenho posse de coisa alguma. Vejo todo o passado exatamente até o momento que, febril, eu cochilei e sonhei com o relógio. Ele me olhou com a paciência de uma mãe sábia: a vida passa rápido, filho. É por isso que, de quando em quando, exijo-te pulso firme e coragem. Viu quantas coisas boas? Se tu trabalhas bem, somos todos mais felizes... melhores. Seja corajoso.

     Acordo. Depois de outra epifania, eu sei que não sou o mesmo. Era como se eu tivesse dormido Daniel e tivesse acordado DANIEL. Observe isso, rapaz. Absorva isso, homem. Transforme-se agora. 18h52. É cedo. Vou tomar meu café e tentar me ser útil. A utilidade nos mantém em pé em épocas de crise. O tempo é amigo e inimigo. Não posso controlá-lo, mas quero ter a exata noção que eu sei como usufruí-lo, pois embora a felicidade e a tristeza, verdadeiramente sejam passageiras, eu sei hoje, que algumas memórias são eternas. O coração sente, indubitavelmente, de modo atemporal. É por mais desses momentos que vivo. É por mais dessas lembranças que quero continuar a viver. Se hoje acabar derrotado, levantarei a cabeça para um recomeço. Amanhã vou vencer. Aguardo com ansiedade pelo meu sono noturno. Tomara que outra vez o relógio me lembre de que vivo pelo meu coração. Tomara que eu nunca me esqueça das coisas que muita gente não vê. Espero que dentro das vinte e quatro horas de cada dia, eu seja atemporal.


Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,

Nem estes olhos tão vazios,

Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração

Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:

— Em que espelho ficou perdida

a minha face?

Cecília Meireles 


terça-feira, 16 de outubro de 2018

O que acontece a seguir...


     Quero um gole de álcool, por favor, digo, tentando manter a dignidade no tom de voz. A mentira ganha vida, pois só queria uma xícara de café. Sou bom mentiroso, embora tenha o péssimo hábito de dizer a verdade. Agora você me desagrada, é o bastante. Este é o ponto de não retorno, vá. Não é preciso sentir asco da humanidade e nem pena dos que sofrem. É o balanço natural. Aos tristes, paciência, pois a felicidade ainda rondará teus dias. Aos felizes, percepção. A felicidade é fugaz, pois é justamente por isso que se faz mister aproveitá-la. Faço parte dos lúgubres neste instante. Abro minimamente o que minha mente eloquente esteve revirando sem qualquer cuidado. 
     É irônico o quanto se desconhece o conhecido. Memoriza-se todas as falhas e manias; risos e costumes; a aversão por poesia e até os ritos de ciúme. Chega-se então a um ponto estranho e sólido. Naturalmente, você remói uma frase: “eu sei o que acontece a seguir”. Em regra, aceita a consequência do fato, ainda que este seja desagradável e degradante. Permanece, pois diz a si mesmo que é a última vez, mas seu corpo estremece e você toma nota da repulsa. A mentira ingênua não pode ser aceita, por tal qual é expulsa. No fundo você sabe muito bem que nada vai mudar. Mas você é cabeça dura e insiste em insistir. Vai até além do seu limite, mas qual a razão? Amor? Medo?
     Um dia, não diferente de qualquer outro, durante a primavera, você saberá o que vem em seguida. É uma manhã nublada e fria após uma noite de chuva violenta. Eis que uma gelidez inesperada te ataca e te acomete. Penetra-lhe os ossos e faz morada, como se fosse parte do seu sangue. Trouxeram-lhe um roteiro novo e previram suas possíveis reações, pois também te conhecem. O jogo não é jogado exclusivamente por você. Eles sabiam o que aconteceria a seguir. Supuseram que a minha resposta seria “Implore meu amor, pois então fique, por favor,”, mas é um lamento tardio após uma agressão direta. O costumeiro já está distante e nem somos capazes de nos ofender de forma reta, como fazíamos antes. Não agirei como um pedante... isso está em minha nova meta.
     Eis que me descubro noutra manhã de outubro. Os meses silenciaram vozes quais eram tão agradáveis. Os ventos afastaram preguiçosos sorrisos afáveis. Vejo-me e internamente, minha algidez compete com o Alasca. Aguento tinta, digo. Aguento tinta, resmungo. Aguento tinta, desafio. Estou mais maduro, mas às vezes me faço surdo às cenas de intrometidos que querem opinar, pois refuto suas opiniões. Amanhã ainda não sei, mas me basto hoje. Não quero ser sensato, pois tenho sido assim a minha vida inteira, vê? Então se recolha com teus míseros fatos, tua reclamação cabe numa algibeira. As nuvens mudaram de lugar. Também as manias, os hábitos, exceto teu jeito de se fazer fortaleza. Há agora um desejo constante de atingir o cume, ao longe vejo sua inenarrável beleza, mas há ausência do seu característico lume. Está vestida toda em resquícios de tristeza. O que se pode fazer? A culpa foi toda minha. Não. A culpa foi toda sua. Toda. Outra mentira. Talvez a culpa tenha sido toda nossa. Eu faria os cafés pelas manhãs, mas e daí? Isso não me exime. Isso não me exalta. De quem é a culpa, afinal? É possível identificar o transgressor? Quem poderia dizer? Eu não sou capaz de dar nome ao vilão. Nunca fui bom em elegê-los, ainda que meus punhos se ergam até hoje para enfrentá-los. O que é que se conclui nessa história? Há tanta gente que tem o futuro no passado. Isso é mais melancólico do que deprimente. Rio com gosto diante do que meus pensamentos encerram. Tomado pelo sono, enfim, vejo. É tão óbvio tudo o que não vem a seguir. Sorrio. Adoro errar minhas previsões. 

“Prefiro me lembrar de uma vida desperdiçada com coisas frágeis, a uma vida gasta evitando a dívida moral.” Neil Gaiman.