quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Uma noite boa

     Já estava quase dormindo quando ela disse, ei, eu achei aqui na internet, achou o que, perguntei, essas coisas bobas, ela disse e de olhos fechados vi o sorriso, que coisas bobas, posso falar mesmo, ela perguntou, eu disse sim, claro, fale sobre essas coisas bobas. Ok, se você pudesse levar alguém para jantar quem seria, vivo ou morto, indaguei, acho melhor levar alguém vivo, é, os mortos não sentem fome, eu concordo, quem levaria, Hayao Miyazaki, japonês, ela pergunta, sim, é japonês e você, não sou japonesa, bem humorada é, sou, quem levaria, pergunto, Will Smith, ela responde. Penso em chocá-la com meu brilhantismo. Sabia que a filha dele chama Willa e o filho Jade porque ele é Jada e a esposa Will, não, ele Will e a esposa Jada e aí usaram os próprios nomes para nomear os filhos. Ela ri, ri bastante e o mundo se torna mais leve. Sabia ou não sabia, eu digo, do que você está falando, pergunta ela enquanto ainda gargalha, eu não sei direito, respondo, peço perdão, perdoado, próxima pergunta, o que é um dia perfeito pra você, um que chova e esteja frio e eu possa beber bastante café com intervalos para cochilar com a pessoa que eu gosto, nós somos parecidos, ela diz, você e eu, sim, viu, vi. Veja a previsão do tempo, vou ter que fechar a página das perguntas, deixa pra depois, a previsão ou as perguntas, a previsão e o dia perfeito, próxima pergunta então, manda, quando foi a última vez que você cantou para alguém? Eu cantei Frejat bêbado uma vez para a outra, faz tempo, ela pergunta com curiosidade sem parecer incomodada, faz muito tempo, respondo, ela me observa, eu sei mesmo de olhos fechados, mas e aí, eu cantei uma romântica do Cazuza para o outro e até gravaram um vídeo meu, jura, juro, um dia me mostra, tudo bem, eu mostro. Agora algo pelo qual se sente grato, liberdade e você, independência. Mudaria algo na maneira como foi criado? Pediria para que meus pais me incentivassem ao hábito de ler livros. Aprendi depois de bem velho e você, pergunto, eu não mudaria, ei, você dormiu, ela me pergunta e se aproxima para me dar um beijo na boca, ei, ela diz e se debruça em mim sem roupas. Você está acordado, decreta, não tenho certeza, mas acho que sim, ela ri, seu idiota, aguenta firme, ainda faltam muitas perguntas, pergunte, que horas são, isso está no teste, não, confere no celular, duas e quarenta e sete, que horas você precisa acordar mesmo, seis e meia, posso parar, ela diz, eu sei que não pode, ela ri, eu também. Como você se sente sobre o relacionamento com sua mãe, eu primeiro, ela se antecipa, tivemos nossas brigas, não é fácil, mas hoje nos entendemos e você? Não conheci sua mãe ainda, você é um idiota, eu sou, responda, eu me sinto feliz e orgulhoso, somos bons amigos, afinal. Algo que você gosta em mim, eu gosto do som da sua risada, do jeito que você mergulha em mim quando me olha e de como você é irrefreável e pergunta inoportunamente, idiota, diz ela rindo, abraça-me e parece desistir do questionário, mas não sei. Meus olhos pesados cedem ao sono, durmo, sem sonhos, sem nem desconfiar do que é que ela gosta em mim.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

O demônio do fogo

Há um demônio do fogo 
dentro do meu ser
Desobediente
Incontrolável 
Alimentando-se de 
tudo o que se move  
Apenas para sobreviver
Há um demônio do fogo
queimando o meu coração 
Cada vez mais expansivo 
Ele urge para sair 
Cada vez mais invasivo 
Ele não quer mais dormir
Cada vez ele mais eu 
E eu mais ele
E ele ainda mais eu
do que eu ele

Mas nada
tão separado
que possa chamá-lo meu

Nós aqui divididos 
Até o dia em que seremos 
uma única coisa 
Não hoje
O resto do mundo
nunca interfere na nossa relação
Tudo o que me toca e fere
Vira carvão 
Até minha própria pele
às vezes parece vulcão
Sou um eco solto de
Destruição
Nunca sozinho
Duplamente
em ebulição
Quebramos todas
nossas leis 
Há este demônio do fogo 
convivendo comigo 
nas noites e nos dias
Às vezes me fustiga e 
outras vezes acaricia
Ele é tão capaz quanto eu
Guardião estranho e improvável 
Protege-me com suas chamas
Ainda que apareça até 
quando não é chamado
Este demônio é atrevido 
Extremamente ousado 
Inconsequente
Presunçoso
Arrogante
De quando em quando
eu e ele nos desentendemos 
Eu busco agir racionalmente 
Ele quer queimar o mundo
Trinca os dentes num esgar horrendo
Mostra sua agressividade
Ninguém ousa um passo a mais
Queimamos juntos o que cruza
o nosso estreito caminho 
Ele me observa sorrindo 
completamente zombeteiro 
Sabe que eu aguento
 o que poucos aguentam
Diz baixinho 
“até quando”?
Mando ele calar a boca
Aqui sou eu que mando
Ainda assim ele gargalha, pois 
todos fracassam nessa batalha
Contra os males do mundo
Sussurra nos meus ouvidos 
“Um dia você vai incinerar 
tudo com a minha ajuda
Cedo ou tarde a crueldade 
do mundo te muda” 
Ele às vezes soa tão tolo
Nunca sabe o que fala
Era melhor ter
abraçado o silêncio
Era melhor ter engolido
o sol no lusco-fusco
Tudo o que não tenho
Ainda busco
Algo parece vago
Inquieto, ele me cutuca
como se apagasse um cigarro em mim
Não pôde fazer o que deveria
Diz que não coleta mais
Tudo o que recolhe
em seguida descarta
"Nada nas mãos nunca
É disso que somos feitos"

A última coisa que segurou
foi o brilho da lua
Ainda assim um instinto
estranhamente pacífico
Fez com que o demônio a soltasse
Talvez alguns mereçam
morrer de frio pelas traições
Na Islândia, Rússia ou no Canadá
Alguém como eu poderia
derreter o continente por lá

Não o entendo, mas o sinto
Inequivocamente triste
Ele não me entende também, porém,
solidarizamo-nos na ausência de palavras
que engloba a vida inteira que existe
O demônio é forte
Bem desconfiado
observo a minha sorte
Mal entendendo
Devaneio a morte
Meu demônio a desafia
Como se fosse mais poderoso
que o próprio deus
É bom tê-lo por perto?
Um demônio mau
pode ter utilidade?
Há um demônio do fogo
dividindo a morada do espírito
Em certo momento nos
perdemos um do outro

Ele se parece comigo
E eu me pareço com ele
A alma eloquente se agita
no corpo que emudece agora
Regente perdido inconsequente
Consome com as chamas
até o correr das horas

Mais inflamável do que
qualquer coisa que viu

Instável aguardando
uma faísca no pavio

O demônio se lança em mim
Cada vez ele mais eu
E eu mais ele
E ele ainda mais meu
Eu respiro fundo
para tentar não me perder
Ele gargalha sonoramente, 
mas sinto o que ele sente
Queima com uma raiva
arroxeada e profunda
Instinto de ira indomável
Admite que todo fogo se apaga
Quem não sabe entender a mínima fagulha
não pode tocar quem é pura lava
Suspiro-me ou é ele que suspira
Há este demônio aqui e já não sei
quem é que controla a respiração
Para os outros não há comoção
Somos nós dois uma estação
Como o inverno ou como aquela que
leva embora para sempre um trem

Revestido de fogo nos fortalecemos
Quem é que pode me impedir?
Quem é que pode nos impedir?
Quem é que pode o impedir?
As lágrimas que escorreriam
evaporaram antes de tocar a pele
Não há nada em mim que gele
Sofro hoje como um mestre
O tédio me frustra
Vou queimá-lo

Faço o que quero e 
ninguém me impede
O tal demônio por vezes 

me personifica 
Por vezes agimos juntos 
Ainda assim ele só
quer saber de queimar
Lançar labaredas dançantes 
para consumir tudo 
Incêndio incontrolável
O demônio é sincero
Eu também
Odiamos mentiras
O demônio é direto
Eu prolixo
Ainda que eu seja direto
e ele enrolado também 
Há um demônio comigo
Ele me afasta e
me protege do perigo
Ele diz que é letal, mas
que é meu amigo
Como posso não confiar
em alguém tão próximo?
Não tenho escolha ou
Escolhi que fosse assim
Tudo de repente explodiu
Claridade no céu que nunca mais se viu

De repente o meu fogo
e o do demônio

Espalham por
toda a cidade

E um sussurro quase mudo
nos revela desnudos
Há partes nossas por 
todas as casas
E há em corações alheios 
nossas brasas
E há o que eu nem imaginava
que poderia de haver
E há cinzas nossas que guardaram
E eu nunca iria saber
E a raiva cega minha 
que nunca pune
Transforma-se 
então em lume
Eu e o demônio 
não somos cruéis
Ainda que pudéssemos ser
Ainda que devêssemos ser
Só o demônio sabe o quanto
o sofrimento me inflige de dor
E o que foi me enche de espanto
Ele tenta queimar tudo, mas não
nunca viu nada que tenha resistido
Recorda-me da frase que tanto gosto
"Seu coração é feito de coisa mais forte que vidro"

Num universo de tanta crueldade
Abraço o demônio antes de dormir
Eu me sinto tão lúgubre, mas volto a sorrir
Seguro a onda, aguento a barra, ajudo
Ninguém me nota na parte mais profunda 

Observo o mundo com sutileza
Vejo em cada cantinho
um pouquinho mais de beleza
Sou sozinho, mas me sinto fortaleza
Quem derruba estes portões?
Também ninguém sabe a senha
Continuo mudando e crescendo
Estou cada vez mais velho
O demônio faz aniversário
Nós comemoramos
Celebramos um com o outro

Já nem me lembro dos tempos
em que o demônio não estava por aqui
Ele parece vil, mas me ajuda a seguir
Fecho os olhos e aguardo
Os milagres acontecem
quando a percepção encontra o sono

Os grandes eventos sempre lembram
Épocas distantes e abandono
Dou de ombros e sigo em frente
Eu mais fogo quente
O demônio mais tranquilo
Eu mais ele e ele mais eu
Um dia encontro
um pedaço de saúde
Abraço o meu
descanso na loucura
Repouso vulnerável
Jazo sem armadura
Até o dia fatídico
vou como posso

Faço o que posso
E também o que devo
O demônio matou o medo
Ele mora comigo de aluguel
Eu cada dia mais ele
Ele cada dia mais eu
Eu ainda mais ele
Ele ainda mais eu
Eu mais ele
Ele mais eu
Eu ele
Ele eu
Eu
Acho que, enfim,
Nos entendemos ou
eu me entendi
Esquento outra vez
Sou completo

Estou livre.


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Contradição

     Começo este relato sem a devida lembrança de onde ele se inicia. Falho com o mínimo, porém, não me desanimo tanto. A prolixidade dos meus sentidos contradiz a preguiça do meu corpo. Mal me sinto capaz de caminhar ou de comer, entretanto, obstinado, sigo batendo os meus dedos no teclado. Observo-me, não sem certo estranhamento, quase estático. A minha mente nunca descansa da realidade ou da irrealidade. Sinto uma vontade de gritar até perder a voz, mas estou cercado. Saiam, por favor. Sou dominado por um instinto de isolamento e sinto uma vontade crescente de desaparecer.

     Resisto, incertamente intrigado, mas certamente contente. Tenho falhado sim e errado como um mestre em errar. Domino os equívocos e nunca me basto deles. Quando alguém me diz para não viver tudo hoje, eu sorrio e assumo uma expressão zombeteira, ainda que não me perceba tão irônico assim. Chamar-me de cínico é a única coisa imperdoável. Ouvi discorrerem sobre minhas ações de maneira generalizada e cada um pensava algo diferente. Assim, eu fui honesto comigo e com os outros. Nunca pude controlar o que esperavam de mim. 

     A exaustão percorre meus ossos. Dizem que eu não tenho motivos para estar exausto. Talvez eles estejam certos, mas, olha, eu não tenho que me explicar quando quaisquer tipos de explicações fogem rapidamente do meu controle. Preciso me afastar um pouco. Posso me perder de tudo, até perder uma ou outra pessoa querida, mas minha própria ausência me desespera. Não penso em boas frases para finalizar um texto. Não há nada mais que eu sinta ou que faça sentido. 

     Um bichinho de luz aparece e me incomoda, mas sinto muita preguiça para me livrar dele e minha bondade ingênua me impede de esmagá-lo. Talvez eu devesse ser mau de vez em quando. Neste final de tarde ainda não posso. Apago a luz e torço para que ele vá. Não desejo companhia. Espero dormir e me esquecer de quem me esqueceu, mas também de quem ainda se recorda de mim. Quero apenas existir sozinho.  


domingo, 10 de novembro de 2019

Os solitários não estão sozinhos

     Uma espécie de tristeza indefinível recai em mim. 

     A minha única certeza é a dúvida. Meus ombros pesam como se empurrados por uma força invisível e medonha. A canção da minha alma sai de ritmo e desafina com a vida. Recebo a culpa de algumas coisas. Às vezes sou mesmo culpado, mas em outras, observo-me para depois observar quem tenta se utilizar de minha imagem como um pretexto conveniente para o alívio das próprias ações.

     Desafogo-me das ocupações. É domingo. É preciso entender o tipo de dia, mas a semana parece terrível antes de ter começado. Problemas em centenas. Posso resolvê-los? Claro que sim, mas admito que esse cansaço de alma me apavora. O que é que tanto me incomoda?

     Pensei sobre os outros e me vi inteiro na solidão. Derramo-me pelos caminhos que escolhi trilhar. Sou todo alma, mas ninguém nunca está perto de me desvendar. Assim como há pessoas que se sentem acolhidas e facilmente compreendidas, eu me sinto distante, distraído e nulo. Posso muito bem acolher e ser empático, mas quase ninguém me vê de verdade.

     Quando o sol da minha pessoa anuncia o lusco-fusco, a promessa da escuridão que chega com a noite afugenta todos. Não há mais ninguém na multidão. Queria chamá-los de covardes, mas não sinto que é certo. Viver é uma jornada solitária no deserto? 

     Aguento tudo de novo e de novo e de novo. Príncipe solitário das horas sombrias, eu ainda me lembrava de tudo quando o resto do mundo se esquecia. Quando a noite quase infindável rompeu no amanhecer do dia seguinte, eu pulei da cama, lançando luz solar em tudo o que me cercava. Todos fecharam os olhos. 

     A ironia da minha vida é que parece que sou amado apenas no meio termo. A minha integralidade parece uma promessa de vexame. Temem minha luz e temem minha escuridão. Desprezam tanto uma quanto a outra também. Eu que sou andarilho e vago e divago nos palácios do meu espírito, sinto-me só. Quantos por aí se sentem assim? 

     Passeei com o meu cachorro em um dia de garoa e vi que o prédio inabitado, ainda em construção, tinha o terceiro andar inteiro com as luzes acesas. Será que garotos farreavam em uma invasão? Será que são velhos fantasmas festando no salão? Tudo o que sei é que não inventei, mas a magia é assim mesmo. Eu havia deixado o celular carregando de modo que não posso provar o que meus olhos encontraram. 

     Algo causa irritação. Inquieto-me. Que é que há? Alguém tenta me enganar. Tantos já conseguiram outrora. Não estabeleço compromissos morais com imorais, mas ainda falo verdades aos mentirosos. Acontece que o telefone sem fio que fazem com minhas palavras é tão absurdo que chego a duvidar das boas intenções. O isolamento é um caminho?

     Não. A imaturidade se cura com o tempo. Também já fui pueril e ingênuo assim. Golpeio minha própria face para acordar. Eu que fui versões diversas da minha própria, busco uma verdade que possa me convencer a ser verdadeiro. 

     A noite é longa e mesmo quando a cidade dorme há alguém acordado. Guerreiros silenciosos estão batendo furiosamente em seus teclados, assim como eu, desejosos por uma realidade diferente. 

     A noite é longa e sigo acordado. Outros também estão acordados comigo em outros prédios ou ruas ou cidades. Outros planejam o caos e a destruição e eu planejo algo que faça sentido para melhorar a vida das pessoas queridas que me cercam. O meu fracasso reverbera. O meu sucesso é apenas promessa. Quantos de nós conseguirão concluir essa jornada?

     A noite é longa e sigo, firme e forte, discorrendo sobre coisa alguma e nada. A vontade de desistir de tudo é forte, mas confio em dias e noites melhores. Luzes acesas de vizinhos que nunca conheci iluminam a minha alma. Os solitários não estão sozinhos. 

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Eu sei

     Eu sei que mal nos conhecemos e que nossas ideias parecem todas avessas e que você certamente me acha um idiota, mas podemos tomar um café qualquer dia desses?

     Eu sei que você acha que eu não sei conversar e está certa em desconfiar, mas sabe que eu sou mesmo eloquente? Com você eu tropecei no que ia falar e fiquei parecendo um desses bobos inocentes. 

     Eu sei que não sei de quase nada e que na noite passada você andou reclamando na internet sobre a sua solidão. Eu sei que é muito abuso, mas e se na sexta-feira eu aparecer como um tipo de intruso e segurar suas mãos? 

     Eu sei que não sei de quase nada, mas tenho lido livros para entender tudo o que é discreto e reluz, mais ou menos como você. Costumo ser exagerado e extravagante quando diante do que me seduz e me pergunto sobre como agir. Não, não é bem isso que eu me pergunto. 

     Eu sei que assusto muitos com o meu barulho e o seu silêncio me confronta sem confrontar. Você é que me assusta e me faz sentir revirado, completamente fora do lugar. Talvez isso ou talvez outra coisa. Talvez nem uma coisa e nem outra. É certo que meus poderes não funcionam em você. Como pode ser discreta e ao mesmo tempo aparecer?

   Eu sei que agora é tarde para o que não fiz e não há alarde por aquilo que não se diz, mas me perco quando te encontro e sei o quanto isso soa estranho. A coragem sempre falha por um triz, mas busco abrigo para a tempestade silenciosa em seus olhos castanhos. 

     Eu sei, eu nunca antes tive medo de chuva, mas você é uma espécie de curva no meio da minha estrada em linha reta. A minha visão às vezes se turva, mas tudo me aponta você. Esqueço de tudo. A linha do ridículo ultrapasso e me vejo como se estivesse nu, constrangido por aí. 

     Eu sei, nada disso faz sentido, mas, olha, bem, eu queria que você soubesse dessa vez. Eu andei deixando algumas coisas para trás e não gostaria de deixar você antes de sentir que eu a tive pelo menos uma vez, entende? É melhor sentir o sabor do fracasso por ter tentado do que a desolação da impotência por ter cogitado e sequer agido.

     Eu sei, é confuso e eu posso me mudar para São Paulo e você também não aguenta mais essa cidade e não suporta quando eu começo com minhas rimas. Eu sei que você me ridiculariza e diz que a gente não combina. 

     Eu sei que não sei nada sobre tudo o que se sucede, mas andei torcendo para que você ficasse bem. Eu sei que esse tipo de texto faz com que você superestime minha loucura, mas um escritor sempre exagera na descrição da figura. O que mais eu poderia fazer?

     Eu sei que não escutamos músicas parecidas, mas o que eu acho que quero dizer vai muito mais além. A gente sente um medo absurdo de viver e vive buscando uma situação na qual nós mesmos possamos nos tornar reféns. 

     Eu sei que parece que é mentira, mas não é. Nós andamos por aí tão arrebatados pelo que houve antes que nos tornamos indiferentes. Um dia já tivemos o bastante e é estranho que se tente outra vez, ainda que histórias nunca sejam iguais e raramente sejam parecidas.

     Não, nada está acontecendo de novo e a vida é esse tipo maluco de jogo qual quem se esquece mais rápido é feliz mais apressadamente e quem se sente letárgico, às vezes e só às vezes se perde dentro daquilo que se sente. Onde está você hoje?

     Aposto que está no trabalho e há dias que você agradece por fazer o que você faz, pois é o seu lugar no mundo. Outros dias a raiva é ensurdecedora e você queria explodir tudo. O que é que a leva a fazer o que faz?

     Não sei de mais nada, mas quero te ver mais uma vez para tornar oficial o meu estado patético. Este escritor prolixo vai ser absolutamente sintético e você talvez possa sair antes de ter aparecido. Dê-me um bom motivo para não ter mais motivos. 

     Incomodei-me com o papo furado sobre coisas vagas e houve quem me dissesse artista e eu o mandei para a puta que o pariu e houve quem a chamasse de artificial, mas o disparate veio de um indivíduo tão vil. Não sei se você já se viu nos espelhos, mas a tempestade em seus olhos e a cor dos seus cabelos e o jeito que você se movimenta e tudo o mais que não aparenta. Como é que pode não ser capaz de perceber?

     Talvez metade das mulheres do mundo também falhe em se reconhecer, mas hoje eu queria dizer para você que você é mesmo linda assim. Encontrar-te é vislumbre de arte e o vendaval da sua presença agita todos os sonhos que vivem em mim. Como pode ser assim?

     Eu sei dessas coisas todas e sei sabendo, pois pensei antes que sabia e estive errado, mas repensei que não havia motivo para me preocupar se tudo um dia vai virar passado e eu não sei mais o que estou falando, mas ainda estou faltando em fazer sentido. 

     Eu sei que você existe, embora talvez não exista. Eu sei que você é um fantasma, mas às vezes sinto como se fosse real. Na minha imaginação você é alérgica e também tem asma e ganha um presente perfeito na noite de natal.

     Abri uma exceção e decidi te ver no meu dia de solidão. Domingos são sagrados, mas você está rondando a região. Pego o meu carro e finalmente tomo alguma medida. Sempre que perco minha coragem nunca me lembro de onde a deixei escondida. 

     Eu sei que tenho sido meio tonto e não tenho diferido a tranquilidade do perigo. Nem sei se estou pronto ou se outra vez me pegaram falando sozinho. Acho que não é o seu tipo de encontro, mas você aceitaria tomar um café comigo?

Terça-feira

     Era lá por 18h30 ou qualquer horário parecido com esse. Os meus compromissos todos deixei de lado para fazer coisa tão espetacularmente importante como coisa nenhuma. Recentemente algumas pessoas me soaram especialmente estranhas, pois manifestaram interesse em mim. O que é que eu faço de tão interessante? Nada. Às vezes não me entendo e nem quero me entender e às vezes a meticulosidade das minhas ações me faz desejar tudo o que eu não posso querer. 

     Perguntam-me em anonimato sobre namoros e rolos e medito sobre os fracassos. Interesso-me por três mulheres de mundos completamente diferentes e rezo para que uma força divina possa colocá-las em meu caminho. Uma delas apareceu vez ou outra e não houve divindade que me ajudasse no que dizer. Eu que quase sempre sei o que falar havia me esquecido da minha própria língua. Tropeça em mim e faça uma extravagância, menina. 

     Emudecido com essa lembrança, frustro-me, é tempo de arriscar e juro pelos meus juramentos que não vou mais fraquejar de maneira tão simplória. Eu me comprometi com a sombra das coisas que já haviam partido e isso me impediu de viver plenamente por muito tempo. Não é como se existisse algo nítido e palpável que interrompesse a minha vida, mas, de um jeito ou de outro, era como se minha versão de outrora não aceitasse o final apresentado. E se eu já vivi toda a história de amor contido em um conto romântico com uma pessoa, qual será a graça real com a próxima? 

     Meu estado de espírito se amarga, mas não por muito tempo. É que meu cachorro Link aparece sorrindo o seu melhor sorriso pra mim e pronto para brincar. Minha gata Nami sobre na mesa e não se importa em deitar em cima do teclado e do meu braço. Se eu continuar digitando meu texto, ela me morde de leve como quem avisa amigavelmente para que "não escreva agora, pois ela quer dormir". Lúdico, interpreto essas interrupções como sinais. Não é que eu deva escrever sobre amor ou procurar amor, mas simplesmente que eu deva viver e aproveitar a minha vida. 

     Arrisque-se! A vida passa!

     Li o anúncio e fiquei pensativo. Qualquer palavra é suficiente neste dia para me deixar contemplativo. Olhei para uma aranha no teto do quarto, respirei fundo, pois da vida me sentia farto, mas logo continuei com meus textos. Um dia ainda me aprumo, conserto sempre meus rumos, sempre me mudo e continuo eu mesmo. Sou luz que finda o escuro, mas sozinho tenho me sentido mais escuro. Perdi um pouco do medo de vagar a esmo. 

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O que é poesia?

Poesia é nada e também é tudo 
É exposição do corpo sem alma 
Da forma sem conteúdo 
Ao mesmo tempo é isso junto,
avesso e também separado 
A poesia falha em fazer sentido 
por ser apenas expressão natural 
Poesia é sorriso de um amigo 
Jantar na noite de natal 
Poesia é esperteza ligeira 
de quem sabe valorizar o que têm 
É a delicadeza da pureza 
Canto dos pássaros, barulho de trem
É silêncio ensurdecedor que fere
Gota de orvalho evaporando na pele
Poesia é palavra apoteótica forte
Capaz de falar sobre morte 
Esvanecer todos os medos seus 
É vislumbre de sorte 
Poder para você
ser 
seu próprio Deus
Poesia é tatuagem feita 
sem precisar significado
para significar
Poesia é arte abstrata,
profunda ou rasa 
Tela em branco
Quadro fora de lugar 
Poesia é o jeito
que você me olha 
toda vez que me encontra
É o jeito que você ri
quando eu te chamo de tonta
É qualquer coisa bela,
mas também vulgar 
É cinza, é aquarela,
é qualquer jeito de amar.

Resenha literária - O Retrato de Dorian Gray

     O livro O Retrato de Dorian Gray é a obra mais famosa do reconhecido poeta e escritor irlandês Oscar Wilde (1854 - 1900). 
     Acompanha-se a história de um jovem então inocente chamado Dorian Gray que têm o seu retrato pintado por um artista chamado Basílio Hallward. O pintor que havia encontrado na beleza de Gray a inspiração suprema de sua arte, encontra êxito em produzir sua obra-prima na forma de um quadro capaz de refletir toda a beleza pueril do rapaz. Contemplando-se em plenitude na obra de arte do pintor, Dorian lamenta-se sobre a inevitabilidade do tempo e sofre pela beleza que está condenado a perder com o passar dos anos e a chegada da velhice. É quando ele diz que daria tudo para que ficasse sempre jovem e o retrato envelhecesse em seu lugar. 
     Nunca poderia imaginar, porém, é que seu desejo caprichoso seria atendido. Influenciado pelo sempre arguto Lorde Henry (Harry), Dorian Gray adota uma visão hedonista sobre a vida e a maneira de vivê-la. Fortemente inspirado pelas ideias de seu melhor amigo qual também enxerga como uma espécie de sábio professor ("Lorde Henry nunca erra"), Dorian dedica sua vida pela busca de novas experiências e prazeres, concluindo até que os aprendizados importantes só surgem das experiências pessoais. Quando descobre o segredo de seu retrato, o rapaz se pega em diversas contradições intelectuais e morais, mas acaba optando pela preservação de sua imagem e de sua vida.
     O Retrato de Dorian Gray aborda de forma explícita a complexidade do ser humano e, sobretudo, desenvolve-se em um paralelo de construções e desconstruções de ideias supostamente imutáveis, debatendo incessantemente temas como o amor, a vaidade, os sentimentos, o casamento, as emoções, os pecados e acima de tudo a moral. Oscar Wilde cumpre bem sua função questionadora, bagunçando o leitor do começo ao fim, imiscuindo-se intimamente no questionamento de nossos valores. Acaso soubesse que possui a juventude eterna e que todas as consequências de seus atos vis não fossem sentidas diretamente e tão somente no rosto da alma exposta por meio de um quadro inacessível ao restante do mundo, como você viveria a sua vida? 

     ALERTA DE SPOILER!

     Ao final do livro, Dorian Gray se torna uma versão ainda mais arrogante e segura do que o sempre tão cheio de si Lorde Henry, mas arrepende-se de sua vida repleta de pecados e decide ser totalmente bom, completamente diferente do que costumava ser. Sempre pasmado quando se encontra com o seu retrato, cada vez mais odioso e horrendo, Dorian acredita que uma vida de boas ações possa consertar a sua alma, tornando o retrato belo outra vez como se a boa visão de sua própria imagem significasse a limpeza e redenção de sua alma. Quando tenta ser bom e averígua que o retrato está ainda pior, esfaqueia a imagem do retrato e é acometido por uma dor súbita e gritos desesperados são escutados pela região.  
     Quando os criados da casa chegam para verificar o estado de saúde do patrão, encontram um velho moribundo e de aspecto terrível e temível estirado ao chão, indubitavelmente morto e o retrato de Dorian Gray novamente em toda sua beleza, juventude e perfeição. 
                                                        Livro x Filme
     Comumente o filme falha em alcançar a complexidade da obra escrita e não acontece de maneira diferente em O Retrato de Dorian Gray. Tendo assistido ao filme meses antes de iniciar o livro, pude perceber que as características principais da crítica literária são mantidas, mas há diferenças não tão relevantes como a aparência de Dorian até diferenças bruscas como o desfecho da trama. Tendo isso em consideração, é impossível admitir que quem assistiu o filme tenha a exata noção do poder questionador deste livro, ainda que sumariamente entenda a crítica principal.
Opinião 
     O Retrato de Dorian Gray não é um livro difícil de ler, mas por vezes é massante. Eu me peguei travado em algumas partes e demorei a dar continuidade (aqui admito que tenho culpa por conta da rotina, afazeres e distrações), mas é uma crítica direta à sociedade e aos comportamentos mecânicos e repetitivos das pessoas que por muitas vezes ignoram a própria vida e não a vivem. O livro é um prato cheio para quem também gosta de boas citações, destacadas na sequência algumas de minhas favoritas, creio que todas feitas pelo Lorde Henry. 
     Influenciar uma pessoa é dar-lhe a nossa própria alma. O indivíduo deixa de pensar com os seus próprios pensamentos ou de arder com as suas próprias paixões. As suas virtudes não lhe são naturais. Os seus pecados, se é que existe tal coisa, são tomados de empréstimo. Torna-se o eco de uma música alheia, o ator de um papel que não foi escrito para ele. O objectivo da vida é o desenvolvimento próprio, a total percepção da própria natureza, é para isso que cada um de nós vem ao mundo. Hoje em dia as pessoas têm medo de si próprias. Esqueceram o maior de todos os deveres, o dever para consigo mesmos. É verdade que são caridosas. Alimentam os esfomeados e vestem os pobres. Mas as suas próprias almas morrem de fome e estão nuas. A coragem desapareceu da nossa raça e se calhar nunca a tivemos realmente. O temor à sociedade, que é a base da moral, e o temor a Deus, que é o segredo da religião, são as duas coisas que nos governam.
     Há coisas que são preciosas por não durarem
     A única maneira de se livrar de uma tentação é ceder a ela. 
     A obra mais famosa de Oscar Wilde, sem dúvidas, é conhecida e reconhecida com todos os seus méritos. Ler O Retrato de Dorian Gray é aceitar a provocação aos valores morais e aos conceitos  previamente estabelecidos, permitindo-se a uma nova reflexão sobre como viver a vida. 

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Gabriel Medina

     Dois anos e meio às vezes me soam como dois dias. Tenho tentado fazer a diferença enquanto o tempo é meu aliado, pois jamais me esqueço de que um dia será meu único inimigo. 

     Eu morava em outro apartamento e já nem sei se foi o antepenúltimo ou ainda antes disso. Eu me mudei seis vezes, mas à época, creio que ainda estivesse na quarta. Chegava cansado do meu trabalho, qual faço também enorme confusão sobre qual era, pois troquei de empregos várias vezes nos últimos anos. Largava-me na sala, apenas para fazer nada ou qualquer coisa não tão importante assim. Até que o interfone tocava.

     Não havia dúvidas de que era o porteiro. Tudo começou em um dia como outro qualquer. Desculpa, mas você por acaso não pode arrumar a televisão do senhor Medina? Eu aceitei, é claro, se na vida você não puder tentar arrumar uma televisão, o que é que você pode? 

     Acontece que o senhor Medina sempre perdia a batalha contra a televisão e quando eu não podia ajudá-lo, quem o ajudava era o meu irmão Caio. Quando o Caio não podia, era eu. Vai lá. É a sua vez de ajudar o Medina. Em uma espécie de rodízio silencioso e sem reclamações, nós nos revezávamos para ajudá-lo.

     Um cachorro idoso nos recebia, ornando com o casal de idosos do terceiro andar. Às vezes ele fedia como quem pisava no próprio mijo, mas o que se pode fazer? Os cães envelhecem também. Geralmente ele latia bastante e ainda bem, pois é preciso proteger os donos da casa. Que o meu cachorro envelheça juntamente com suas manias! 

     A esposa do senhor Medina nunca me disse seu nome, mas sempre agradecia toda vez que eu arrumava a televisão. Sorridente e meio constrangida, ela dizia: agradece o menino, Gabriel. Agradece o menino. 

     Algumas vezes eles apertavam o input quando queriam desligar a TV. Outras vezes desligavam o sinal da NET. E quando eu arrumava, o Medina me olhava desconfiado e sempre me perguntava: o que foi que você fez? Como você arrumou? Eu explicava com calma, mesmo sabendo que ele se esqueceria. Havia certa ironia em saber que sabia mais sobre o velho Medina do que sobre seu homônimo surfista. 

     Nossas visitas eram tão frequentes que ele perguntava de vez em quando: você é o Caio? Você é aquele menino lá de cima? Você é o Daniel? E o porteiro sempre que interfonava dizia que ele pediu para chamar o Caio ou o Daniel ou o menino lá do nono andar. 

     Gabriel Medina sempre se vestia com calças sociais e sapatos marrons. Nunca o vi descalço ou usando chinelos e é impossível imaginar alguém mais avesso ao surf. A imagem do velho de bermudas era impossível. Será que eu serei um velho que usa bermudas? Ele também tinha um cabelo branco ligeiramente arrepiado, mas bem penteado com gel, como quem preserva a vaidade de maneira ritualística. 

     Mudei de casa mais algumas vezes e por algumas outras tantas vezes me compadeci de como deve ter sido penoso para o senhor Gabriel Medina o nosso sumiço. Será que isso é verdade ou ajudar um velho era alento para um rapaz quebradiço? 

     Sinto pesar-me o fardo de ter um coração. Tenho pensamentos grandiloquentes, mas há uma bagunça intermitente, interna e sem muita comoção. O senhor Medina com certeza encontrou rápido alguém para arrumar a sua televisão. Só espero que ele não assista canais de surf.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Tomates

     Vou ao mercado. Desço pelo elevador e entro no carro sem ligar a música. Sincronizar o bluetooth não é tão complicado como eu imaginava, aprendi dias antes, mas não me sinto paciente. Opto pelo silêncio e prossigo no meu caminho. Os campo-grandenses comem as faixas de sinalização como se estivessem com fome. Não é novidade, porém, impressiona-me a quantidade de erros básicos que cometem no trânsito. Estaciono, tranco o carro e entro no mercado. 

     A primeira coisa que faço é óbvia. Consulto minha lista de compras: tomate (3), cebola (3), maçã (2), ovos, suco (2), iogurte (5), pizza de frigideira (5), pão integral (1), leite. Decido que vou tentar fazer isso velozmente. Pego uma cesta para segurar minhas compras nas mãos, pois admito que pegar um carrinho seria exagero. Inicio minhas compras pelo tomate e o primeiro que pego parece zombar de mim.

     Que é que tenho para ser efetivamente zombado por um tomate? Escondo o tomate zombeteiro ao fundo e seleciono outro. O segundo tomate é incomumente vermelho escuro e isso me irrita. O terceiro é extravagantemente verde e isso não é certo. O quarto possui tantos machucados e cortes que parece ser um tomate que sofreu ao longo da vida. Como é a vida de um tomate sofredor? Respiro fundo e olho bem para cada tomate. Eles não me olham de volta. Escolho três que não me parecem tão ruins assim e sigo. 

     Pego três cebolas boas, duas maçãs adequadas e com facilidade acho o pão integral da única marca que gosto, mas o fim do mundo se anuncia junto com a traição do mercado. Os sucos não estão nas prateleiras de sempre, pergunto sobre o paradeiro das pizzas e sou informado de que elas estão esgotadas. O único iogurte que achei está vencido e me enraiveço com o preço do leite. Impaciente e quase sem escolhas, eu opto por levar duas cervejas, única promoção disponível, mas o que me tira do sério é que resolveram mexer até no mercado. A mania idiota de mudar tudo de lugar!

     Uma criança me encara enquanto pago. Loiro, magro e provavelmente com uns nove ou dez anos de idade. Ele me olha fixamente e eu faço um sinal positivo para ele. Como quem antecipa meu dia de estresse, ele pega repentinamente o saco de tomates do carrinho de sua mãe e me mostra. Rose, a atendente, observei bem no crachá, estende o meu troco enquanto eu abafo a vontade de rir. O loirinho corre de volta para os corredores do mercado. O que anuvia minha mente repentinamente desaparece. 

- Boa noite, senhor. - Fala a mulher com uma voz agradável e simultaneamente mecânica. 
- Boa noite, Rose. Tenha um ótimo resto de semana. - O rosto de Rose se ilumina e ela fica feliz com quem pôde notá-la. O menino salvou a minha noite e me protegeu dos tomates; eu fiz o meu dever e fui educado como se deve, mas como sei que raramente são. 

     Pego minhas compras, volto para o meu carro e sigo para a minha casa. Não quero passar perto de tomates hoje. Penso em prometer que não vou me estressar mais durante a semana, direciono meus pensamentos para o café da manhã de amanhã e sou tomado por uma súbita decepção. Esqueci os ovos. 

Prólogo - A última parada antes do começo do fim

     Resolvi hoje iniciar os relatos do capítulo final do meu começo. A intenção é antecipar o gosto do meu final, seja ele de alegrias ou tristezas, pois tudo na minha vida convergiu para os eventos que acontecerão nos próximos dias. Não acabou ainda. Como o ciclo da lagarta na transformação em borboleta, quero-me ver alado para sentir que posso me desnudar de uma vez por todas, mudança completa e inequívoca. Já rastejei por tempo demais. Disseram-me que quanto mais você mostra o que sente por dentro, maior é a sua liberdade, não? O relato de meus dias cumprirá-se então se eu for apenas livre, ainda que falhe em alcançar a felicidade. Conscientizei-me de coisas estranhas no processo. Cada pessoa persegue algo, ainda que não saiba, mas nem todo mundo deseja ser feliz. Você vai descobrir que no início disso tudo eu tinha uma família e agora ela já não é a mesma; vai saber que eu tinha um objetivo único e certo, mas que eu talvez tenha mudado no caminho de atingi-lo, por tê-lo atingido ou tenha apenas mudado o objeto alvo de meus ávidos olhos. Se fracassei ou não, você saberá depois. Descobri-me expansivo e compreendi minhas superficialidades. Livrei-me de quase todas. Contarei-lhes que amei três vezes e que achei que amei algumas tantas outras e você entenderá de como fui do homem que matava o charme para alguém com a presença óbvia de quem se impõe sem a necessidade de se impor. Antecipo que morei sozinho duas vezes e acompanhado uma. Também lidei com perdas definitivas na vida e na morte. Sorte minha é que considero meu apartamento confortável, embora deixe a desejar no luxo. Tornei-me afável, mas às vezes ainda sou esdrúxulo. A minha sensibilidade se aguça mais com o passar dos dias e meus novos talentos brotam como ervas daninhas. Vivi algumas histórias e cometi erros, mas sobretudo estive por aí tentando tentar o meu melhor. Anos aconteceram dentro de meses e houve noites que jurei sentir o sabor da eternidade nos sucessos e revezes, ainda que o para sempre seja uma ilusão pueril existente nos corações mais doces. Talvez você se antipatize com minhas excentricidades, porém, não pretendo escondê-las. Só tomo café em xícaras de barro, água em copos de plástico e sonho em ser uma estrela, sem metáforas. Trabalhei e amei até a exaustão. Fui falar de amor e escrevi uma canção. Personifiquei os quatro Erotes de uma vez em flertes perfeitos e outras vezes fui patético como uma criança perdida. Calei-me na hora da fala e falei quando todo mundo se cala. Fiz barulho nos cinemas, gastando o meu fôlego até a última cena. Equacionei mais do que Pitágoras, sonhei mais que Dom Quixote, mas falhei em ser outro. Emagreci, engordei, sorri e chorei na esperança vã de que Fernando Pessoa estivesse certo, mas a dor me fez desconfiar. Tudo vale a pena quando a alma não é pequena? Agora me acompanhem numa jornada de volta até que cheguemos a este ponto. Se não me notaram até aqui, enfim, agora muitas coisas vão saber. O próximo capítulo começa com o meu nome. Prazer em te conhecer!

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Para onde seus olhos olham?

     Furacões de terras longínquas fizeram com que eu evitasse alguns caminhos. O dia todo decorria em câmera lenta. Anteciparia qualquer espécie de sinal divino acaso existisse, mas meus olhos ainda cansados não acharam nada tão diferente assim. 

     Adianto-me nestes relatos até a parte qual não me pertence, mas me toca mais profundamente. Foi durante o almoço que fitei os olhos azuis de meu avô encarando fixamente a parede. Diversas vozes se conversavam na mesa parcialmente cheia, mas se o corpo do meu velho estava presente, sua memória parecia completamente alheia. Para onde seus olhos olhavam?

     Inigualavelmente distantes como poucas coisas que vi na vida. Contemplava tempos de antes e lembranças ainda não esquecidas? Tudo ali e você tão perto de nada. Altivo e enérgico outrora, olhos estranhos repousam olhares cheios de intenções sobre você agora. Ó Senhor Cruel chamado Tempo, o que foi que fizeste com os sacros momentos? Deus Maior que condena todos ao Esquecimento? Ele soa saudosista por melhores horas, mas não demonstra qualquer tipo de tristeza ou vileza. Aceita o fardo cobrado pela vida em um silêncio ensurdecedor. Para onde seus olhos olham? Buscam algum tipo de lembrança melancólica ou reabrem cicatrizes de dor? 

     Olho-o sem parar, mas ele ainda não me notou. Há algo na cor de oceano que me faz sentir que não me engano e tudo isso me leva a estremecer. Sei que vou falhar em tentar nos descrever. O que é que fica aprisionado aí dentro que não consegue mais buscar o seu lugar? O que restou quando todo o seu corpo começou a falhar?

     O que faz aí? O que tanto busca no passado? Será que procura novas maneiras para se ferir? Será que medita insistentemente sobre a hora de partir? Discreto como um personagem literário, antes, era como se ninguém soubesse desnudá-lo ou constrangê-lo. Parecia inequivocamente superior. Parecia certamente avesso à dor. Odeia o pedantismo. Prefere que brinquem com sua queda do que falem sobre o seu declínio. Não o machuquem mais. Acaso não percebeu que ele ainda é um sofredor silencioso?

     Nem todo mundo é pelas palavras e pelo alarde. Alguns morrem quietos enquanto outros tão escandalosamente ardem. Teus ideais agora rastejam no chão. Há quem te entenda e respeite, mas há poucos que não sintam qualquer comoção. Você odeia que sintam pena, mas procura com seus olhos perscrutadores quaisquer resquícios de negação. Para onde seus olhos olham, diga-me, senhor? Será que buscam a felicidade passageira e perdida em outras décadas esquecidas, descanso na loucura, doçuras perdidas, vestígios de amor?

     Teu porte agora é outro. Voz marcante, petulante e não obstante, seu novo eu é um sujeito rouco. Não. Sua risada grave ainda se espalha, mas você se sente migalha de algo que um dia foi inteiro. Pergunta-se se são preocupados por obrigação ou se são verdadeiros. Você se fere para saber se ainda sente algo pessoal? Você ainda ri de quem te olha de verdade? O que é que você quer nesses tantos instantes que antecederão ao fim? Que é que restou no mundo que você tanto deseja? Esses almoços te tornam feliz? Te orgulha ver a sua família reunida em volta da mesa? 

     Para mim são indiferentes os apelos das orações. Exagero-me na expressão de opiniões quais não tenho direito de me manifestar. Devemos falar sempre que sentimos a necessidade da fala ou estudar a hora certa de calar? Os próprios silêncios nos fazem mais sábios ou falsos? Os silêncios provam nossa maturidade ou nossa tolerância? Somos adeptos de qualquer vaga religião ou incertos em nossos absurdismos buscamos algo para tapear a solidão? Para onde seus olhos olham? Revolvem-se para dentro no intento de se perder da vida real? 

     Sol nefasto queima minha pele. Tantos oram pelos mortos, mas pelos vivos há quem zele? Cultura nova, obscura prova, compaixão, heróis, grãos de areia, lençóis, cantos de sereias, eles, nós, vil dança, inesperada criança, o jeito tão meigo que você sorri. Existe insegurança nos olhos mais bonitos que eu já vi? Não. Sombras o perseguem e você as enfrenta. Sabe que não pode vencê-las, mas ainda tenta. 

     A imensidão azul do par de olhos recai sobre mim. Observa-me apenas alguns instantes e logo solta a sentença: "Você está prestando atenção em mim. Acha que eu não entendo o que acontece por aqui". Docemente lhe respondo que a conversa alheia me enche de assombro e que estou tão imerso em outro plano que de tudo o mais me esqueci. Ele me olha sem temor ou hesitação. Quase sentiu um lampejo de raiva quando supôs que o que eu via nele era pena. Quando percebeu a verdade se distraiu e sorriu como quem sabe que inexiste confusão que valha a continuação da cena. 

     Ele se levantou com ajuda e eu me fiz de apoio até que ele estivesse em sua poltrona na sala. Sentamos lado a lado e ele não disse nada, mas me lembrei de quando ele havia dito que supunham que ele precisava de ajuda para fazer tudo. O sabor da memória me fez mudo. Cada idade têm seu prazer e sua dor, mas falho em antecipar da velhice essa dor. Não há empatia minha que me faça alcançá-lo. Não me testo e tampouco pretendo testá-lo. O café está pronto e vou buscá-lo. 

     Uma vida de tantos trabalhos e tantos esforços. A recompensa que todos alcançam é a debilidade dos já tão cansados corpos? A coluna se entorta, novos problemas surgem e encaramos a vida em contagem regressiva. Os ciclos se renovam e a vida precisa ser vivida. 

     Raridade secreta reside na solidão discreta e tentamos narrar nossos segredos, mas ninguém nos entende. Nas entrelinhas anunciei todos os meus medos, mas ninguém nunca me aprende. Hoje sou melhor e consigo mostrar um pedaço do meu valor. Algum dia alguém irá contemplar a imensidão do meu amor? Terei eu na velhice uma mesa cheia assim? Fixarei meus olhos castanhos em mundos tão estranhos enquanto me distraio de mim? 
     
     Furacões de terras longínquas agora se acalmam. Não sei se perdi os sinais divinos ou se eles simplesmente desapareceram. Todo o resto pareceu perder o brilho também. Sinto novas pontadas de dores, mas meus novos amores sempre vão e vêm. Um milhão e meio de pensamentos passam pela minha cabeça, eu tropeço e caio. Continuo vivendo de improviso, faço drama, mas nunca me ensaio. 

     Incógnita irreal me faz tentar ter a empatia para com tudo, mas às vezes opto pela compaixão com nada. Sou essencialmente bom, mas mudo quando me mudo e persisto muito mais voraz nas longas madrugadas. O sono aos poucos se apodera de meu corpo. Um deus invisível afaga meus cabelos, mas me vejo sozinho no reflexo do espelho. Um instinto de loucura sobe, mas ninguém nota. Já estou quase dormindo quando percebo que ainda não sei para onde aqueles olhos olham. 

domingo, 27 de outubro de 2019

Intervalo

     Eu acho que, enfim, comecei a entender os começos quando olhei para os fins e os finais quando olhei para tudo que ainda se iniciava. 

     Olha, eu não sei se você sabe exatamente sobre as coisas que pensa saber. Talvez sim, mas existe uma possibilidade que suas opiniões sejam todas vagas e de que seus preceitos sejam dotados de vícios e suas atitudes repletas de fugas, mas independentemente da sua crença, do seu consentimento, essa coisa que nos impele a agir ou a deixar de agir, esse sussurro fantasmagórico de outra dimensão nos impele rumo ao que chamamos de Vida. 

     Há maneiras de aprender o que não foi aprendido e a gente só finge se esquecer do conhecimento que outrora foi obtido. Tenho sido ensinado por espíritos de mundos distantes que se alojaram há tempos em meu coração. Será que tenho? Será que essas almas todas que desfilam flutuantes diante de meus olhos não passam de devaneios da minha imaginação? Acaso poderia essa lucidez ser apenas mais uma invenção?

     Gire o mundo, gire-se inteiro na minha cabeça. Lembre-se de tudo antes de que um dia se esqueça. Às vezes queria ver o mundo como os grandes escritores do passado. A sensibilidade com a qual Exupéry via tudo e a beleza da sutileza que era quase palpável em seus relatos. Tantas eram suas belas descrições que pareciam transformar em ficções indubitáveis fatos. 

     Tenho sonhos irrealizáveis nesta vida. Decidi que não posso me punir por me sentir como me sinto. A melhor ilusão é um absurdo apoteótico da mentira, eu perco muito, pois não minto. Que é que sinto então? Esse eco estranho é o que ensombra meu coração?

     Não se perca nas derrotas e no sentimento de insuficiência. A vontade de se punir pela sensação de que somos incapazes de perseverar sobre qualquer coisa existe, mas é insubstancial. Uma espécie de fracasso sem identidade nos sonda e somos dominados pela letargia. É como se um cansaço invisível pesasse seus ossos e te impossibilitasse lá no âmago de fazer o que você sabe que pode fazer.

     Não se detenha por achar que a vida não pode acontecer de maneira diferente da qual você imaginou. Tanta gente cospe pra cima e acerta a própria testa, mas surpreendentemente isso não quer dizer necessariamente que a pessoa fique arrependida. Amadurecer é perceber que nós mudamos e que somos capazes de potencializar nossas novas versões. 

     Ainda com vinte e sete anos de idade, eu pouco sei do que sei, mas consigo enxergar o que há de especial em cada pessoa. Eu era antigamente um menino introspectivo que sabia aproveitar a solidão, extremamente profissional em absorver quaisquer que fossem as emoções transmitidas pelos outros. Os outros, entretanto, raramente notavam que eu os notava.

     O intervalar das minhas sensações era inexistente. Sonhava acordado e quando dormia vivia outras vidas diferentes. Havia certa coisa sentida que ninguém parecia entender. Anos mais tarde descobri que esses segredos da alma são os que definem você. 

     Você se rasga por aí e se derrama e se deixa ser visto pelo mundo como veio. Alguns dirão que sua naturalidade é vulgar ou que suas vulgaridades são antinaturais, mas quando você se torna cônscio de quem é, percebe-se e percebe que opiniões alheias já não importam tanto assim. Alguém superficial te acusa de ser superficial. O que é que te faz ficar mal assim? 

     O meu desenvolvimento pessoal sempre foi embasado em sensações. Pensava sobre extensões de sensibilidades alheias e sobre como as pessoas pensavam com os seus corações. Nunca fui escravo da razão. Eu via beleza e sabia apreciá-la antes mesmo de saber significá-la. 

     O ânimo de resgate do Universo que existe no encontro com o meu cão, o sono felino que repousa ao meu lado e me fita com olhos amorosos e preguiçosos, a xícara de café em um dia de chuva ou um casal que empurra um carrinho com um bebê dentro enquanto fita vitrines impossivelmente caras. A vida sempre acontece, mas notá-la é coisa rara. 

     Assim, intervalo-me neste domingo em uma grande arfada. A respiração profunda é necessária e viso a nova semana que está prestes a começar. Vou alimentar meus bichos, organizar o meu quarto e espero que tranquilamente consiga me deitar. 

     É provável ainda que antes de adormecer meus pensamentos passeiem à toa. Perdidos no escuro, espaço-tempo seguro, buscando-se em outra pessoa.