quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Gabriel Medina

     Dois anos e meio às vezes me soam como dois dias. Tenho tentado fazer a diferença enquanto o tempo é meu aliado, pois jamais me esqueço de que um dia será meu único inimigo. 

     Eu morava em outro apartamento e já nem sei se foi o antepenúltimo ou ainda antes disso. Eu me mudei seis vezes, mas à época, creio que ainda estivesse na quarta. Chegava cansado do meu trabalho, qual faço também enorme confusão sobre qual era, pois troquei de empregos várias vezes nos últimos anos. Largava-me na sala, apenas para fazer nada ou qualquer coisa não tão importante assim. Até que o interfone tocava.

     Não havia dúvidas de que era o porteiro. Tudo começou em um dia como outro qualquer. Desculpa, mas você por acaso não pode arrumar a televisão do senhor Medina? Eu aceitei, é claro, se na vida você não puder tentar arrumar uma televisão, o que é que você pode? 

     Acontece que o senhor Medina sempre perdia a batalha contra a televisão e quando eu não podia ajudá-lo, quem o ajudava era o meu irmão Caio. Quando o Caio não podia, era eu. Vai lá. É a sua vez de ajudar o Medina. Em uma espécie de rodízio silencioso e sem reclamações, nós nos revezávamos para ajudá-lo.

     Um cachorro idoso nos recebia, ornando com o casal de idosos do terceiro andar. Às vezes ele fedia como quem pisava no próprio mijo, mas o que se pode fazer? Os cães envelhecem também. Geralmente ele latia bastante e ainda bem, pois é preciso proteger os donos da casa. Que o meu cachorro envelheça juntamente com suas manias! 

     A esposa do senhor Medina nunca me disse seu nome, mas sempre agradecia toda vez que eu arrumava a televisão. Sorridente e meio constrangida, ela dizia: agradece o menino, Gabriel. Agradece o menino. 

     Algumas vezes eles apertavam o input quando queriam desligar a TV. Outras vezes desligavam o sinal da NET. E quando eu arrumava, o Medina me olhava desconfiado e sempre me perguntava: o que foi que você fez? Como você arrumou? Eu explicava com calma, mesmo sabendo que ele se esqueceria. Havia certa ironia em saber que sabia mais sobre o velho Medina do que sobre seu homônimo surfista. 

     Nossas visitas eram tão frequentes que ele perguntava de vez em quando: você é o Caio? Você é aquele menino lá de cima? Você é o Daniel? E o porteiro sempre que interfonava dizia que ele pediu para chamar o Caio ou o Daniel ou o menino lá do nono andar. 

     Gabriel Medina sempre se vestia com calças sociais e sapatos marrons. Nunca o vi descalço ou usando chinelos e é impossível imaginar alguém mais avesso ao surf. A imagem do velho de bermudas era impossível. Será que eu serei um velho que usa bermudas? Ele também tinha um cabelo branco ligeiramente arrepiado, mas bem penteado com gel, como quem preserva a vaidade de maneira ritualística. 

     Mudei de casa mais algumas vezes e por algumas outras tantas vezes me compadeci de como deve ter sido penoso para o senhor Gabriel Medina o nosso sumiço. Será que isso é verdade ou ajudar um velho era alento para um rapaz quebradiço? 

     Sinto pesar-me o fardo de ter um coração. Tenho pensamentos grandiloquentes, mas há uma bagunça intermitente, interna e sem muita comoção. O senhor Medina com certeza encontrou rápido alguém para arrumar a sua televisão. Só espero que ele não assista canais de surf.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Tomates

     Vou ao mercado. Desço pelo elevador e entro no carro sem ligar a música. Sincronizar o bluetooth não é tão complicado como eu imaginava, aprendi dias antes, mas não me sinto paciente. Opto pelo silêncio e prossigo no meu caminho. Os campo-grandenses comem as faixas de sinalização como se estivessem com fome. Não é novidade, porém, impressiona-me a quantidade de erros básicos que cometem no trânsito. Estaciono, tranco o carro e entro no mercado. 

     A primeira coisa que faço é óbvia. Consulto minha lista de compras: tomate (3), cebola (3), maçã (2), ovos, suco (2), iogurte (5), pizza de frigideira (5), pão integral (1), leite. Decido que vou tentar fazer isso velozmente. Pego uma cesta para segurar minhas compras nas mãos, pois admito que pegar um carrinho seria exagero. Inicio minhas compras pelo tomate e o primeiro que pego parece zombar de mim.

     Que é que tenho para ser efetivamente zombado por um tomate? Escondo o tomate zombeteiro ao fundo e seleciono outro. O segundo tomate é incomumente vermelho escuro e isso me irrita. O terceiro é extravagantemente verde e isso não é certo. O quarto possui tantos machucados e cortes que parece ser um tomate que sofreu ao longo da vida. Como é a vida de um tomate sofredor? Respiro fundo e olho bem para cada tomate. Eles não me olham de volta. Escolho três que não me parecem tão ruins assim e sigo. 

     Pego três cebolas boas, duas maçãs adequadas e com facilidade acho o pão integral da única marca que gosto, mas o fim do mundo se anuncia junto com a traição do mercado. Os sucos não estão nas prateleiras de sempre, pergunto sobre o paradeiro das pizzas e sou informado de que elas estão esgotadas. O único iogurte que achei está vencido e me enraiveço com o preço do leite. Impaciente e quase sem escolhas, eu opto por levar duas cervejas, única promoção disponível, mas o que me tira do sério é que resolveram mexer até no mercado. A mania idiota de mudar tudo de lugar!

     Uma criança me encara enquanto pago. Loiro, magro e provavelmente com uns nove ou dez anos de idade. Ele me olha fixamente e eu faço um sinal positivo para ele. Como quem antecipa meu dia de estresse, ele pega repentinamente o saco de tomates do carrinho de sua mãe e me mostra. Rose, a atendente, observei bem no crachá, estende o meu troco enquanto eu abafo a vontade de rir. O loirinho corre de volta para os corredores do mercado. O que anuvia minha mente repentinamente desaparece. 

- Boa noite, senhor. - Fala a mulher com uma voz agradável e simultaneamente mecânica. 
- Boa noite, Rose. Tenha um ótimo resto de semana. - O rosto de Rose se ilumina e ela fica feliz com quem pôde notá-la. O menino salvou a minha noite e me protegeu dos tomates; eu fiz o meu dever e fui educado como se deve, mas como sei que raramente são. 

     Pego minhas compras, volto para o meu carro e sigo para a minha casa. Não quero passar perto de tomates hoje. Penso em prometer que não vou me estressar mais durante a semana, direciono meus pensamentos para o café da manhã de amanhã e sou tomado por uma súbita decepção. Esqueci os ovos. 

Prólogo - A última parada antes do começo do fim

     Resolvi hoje iniciar os relatos do capítulo final do meu começo. A intenção é antecipar o gosto do meu final, seja ele de alegrias ou tristezas, pois tudo na minha vida convergiu para os eventos que acontecerão nos próximos dias. Não acabou ainda. Como o ciclo da lagarta na transformação em borboleta, quero-me ver alado para sentir que posso me desnudar de uma vez por todas, mudança completa e inequívoca. Já rastejei por tempo demais. Disseram-me que quanto mais você mostra o que sente por dentro, maior é a sua liberdade, não? O relato de meus dias cumprirá-se então se eu for apenas livre, ainda que falhe em alcançar a felicidade. Conscientizei-me de coisas estranhas no processo. Cada pessoa persegue algo, ainda que não saiba, mas nem todo mundo deseja ser feliz. Você vai descobrir que no início disso tudo eu tinha uma família e agora ela já não é a mesma; vai saber que eu tinha um objetivo único e certo, mas que eu talvez tenha mudado no caminho de atingi-lo, por tê-lo atingido ou tenha apenas mudado o objeto alvo de meus ávidos olhos. Se fracassei ou não, você saberá depois. Descobri-me expansivo e compreendi minhas superficialidades. Livrei-me de quase todas. Contarei-lhes que amei três vezes e que achei que amei algumas tantas outras e você entenderá de como fui do homem que matava o charme para alguém com a presença óbvia de quem se impõe sem a necessidade de se impor. Antecipo que morei sozinho duas vezes e acompanhado uma. Também lidei com perdas definitivas na vida e na morte. Sorte minha é que considero meu apartamento confortável, embora deixe a desejar no luxo. Tornei-me afável, mas às vezes ainda sou esdrúxulo. A minha sensibilidade se aguça mais com o passar dos dias e meus novos talentos brotam como ervas daninhas. Vivi algumas histórias e cometi erros, mas sobretudo estive por aí tentando tentar o meu melhor. Anos aconteceram dentro de meses e houve noites que jurei sentir o sabor da eternidade nos sucessos e revezes, ainda que o para sempre seja uma ilusão pueril existente nos corações mais doces. Talvez você se antipatize com minhas excentricidades, porém, não pretendo escondê-las. Só tomo café em xícaras de barro, água em copos de plástico e sonho em ser uma estrela, sem metáforas. Trabalhei e amei até a exaustão. Fui falar de amor e escrevi uma canção. Personifiquei os quatro Erotes de uma vez em flertes perfeitos e outras vezes fui patético como uma criança perdida. Calei-me na hora da fala e falei quando todo mundo se cala. Fiz barulho nos cinemas, gastando o meu fôlego até a última cena. Equacionei mais do que Pitágoras, sonhei mais que Dom Quixote, mas falhei em ser outro. Emagreci, engordei, sorri e chorei na esperança vã de que Fernando Pessoa estivesse certo, mas a dor me fez desconfiar. Tudo vale a pena quando a alma não é pequena? Agora me acompanhem numa jornada de volta até que cheguemos a este ponto. Se não me notaram até aqui, enfim, agora muitas coisas vão saber. O próximo capítulo começa com o meu nome. Prazer em te conhecer!

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Para onde seus olhos olham?

     Furacões de terras longínquas fizeram com que eu evitasse alguns caminhos. O dia todo decorria em câmera lenta. Anteciparia qualquer espécie de sinal divino acaso existisse, mas meus olhos ainda cansados não acharam nada tão diferente assim. 

     Adianto-me nestes relatos até a parte qual não me pertence, mas me toca mais profundamente. Foi durante o almoço que fitei os olhos azuis de meu avô encarando fixamente a parede. Diversas vozes se conversavam na mesa parcialmente cheia, mas se o corpo do meu velho estava presente, sua memória parecia completamente alheia. Para onde seus olhos olhavam?

     Inigualavelmente distantes como poucas coisas que vi na vida. Contemplava tempos de antes e lembranças ainda não esquecidas? Tudo ali e você tão perto de nada. Altivo e enérgico outrora, olhos estranhos repousam olhares cheios de intenções sobre você agora. Ó Senhor Cruel chamado Tempo, o que foi que fizeste com os sacros momentos? Deus Maior que condena todos ao Esquecimento? Ele soa saudosista por melhores horas, mas não demonstra qualquer tipo de tristeza ou vileza. Aceita o fardo cobrado pela vida em um silêncio ensurdecedor. Para onde seus olhos olham? Buscam algum tipo de lembrança melancólica ou reabrem cicatrizes de dor? 

     Olho-o sem parar, mas ele ainda não me notou. Há algo na cor de oceano que me faz sentir que não me engano e tudo isso me leva a estremecer. Sei que vou falhar em tentar nos descrever. O que é que fica aprisionado aí dentro que não consegue mais buscar o seu lugar? O que restou quando todo o seu corpo começou a falhar?

     O que faz aí? O que tanto busca no passado? Será que procura novas maneiras para se ferir? Será que medita insistentemente sobre a hora de partir? Discreto como um personagem literário, antes, era como se ninguém soubesse desnudá-lo ou constrangê-lo. Parecia inequivocamente superior. Parecia certamente avesso à dor. Odeia o pedantismo. Prefere que brinquem com sua queda do que falem sobre o seu declínio. Não o machuquem mais. Acaso não percebeu que ele ainda é um sofredor silencioso?

     Nem todo mundo é pelas palavras e pelo alarde. Alguns morrem quietos enquanto outros tão escandalosamente ardem. Teus ideais agora rastejam no chão. Há quem te entenda e respeite, mas há poucos que não sintam qualquer comoção. Você odeia que sintam pena, mas procura com seus olhos perscrutadores quaisquer resquícios de negação. Para onde seus olhos olham, diga-me, senhor? Será que buscam a felicidade passageira e perdida em outras décadas esquecidas, descanso na loucura, doçuras perdidas, vestígios de amor?

     Teu porte agora é outro. Voz marcante, petulante e não obstante, seu novo eu é um sujeito rouco. Não. Sua risada grave ainda se espalha, mas você se sente migalha de algo que um dia foi inteiro. Pergunta-se se são preocupados por obrigação ou se são verdadeiros. Você se fere para saber se ainda sente algo pessoal? Você ainda ri de quem te olha de verdade? O que é que você quer nesses tantos instantes que antecederão ao fim? Que é que restou no mundo que você tanto deseja? Esses almoços te tornam feliz? Te orgulha ver a sua família reunida em volta da mesa? 

     Para mim são indiferentes os apelos das orações. Exagero-me na expressão de opiniões quais não tenho direito de me manifestar. Devemos falar sempre que sentimos a necessidade da fala ou estudar a hora certa de calar? Os próprios silêncios nos fazem mais sábios ou falsos? Os silêncios provam nossa maturidade ou nossa tolerância? Somos adeptos de qualquer vaga religião ou incertos em nossos absurdismos buscamos algo para tapear a solidão? Para onde seus olhos olham? Revolvem-se para dentro no intento de se perder da vida real? 

     Sol nefasto queima minha pele. Tantos oram pelos mortos, mas pelos vivos há quem zele? Cultura nova, obscura prova, compaixão, heróis, grãos de areia, lençóis, cantos de sereias, eles, nós, vil dança, inesperada criança, o jeito tão meigo que você sorri. Existe insegurança nos olhos mais bonitos que eu já vi? Não. Sombras o perseguem e você as enfrenta. Sabe que não pode vencê-las, mas ainda tenta. 

     A imensidão azul do par de olhos recai sobre mim. Observa-me apenas alguns instantes e logo solta a sentença: "Você está prestando atenção em mim. Acha que eu não entendo o que acontece por aqui". Docemente lhe respondo que a conversa alheia me enche de assombro e que estou tão imerso em outro plano que de tudo o mais me esqueci. Ele me olha sem temor ou hesitação. Quase sentiu um lampejo de raiva quando supôs que o que eu via nele era pena. Quando percebeu a verdade se distraiu e sorriu como quem sabe que inexiste confusão que valha a continuação da cena. 

     Ele se levantou com ajuda e eu me fiz de apoio até que ele estivesse em sua poltrona na sala. Sentamos lado a lado e ele não disse nada, mas me lembrei de quando ele havia dito que supunham que ele precisava de ajuda para fazer tudo. O sabor da memória me fez mudo. Cada idade têm seu prazer e sua dor, mas falho em antecipar da velhice essa dor. Não há empatia minha que me faça alcançá-lo. Não me testo e tampouco pretendo testá-lo. O café está pronto e vou buscá-lo. 

     Uma vida de tantos trabalhos e tantos esforços. A recompensa que todos alcançam é a debilidade dos já tão cansados corpos? A coluna se entorta, novos problemas surgem e encaramos a vida em contagem regressiva. Os ciclos se renovam e a vida precisa ser vivida. 

     Raridade secreta reside na solidão discreta e tentamos narrar nossos segredos, mas ninguém nos entende. Nas entrelinhas anunciei todos os meus medos, mas ninguém nunca me aprende. Hoje sou melhor e consigo mostrar um pedaço do meu valor. Algum dia alguém irá contemplar a imensidão do meu amor? Terei eu na velhice uma mesa cheia assim? Fixarei meus olhos castanhos em mundos tão estranhos enquanto me distraio de mim? 
     
     Furacões de terras longínquas agora se acalmam. Não sei se perdi os sinais divinos ou se eles simplesmente desapareceram. Todo o resto pareceu perder o brilho também. Sinto novas pontadas de dores, mas meus novos amores sempre vão e vêm. Um milhão e meio de pensamentos passam pela minha cabeça, eu tropeço e caio. Continuo vivendo de improviso, faço drama, mas nunca me ensaio. 

     Incógnita irreal me faz tentar ter a empatia para com tudo, mas às vezes opto pela compaixão com nada. Sou essencialmente bom, mas mudo quando me mudo e persisto muito mais voraz nas longas madrugadas. O sono aos poucos se apodera de meu corpo. Um deus invisível afaga meus cabelos, mas me vejo sozinho no reflexo do espelho. Um instinto de loucura sobe, mas ninguém nota. Já estou quase dormindo quando percebo que ainda não sei para onde aqueles olhos olham. 

domingo, 27 de outubro de 2019

Intervalo

     Eu acho que, enfim, comecei a entender os começos quando olhei para os fins e os finais quando olhei para tudo que ainda se iniciava. 

     Olha, eu não sei se você sabe exatamente sobre as coisas que pensa saber. Talvez sim, mas existe uma possibilidade que suas opiniões sejam todas vagas e de que seus preceitos sejam dotados de vícios e suas atitudes repletas de fugas, mas independentemente da sua crença, do seu consentimento, essa coisa que nos impele a agir ou a deixar de agir, esse sussurro fantasmagórico de outra dimensão nos impele rumo ao que chamamos de Vida. 

     Há maneiras de aprender o que não foi aprendido e a gente só finge se esquecer do conhecimento que outrora foi obtido. Tenho sido ensinado por espíritos de mundos distantes que se alojaram há tempos em meu coração. Será que tenho? Será que essas almas todas que desfilam flutuantes diante de meus olhos não passam de devaneios da minha imaginação? Acaso poderia essa lucidez ser apenas mais uma invenção?

     Gire o mundo, gire-se inteiro na minha cabeça. Lembre-se de tudo antes de que um dia se esqueça. Às vezes queria ver o mundo como os grandes escritores do passado. A sensibilidade com a qual Exupéry via tudo e a beleza da sutileza que era quase palpável em seus relatos. Tantas eram suas belas descrições que pareciam transformar em ficções indubitáveis fatos. 

     Tenho sonhos irrealizáveis nesta vida. Decidi que não posso me punir por me sentir como me sinto. A melhor ilusão é um absurdo apoteótico da mentira, eu perco muito, pois não minto. Que é que sinto então? Esse eco estranho é o que ensombra meu coração?

     Não se perca nas derrotas e no sentimento de insuficiência. A vontade de se punir pela sensação de que somos incapazes de perseverar sobre qualquer coisa existe, mas é insubstancial. Uma espécie de fracasso sem identidade nos sonda e somos dominados pela letargia. É como se um cansaço invisível pesasse seus ossos e te impossibilitasse lá no âmago de fazer o que você sabe que pode fazer.

     Não se detenha por achar que a vida não pode acontecer de maneira diferente da qual você imaginou. Tanta gente cospe pra cima e acerta a própria testa, mas surpreendentemente isso não quer dizer necessariamente que a pessoa fique arrependida. Amadurecer é perceber que nós mudamos e que somos capazes de potencializar nossas novas versões. 

     Ainda com vinte e sete anos de idade, eu pouco sei do que sei, mas consigo enxergar o que há de especial em cada pessoa. Eu era antigamente um menino introspectivo que sabia aproveitar a solidão, extremamente profissional em absorver quaisquer que fossem as emoções transmitidas pelos outros. Os outros, entretanto, raramente notavam que eu os notava.

     O intervalar das minhas sensações era inexistente. Sonhava acordado e quando dormia vivia outras vidas diferentes. Havia certa coisa sentida que ninguém parecia entender. Anos mais tarde descobri que esses segredos da alma são os que definem você. 

     Você se rasga por aí e se derrama e se deixa ser visto pelo mundo como veio. Alguns dirão que sua naturalidade é vulgar ou que suas vulgaridades são antinaturais, mas quando você se torna cônscio de quem é, percebe-se e percebe que opiniões alheias já não importam tanto assim. Alguém superficial te acusa de ser superficial. O que é que te faz ficar mal assim? 

     O meu desenvolvimento pessoal sempre foi embasado em sensações. Pensava sobre extensões de sensibilidades alheias e sobre como as pessoas pensavam com os seus corações. Nunca fui escravo da razão. Eu via beleza e sabia apreciá-la antes mesmo de saber significá-la. 

     O ânimo de resgate do Universo que existe no encontro com o meu cão, o sono felino que repousa ao meu lado e me fita com olhos amorosos e preguiçosos, a xícara de café em um dia de chuva ou um casal que empurra um carrinho com um bebê dentro enquanto fita vitrines impossivelmente caras. A vida sempre acontece, mas notá-la é coisa rara. 

     Assim, intervalo-me neste domingo em uma grande arfada. A respiração profunda é necessária e viso a nova semana que está prestes a começar. Vou alimentar meus bichos, organizar o meu quarto e espero que tranquilamente consiga me deitar. 

     É provável ainda que antes de adormecer meus pensamentos passeiem à toa. Perdidos no escuro, espaço-tempo seguro, buscando-se em outra pessoa. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Se um dia eu me tornar o bastante


Se um dia eu me tornar o bastante 
Digam que eu fiz milhares de poemas 
Esqueçam as besteiras que fiz antes
Junto com as desnecessárias cenas 
Se um dia eu me tornar o bastante
Digam para os que ficam que eu estou bem
Este relato não é póstumo, mas viverei além 
Se um dia eu me tornar o bastante
Lembrem-se de que eu amava dias cinzas, 
mas nunca fui meramente fosco 
Se me tornar velho não serei ranzinza 
Talvez apenas um pouco tosco 
 Se um dia eu me tornar o bastante
Observe calmamente o temporal 
Os raios caindo distantes 
Emoções como lindos diamantes
No seu coração só vendaval 
Se continuar olhando a sombra da garoa
Lembre-se de que eu amava tudo
Especialmente pessoas
Os olhos postos no vitral 
dirão que eu via o mundo de cima 
Amava tanto o Natal 
Era minha própria estação e clima 
Julgado por ser anormal 
Mestre perdido das rimas 
Desastrado quase gutural 
De percepções tão finas
Escravo das coisas que sente 
Viciado em cafeína  
Conquistando mulheres independentes 
Perdendo-se para jovens meninas 
Inconstante como o capricho 
Se um dia eu não for o bastante
Espero desaparecer em um vale de neve 
Se fracassar com meus sonhos infantes
Tomara que o vento me leve

A morte das hipóteses

     Recentemente fiquei preocupado. Primeiramente eu havia desistido de responder quaisquer que fossem as notificações no meu celular. Eu era um terreno logo após a chegada do meteoro. O meu rosto aviltava a destruição que eu sentia em minhas entranhas. Meus gestos mais simplistas eram, de um jeito ou de outro, dotados de extravagância. Personifiquei a catástrofe de viver. Colidi com o iceberg da minha vida. As pessoas no Titanic só notaram a colisão quando era tarde para evitá-la. Eu tracei a minha rota até a tragédia que se anunciava. Queria ver se meu corpo aguentava o impacto. Propositadamente fui de encontro ao que sabia ter força para me derrubar. Às vezes me surpreendo com a minha tolice. 

     A vida é um caminhão em alta velocidade e você é um animal desavisado tentando atravessar a estrada em uma noite de chuva. Há coisas que talvez você possa fazer para não ser atropelado? Há como ser menos cego na perseguição dos objetivos? Há jeitos de viver sua vida de outro jeito? Há maneiras de fazer isso e ainda se sentir vivo? Provavelmente sim, mas você não quer fazer diferente. Não pode evitar o que nunca se mente e nem o pavor de não conseguir sentir o que não se sente. Será que vai mesmo se esquivar do instinto em buscar o outro lado? Será que vai tentar ainda que seja tão arriscado? Será que algum dia acha a felicidade por onde havia sequer imaginado? Só sei que evitei responder quem quer que fosse por quase uma semana. Escolhi a solidão. Meu pai reclamou comigo e achou até que eu estivesse bravo porque ele desmarcou o nosso almoço no sábado. Eu não estava bravo, mas ele achou que eu tivesse meus motivos. Ele tinha razão. 

     Ausentei-me pelo prolongamento de uma ansiedade inédita que insistia em permanecer em mim. Não tenho o hábito de punir outros pelas minhas instabilidades. O que eu havia feito pra me sentir assim? Martelei esses pensamentos primeiro por dias, depois por semanas. Era eu o vilão principal em minha própria trama? Eu, ocaso impossível que ocorre na noite mais densa? Eu tão leve, mas de medidas tão intensas? Tão certo de que segui um caminho retilíneo, será que me perdi em vestígios deixados por outros? Será que meus esforços são magnificentes ou ainda são poucos? A hesitação me tira a energia. Como posso aguentar até o final do dia? 

     Queria ter feito Jornalismo. À época passei com uma das melhores notas para o curso na universidade federal aqui da cidade, mas optar pelo Direito era optar por meu primeiro emprego de verdade, por me manter perto de muitas pessoas quais eu não queria me afastar. E no mais... Jornalismo não dá dinheiro, todos diziam. Não pensava de maneira mecânica, mas quem é que não quer ter dinheiro? À época também eu não era assim tão lúcido e cônscio da minha própria pessoa e isso me fez pensar por muito tempo sobre como as coisas teriam sido diferentes. Eu provavelmente escreveria melhor desde antes, mas será que teria tido a epifania que me fez querer ser escritor? Será que meu sonho de profissão hoje seria ainda o meu amor? 

     Uma vez não conta. Uma vez é nunca. Os erros que erramos são realmente erros? Se na vida não há ensaios, por que é que me olha de soslaio como se eu precisasse ter medo?

     As hipóteses abandonadas se acumulam em centenas. As que deixamos para trás, porém, nunca valem a pena. É preciso crescer e se tornar mais maduro. Na insistência em imaginar que a vida que deixei para trás seria melhor que essa, eu quase me perdi definitivamente. A vida é como é e a gente não pode ter pressa. Lembranças que foram fundamentais hoje são indiferentes. Certamente foi significativo e agora não é mais. A vida muda e sou grato ao que ficou para trás. Não sei o que vai ser amanhã, entretanto, o que importa é que o amanhã exista. A repetição dos dias não têm vencido meu tédio, mas sigo querendo acreditar. Amanhã é só mais um dia, mas eu ainda encontrarei o meu lugar. As hipóteses antigas morrerão e cabe a você enterrá-las ou cremá-las. Se achar prudente jogue os restos ao mar, mas com ou sem ritual, assegure-se de que elas não te incomodarão mais. 

     E assim, mesmo que distante, talvez quem sabe exista uma pessoa que ainda vá entender. Esse meu tão estranho jeito de amar. Essa impossível maneira de ser. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Máscara de oxigênio

     O senso de valor individual é imprescindível. Antes que você saia por aí tecendo mil elogios aos outros, recorde-se primeiro de que possui valor próprio. Elimine qualquer hipótese na qual você se diminua para exaltar os outros. A consciência do valor individual impede o ímpeto selvagem de autodestruição. O mundo não vai parar ao te ouvir choramingar em uma manhã de terça-feira, mas isso não quer dizer que você não deva chorar e tampouco quer dizer que não possa. Sempre que lágrimas insistirem em escorrer, permita que assim seja. 

     Não despreze seus inimigos, mas não aceite que sejam estúpidos. Talvez só um desafeto consiga te colocar de volta no seu lugar nos dias em que você estiver arrogante e muito cheio de si. É preciso que algo nos empurre para dentro de nós mesmos se o desvio de rota é demasiadamente agressivo. Mantenha-se humilde e ignore os invejosos. Eles não controlam o que fazem. Vá, mas vá com calma. Quando se aprende sobre cuidados, observa-se com paciência o que é sutil. O que soa frágil é quase sempre forte e você vai entender que são essas sutilezas disfarçadas que sustentam o mundo. 

     Amigos são essenciais. Enalteça-os! Ressalto a importância de que deve escolher os leais. Você pode até pensar que será apunhalado por eles, pois como seria diferente depois de tantas rasteiras, repetições e decepções? Seria útil se cada um de nós possuísse vários corações, não? Para que cada um pudesse aguentar a velha ferida ainda aberta. Para desejar o risco mesmo que sua vista para o destino esteja cega. A probabilidade mais incerta é essa dotada de esperança. Será que você já ouviu falar na afiada faca de dois gumes da confiança?

     Agora você arfa pesadamente, mas é preciso seguir. Que sigam por bons caminhos todos os que resolverem partir. Acabei me sentindo tão solitário, mas sou velho o bastante pare entender que tudo é temporário. O sentido da vida escoou pelo ralo em um banho de água quente. Quem ainda te nota? Quem ainda te sente? Suas novas ações são inibidas por experiências ressentidas e você evita o contato humano. Prefere o isolamento, mas no fundo sabe que o isolamento não cura. Se você não aparecer como vou penetrar sua armadura? Se você não aparecer como vou tocar sua pele e sentir a sua temperatura? Se você não aparecer como então consertar suas rachaduras? 

     O isolamento nunca resolve, mas é válido que você se afaste para escapar da loucura inevitável da vida de quando em quando. Máscaras de oxigênio, certo? Às vezes é bom focar no que a gente vê bem de perto. Exageramos nas chances que damos para as pessoas mais próximas de nós e confiamos sempre nas melhores intenções e versões que vislumbramos delas em uma relutância patética em não admitir que nem tudo é como gostaríamos que fosse. As pessoas que amamos são as que mais nos ferem. Algumas brigas se resolvem e outras não. Pessoas mudam e você vai aprender que é necessário se afastar até de gente que costumava amar. 

     As máscaras de oxigênio são fundamentais. Cuide-se! É preciso evitar a autossabotagem e crer nas próprias capacidades! Ame-se! É preciso gostar da cor do cabelo, da simetria do sorriso, do nariz que disseram ser grande demais. É necessário aceitar a própria voz e respeitar o próprio gosto. Você deve com urgência apreciar o seu próprio rosto. Quem não te entende costuma te julgar muito bobo ou apenas superficial. Você não deve escutá-los. Sabe sobre o que é essencial. Já é hora, enfim. Olhe para quem te olha. Dê uma chance para novas histórias. Erga-se quando tudo parecer perdido! Prove o seu valor e mostre como reage seu orgulho ferido! Converse sobre o que precisa conversar e se afaste de quem não se preocupa em se preocupar com você. Você vale mais do que ouro e deveria saber. 

     Algumas vezes é necessário parar de focar nas coisas que dão errado e olhar para os acertos. A inconstância é o ritmo e todos somos compostos por oscilações. Não é sua obrigação fazer com que os outros se sintam sempre bem, principalmente quando você é incapaz de se sentir assim. Relaxe. Dê tempo ao tempo e saiba se aproveitar. Reserve algumas horas do seu dia para a autopreservação. Tudo bem se nem tudo ocorrer bem agora. Você vai se sentir assim até que não se sinta mais. O degredo da culpa logo vira uma sombra fugaz. Cuidado para não punir outros pelas coisas quais ainda se pune e nem deveria. Você está com pressa, mas a mudança é lenta e acontece todos os dias. 

     Coloque sua máscara. Busque sua felicidade. Salve sua vida e então ajude os outros a vestirem suas máscaras. Então, ajude-os na busca pela felicidade. Seja solidário, empático e honesto. Não basta ser amigável. É preciso que seja amigo. Nunca te contaram, mas você sabe que o seu sorriso pode salvar uma vida?

domingo, 20 de outubro de 2019

Prolixidade de Domingo - Outubro

    Entardeci, mas lá fora já era noite. O que explica a pontualidade do meu atraso? Tenho tentado o máximo de tentativas possíveis. Percebe minhas nuances sublimes? Nota os meus feitos tão incríveis? Deixo estar. Deixo ir. Ninguém repara ou é só mais fácil viver oculto em desdém. Ninguém repara, mas o coração nunca esteve tão bem. 

    Abraço o que chamam de novo. Conheço e geralmente vou embora. Oscilo entre o andarilho fugaz e o regente esquecido de melhores horas. Quase ninguém me alcança. Quando não enxergo de modo sensato, frustro-me, mas logo dou de ombros e me resigno. Só pode ser por conta do meu signo. Aceito a miserabilidade da minha condição diante da inevitabilidade da vida e respiro fundo. Às vezes sinto que posso mudar situações e até o mundo. Outras vezes não. É a ingenuidade que me afasta de ver a vida dessa maneira simples? Tenho aprendido tanto sobre mim. Nota? A lucidez é tão perigosa quanto a loucura. O que é que dura? 

    A vida é dura, porém, é preciso seguir em frente. Os dias parecem iguais, mas é logo mais que tudo fica diferente. Nada nunca volta ser como um dia foi e a gente é pego desprevenido assim. Pensando no que pensar, amando o que não se pode amar, vislumbres de novos começos com gostos de fins. Sorrio com bobagens e observo os movimentos de um inseto. No espelho vejo a minha imagem e reparo que nunca me senti tão completo. Outrora eu era uma criança tão quieta e um adolescente tão discreto. Aprendi muito mais quando estive só, mas não quero mais estar sozinho. Compreender a jornada é ter a certeza de que a felicidade existe em qualquer dos caminhos. É possível ser feliz diferente do jeito que nos acostumamos a imaginar. A felicidade não é apenas um lugar. 

    Sou feliz e o tempo passa. Ontem estacionei o carro e observei a madrugada pela vidraça. Ela embaçava cada vez mais... O clima mais frio e o mundo mais morno. A vida parecia com o meu contorno. Eu dormi em junho e acordei em outubro. Ergui meus punhos e mudei meu rumo. Somos o que acreditamos ser. Escuto, pois tenho sempre o que aprender, mas repito no embalo e falo o que às vezes a gente finge que esquece saber. 

    Nem tudo é sobre dinheiro, mar calmo não faz bom marinheiro e a ilusão é o maior prazer? 

    É? Quem sabe o que sabe é mesmo melhor? Quem sabe o que sabe se basta para criticar o que existe ao redor? A tristeza se espalha e cada um mergulha na própria batalha. Alguns lutam e perdem; outros lutam e vencem; outros sequer lutam. Paciência! A resolução dos conflitos é interna e não existe tempestade eterna e as coisas são como devem ser. De um jeito ou de outro, lentamente ou num sopro, a vida está preparando você. 

    Anoiteci, mas lá fora já era madrugada. Tomei um gole de café, entrei no meu carro e parti para uma nova estrada. Enfim, eu compreendi que precisava perder o medo do escuro.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Gole de amor

     Há uma frequente subvalorização em estar sozinho.

     Antes de tudo, deixe-me ser bem claro sobre o que eu quero dizer. Torço para que você tenha pelo menos cinco bons amigos e que estes sejam tão preocupados com você que refutem o próprio ego.  Espero que respeitem suficientemente a sua solidão para entendê-la, mas que não se esqueçam de que você também precisa de companhia. Que esses cinco possam te alcançar, ainda nos momentos em que você pareça impossivelmente distante. Que estes cinco, ao menos eles, possam definitivamente arrancar o mais difícil dos sorrisos quando o mundo se apresentar estranhamente cruel, maldoso ou inexoravelmente injusto.  

     Todos os clichês também surgem de experiências e não há senão conselhos baseados nas próprias coisas que vivemos. Há quem ache que o generalista ou o amplo é sempre absurdamente vago, mas é como se desconsiderassem que a repetição das experiências. Você acredita que uma experiência perde valor por acontecer de maneira repetitiva? Acha que algo extremamente parecido invalida o que acontece depois? Toda experiência é nova. Você gasta sua inteligência na tentativa de arranjar provas e desgosta de quem é capaz de refutar essa sua versão de qualquer coisa representada tão inteligentemente por você. 

     Veja, é preciso saber ser e estar sozinho. Ontem mesmo lá por volta das 18h15 fui dar uma volta e mais tarde peguei um cinema sozinho. Cheguei poucos minutos antes da sessão. Aguardei, vi o filme e saí. Eu estava vestindo uma bonita camiseta com uma dupla referência: O Pequeno Príncipe e o Senhor dos Anéis. Sinto, porém, que dificilmente alguém me notaria. Dei de ombros como quem não liga, mas como quem preferia ser notado pela roupa. Há nisso algo de errado? Não encontrei rostos conhecidos e é bastante improvável que mesmo quem saiba meu nome pudesse saber sobre minha camiseta. Existi ali por aproximadamente meia hora. Olhei com ternura e carinho para o mundo que acontecia. 

     Andei pelo shopping sozinho. Resolvi que merecia comprar um café, um livro e um chocolate. A ordem que fiz a aquisição das coisas pouco importa, mas eu senti que me aproveitei. Olhei algumas pessoas nos olhos, contemplei a correria nos pés apressados de quem parece estar sempre atrasado e notei ainda a calma fora de explicação que os apaixonados de mãos dadas sentem quando observam as vitrines das lojas. Há quem possa pagar pelas coisas caras e quem sempre as vislumbrará, mas se unem silenciosamente na concordância que R$ 430,00 é muito dinheiro para uma blusa de seda com o desenho de um tigre. Bebês se divertiram e se irritaram sem qualquer motivo aparente, mas nos risos deles o universo se renovou. O que me leva a crer que eu também preciso de renovação?

     Meus sonhos são tão inflexíveis que às vezes duvido que a utilização da palavra sonho seja o termo correto qual deveria empregar. O que me faz crer que eu posso levar amor ao coração das pessoas? Que espécie de instinto absurdo me faz crer que sou capaz de tão grandioso feito se na maioria das vezes eu consigo falhar mesmo nas missões próprias e solitárias que possuo? Não sou um rio, mas rio, sinto-me mais leve e fluo. 

     Quando não sonhamos, creio, alimentamo-nos de sonhos alheios para preencher a lacuna própria da existência que exige que se sonhe. Quem aceita existir sem ter para onde ir? Quem é que insiste em viver feliz em uma realidade tão pungente? Quem é que crê em um mundo que o tempo parece te tratar como um jogo em que tudo o que te cerca está doente?

     Revelação do destino. O meu futuro são meus sonhos de menino. O gato disse que qualquer rumo serve para quem desconhece o caminho. Basta que continue caminhando e logo chega o tal tempo da colheita. Nem tudo acaba como esperamos, mas certamente tudo se ajeita. 

     Haverá um tempo em que os corações não poderão quebrar mais do que já estão quebrados. As lágrimas secarão e haverá pessoas esperando por você. Provavelmente serão poucas, mas elas estarão ali apenas por você. As tempestades vêm e vão. Você fica. Lembra da minha metáfora sobre tinta e coração? Você diz que não, mas eu sei que no fundo acredita. Os homens são tão pequenos e sabemos que haverá um tempo melhor a seguir. Quando a tempestade passa e as nuvens se vão, enfim, encontra-se uma luz solar a luzir. 

     Veja, eu sou um sujeito um tanto quanto criativo. Meus desejos práticos são coisas das quais eu sei que nem mesmo preciso. Mataram o amor, mas eu voltei a acreditar. Ainda que não o sinta mesmo, ele parece me cercar. Com uma espécie de preguiça ancestral que me obriga a ser hoje melhor do que ontem. O que é que sei dessa vida que nada sei? Ouro, prata e madeira significam a mesma coisa. 
     Alguns estão desistindo. Diga para mim que você segue firme. Eu só preciso saber que você vai continuar. 
     Outros de nós, pertencentes aos melhores, renderam-se antes da quinta noite de sofrimento e estão entregues ou partidos. Você é como eu. Somos diferentes. Nossos corações são feitos de material mais forte que o vidro. 
     Ainda há quem fracassará e dará meia volta para causar tormenta infinita. Não os odeie. Se puder, entenda-os e seja sutil. O interno não aguenta tinta. O inverno torna a alma mais sucinta. Ninguém é tão grosseiro assim. O valor é relativo, mas pode acreditar em mim. Todos têm valor. 
     Até a alma mais cansada, suplica perto do fim da estrada, por um mero gole de amor. 

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Sonolência e o melhor quarto do mundo

     Depois de um dia cansativo entro no meu quarto. 

     Tenho a idade que tenho, mas há mensagens por toda a parte. Sou às vezes demasiadamente velho e desconfiado. Sobre tudo o que me cerca exijo provas. Às vezes se derrama minha alma de menino e minha essência sempre tão nova. E lá vamos nós em uma jornada inesquecível qual será esquecida como toda jornada. Esqueço-me do amanhã. Sobre hoje? Sobre os períodos recentes? Uma para a estrada. 

     Ontem tudo parecia tão escuro. Outra vez tive que percorrer minhas estradas para locais seguros. Era simples, mas não é mais. Foi importante, mas tanto faz. Labirintos se fazem pelos caminhos simples quais eu desejo percorrer. Os outros sempre tão sucintos me parecem sempre tão certos do que querem fazer. E eu? 

     O mundo se ocupa e eu também. Alguns estudam, outros trabalham e há quem estude e trabalhe. Há quem não faça nada, ainda que faça alguma coisa. Há tudo isso e há nada disso. Sou o que sou e me contento agora com o que antes era uma solidão vazia e sem demora. Às vezes sofro e não faço a menor ideia do motivo. Às vezes sinto que morro e não há no horizonte paraíso. Que é que faço?

     Situo-me. Estou no meu quarto e penso no quanto é curioso que este seja o meu oitavo quarto na vida. No meu quarto toda tragédia irremediável vira apenas uma sombra de dor, eco de dano real. O que há no meu quarto de tão especial?

     Este não é o maior quarto que já tive. Penso então nos tempos de rua Ipacaraí e como por quase duas décadas tive apenas o mesmo quarto e ainda o dividia com meu irmão Matheus. Àquela época, eu bem me recordo, sobretudo, narrando histórias da minha infância, percebo-me sortudo em minhas boas e más lembranças. 

     Havia uma cadeirinha de madeira que meu avô Damião construiu para nós. Ela claramente fora feita para ser utilizada até nossos 10 anos de idade, mas acontece que a utilizamos até os 18. Claro que eventualmente chegou o tempo em que não cabíamos mais na cadeira, mas ela era inquebrável e fazia parte daquele quarto perfeito. Meu avô Damião faleceu meses atrás. Resistiu quando não fazia mais sentido por quase uma década de sofrimento. Onde é que será que jaz meu avô neste momento? Será que, enfim, encontrou-se com a minha avó? Volto aos quartos e me pergunto sobre a duração das coisas e o que é realmente constante. O que me leva até hoje a considerar um quarto que existe apenas como vulto de memória como algo assim tão importante?

     É que eu vejo o que ninguém vê. É que eu amo quase tudo sem nem perceber. É que eu sou um grande consertador de coisas quebradas, embora eu mesmo talvez esteja com defeitos. 

     Eu vejo as formas e as cores com os meus olhos. Eu vejo com meus olhos castanhos suas formas e suas cores e simpatizo com estranhos e tento absorver suas dores. Eu sei e você sabe, eu meio que não tenho religião, mas se eu fortemente desejar será que posso amenizar a dor no seu coração?

     É que o meu quarto é um pedaço grande de mim e eu vejo o que ninguém vê. Minhas corujas são símbolos de mim em mim e preciso de lembretes da minha amplitude para entender que sou capaz de fazer com que as coisas mudem. Eu vejo as formas e as cores com meus olhos. Eu ouço os vultos, cheiro as flores e deixo o que incomoda me incomodar. Os infernos por onde passei ninguém sabe. Tenho sorrido bastante e simplesmente me dizem que o meu sorriso é bonito. 

     Minha outra avó anda estressada. Não é fácil cuidar do meu outro avô atualmente. Ele anda feliz e sempre falava que meu sorriso de criança era bonito. Eu tenho sorrido mais. É preciso que saibam sobre como nos sentimos especiais. Ele têm se esquecido das coisas. Logo talvez se esqueça de mim, mas ainda me chama pelo nome. Ainda sente o amor mais puro pelas coisas, mas tudo um dia some. Ele perdeu toda a altivez. Você percebe? Que ainda somos jovens e um dia chega a nossa vez?

     Faça uma prece, ainda que não tenha religião. Algumas coisas acontecem e não possuem explicação. Tudo anda tão difícil, mas você aguenta tinta, sabe? A música da sua vida nem chegou ao primeiro refrão. 

     Interlúdio. Ataque, cansaço, solidão, frieza. Que resta de nós em nós quando conscientemente abandonamos nossas fortalezas?  

     Os meus quartos nunca foram grandes e nem luxuosos, mas havia outrora uma coleção incompleta e linda de Gelo Cósmicos. Eu tinha medo do escuro e o breu do quarto sem iluminação produzia imagens de monstros. Seriam monstros verdadeiros? Tudo bem, eu dizia, de verdade, vocês podem dormir aí na estante, mas nem por um instante cheguem perto de mim. 

     Os quartos da infância não tinham videogame na maior parte do tempo e nunca tive coleções de lego e nem tantos brinquedos chiques e frágeis e parecidos da mesma coleção, mas o meu quarto continuava sendo o melhor de todos. Ele não tinha carpete azul e nem quadros e nem brinquedos brilhantes e espetacularmente caros, mas estranhamente ainda era o melhor dos quartos. 

     Eu me deitava na cama me perguntando sobre o futuro dos meus heróis da invasão anime, indagava sobre quais seriam os próximos jogos que deveria jogar e se havia fuga da realidade que um dia seria suficientemente real para me fazer esquecer da pungente realidade. Os peixes adormeciam? O céu um dia cairia? Eu poderia controlar os meus sonhos e voar? Em um lugar mais feliz todas as pessoas que eu amo um dia iriam se encontrar?

     Não tinha certeza de nada disso, mas o meu primeiro quarto era mágico e os seguintes também foram. Talvez eu mereça um quarto assim tão bom porque vejo as formas e as cores com meus olhos grandes e castanhos que ficam diminutos quando eu canso. Sei personificar a fúria, mas costumo ser tão manso. Cada coisa conta uma história. Nada volta a ser como antes. Tudo é importante e meu quarto? Meu quarto é especial mesmo nos dias atuais. Vi uns quartos espetaculares e os achei tão... normais. Dou de ombros. Sei o que sinto, mas não sei como dizer. Prometi que nessa semana não minto, mas amanhã ninguém sabe como vai ser. Não aguento mais ser acusado. Já não tenho idade para aceitar ser usado. 

     Depois de um dia cansativo sento confortavelmente na cadeira em frente ao computador. Ligo o ar-condicionado e me sinto livre e preparado para sonhar com a felicidade e com o amor. Eu vejo as formas e as cores com meus olhos. É uma segunda-feira ordinária, mas ainda tenho tempo de assistir um filme e me sentir bem. 

     Deixo meu corpo repousar na cama e minha mente transitar entre o passado que não importa, o futuro que ainda é incerto e a imaginação sempre tão instável. Prevejo meu destino em poemas mal escritos, mas acalmo minha pena numa metáfora com a lembrança de que todo dano é bendito. 

     Depois de um dia cansativo gasto palavras. Por que não apostar agora se eu sinto que já não tenho nada? Sou ridículo no meu papel, mas me preocupo. Por vezes tenho o rosto do fracasso, mas sigo e luto. A sonolência se apodera de mim. Talvez eu durma cedo, mas é provável que não. Minha gata e meu cachorro me cercam, memórias recentes não me afetam. Talvez eu durma cedo, mas é provável que não. Os sonhos se parecem para todos aqueles que se sentem eternamente em solidão? 

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Solitude Apoteótica

     O meu jeito de ser é hoje qualquer coisa mais prática. Antes príncipe das fantasias, agora devaneio apenas com hipóteses fáticas. O meu intenso amar e sofrer me transborda. Condenado por não fazer segredos, sinto como se voluntariamente buscasse essa espécie de degredo. 

   Partes distintas que nos formam. Alvo da zombaria, eu dou de ombros e sorrio, pois a provocação alheia incendeia o meu peito. Gente de verdade se faz na reação para com a dor, nunca de outro jeito. Exprimo o que resta de sublime em mim. Deixa pra lá, tanto faz, não é mais? Tem que ser assim!

     Qualquer tipo de redenção é irreal. Há ali apenas o retrato de uma ilusão conveniente. Nascemos condenados? Eterno sofrer em um mundo que gira rápido, relógio constante que se acelera e desacelera, cântico proibido do infinito, barulho ancestral das estrelas. Todas essas coisas belas? Serei capaz de descrevê-las?

     Apoteose da solitude. Exista por você mesmo e seja o Senhor Supremo de suas atitudes. 

     Lá ao longe encontro a vaga incompreensão dos que fingem compreender e percebo que existo só. Ninguém suspeita, eu tenho certeza, do tamanho da minha lealdade para comigo. Seguiria leal, ainda que o meu destino fosse viver sozinho.

     Nos solilóquios sei que estou simultaneamente certo e errado. Encerrou-se no ocaso o que nem havia começado. A irritação transbordou pela pele e nomes antes tão importantes, enfim, somem na inconstância do ser e sentir acompanhados pela volatilidade de tudo o que é vulgar. Envergonhado admito não saber de muitas coisas, mas sei bem o meu lugar. 

     Tempestades de primavera. Só os tolos não admitem que erram. Só os falsos não sentem medo. Os vícios são comuns e não me levam ao desespero. Nunca mais facilitei o meu próprio destempero. Só a extravagância me incomoda e esta se difere muito da exuberância natural dos naturais. 

     Minhas partes fúteis tentam me dominar e conseguem. A respiração volta a se tornar pesada. Mato meu tempo antes que o peso de não sacrificar os minutos me invada. Sinto que valho pouca coisa ou nada. Dentro de um carro avanço contra a madrugada gelada. 

     Quando tudo se perde noite adentro, eu piso no acelerador. Desbravo novos bairros, enfurnando-me em novos caminhos. Até posso me perder, mas sempre me encontro quando estou sozinho. A solidão possui o seu valor. Só quem sabe viver bem quando solitário é capaz de cuidar do amor. 






domingo, 6 de outubro de 2019

Lembrança

     No lugar qual os esquecidos dormem, eu sou lembrado.      

     A vida é simples, mas a gente complica. A gente não combina nada e tanto se explica. Um dia o amor morre e ninguém o acode e a procissão é bem organizada no dia do enterro. O amor sempre acaba, mas sempre por conta dos nossos próprios erros?

     Outro amor surge e fica enorme, mas as palavras representam um peso para o qual você não está preparado. Talvez ninguém esteja, pois ninguém diz. A frase não dita não é o suficiente para te tornar infeliz. E o que é que é? Esse amor é diferente, você sabe. Te encara de frente, sabe ser e você sente e pensa alto. “Eu só espero que não dê errado”. Ainda assim ele é tão oculto que ninguém sabe o que guarda o que não é dito. Há quem diga que todo o dano, porém, é bendito. Perdemos, enfim? Quantas derrotas já fazem parte de mim? Entre um ou outro gole de cerveja, a gente evita conversas importantes. Um dia essa falta de tato e destreza compromete a promessa do que haveria adiante. 

     E aí de repente a gente se decepciona com o que nem chegou a conhecer. A gente se esconde, some e sufoca as palavras que sentimos tanta vontade de dizer. E nada mais faz sentido. Nem quero você perto como amigo. O domingo sempre companheiro do peito, soa como violão desafinado, som imperfeito, segunda-feira, desgraça incomum. Como pode algo tão comum que havia perdido o sentido se recuperar assim? Como posso sentir esse amontoado de coisas tão de repente, tão dentro de mim? As cordas arrebentadas podem realmente serem substituídas com facilidade? Ainda restou algo que desfaça o mistério e apresente possibilidades?

     Isolei-me, pois andei por aí mal. Tudo em mim era uma espécie de personificação do Nada. Caminhei por aí na vaga companhia de fantasmas. Errei ruas quais tanto estava acostumado. Às vezes eu sentia que poderia entendê-los, mas eles eram sempre tão silenciosos. Eu sabia que era impossível entretê-los, diferentes dos tão costumeiramente vaidosos. Respirei fundo. Tédio. Cansaço. Passado. Futuro. Não fui capaz de mudar ontem, mas de hoje não passa, eu juro. 

     Não espero que ninguém entenda meus períodos de isolamento, mas espero que respeitem. Sou como uma daquelas placas "Cuidado! Estamos em reforma". O que vale aí é o texto que escrevi tão rápido e essas coisas que precisava tirar de dentro de mim. Uma amálgama de algo que vai crescendo e morre ou fica ali vegetando como se pudesse a qualquer momento renascer e se expandir e me dominar e se tornar maior do que eu. Não deixarei tantas ervas daninhas no meu corpo. Ainda que alguns dias eu me sinta... morto.

     A metáfora da árvore cabe. Ninguém sabe o que faz. Os olhos são traiçoeiros com o que enxergam. Os ouvidos anseiam por escutar uma nova tragédia. Árvores? Era sobre metáforas que eu estava falando. Sim, é exatamente o caso. É como uma árvore que cresce exageradamente e os galhos se esticam de uma maneira que se entrelaçam com os postes dos fios de eletricidade e todo mundo se entristece com o dia em que a árvore vai ser cortada, mas bom, a vizinhança fica mais segura e a iluminação noturna também melhora e todo mundo assente que era necessário. É preciso ver o lado bom das coisas...

     Minhas pálpebras pesam e minhas olheiras doem. Acho que uma veia do meu olho direito estourou e não posso evitar. Sinto um cansaço de fim de mundo, uma eterna preguiça de ser ou de sentir tudo. Não sou mais quem um dia fui e essa consciência míngua o meu sorriso. A minha imagem é um retrato vil qual não ouso olhar. Tenho procurado o rosto da minha alma, mas tenho medo de nunca o encontrar. Alguém sabe quem eu sou? Eco distante, memória constante, amor. Ela disse que nada poderia ser mudado e como eu poderia discordar? A gente se fala depois ou não se fala. Hoje é tarde? É tarde. Melhor deixar pra lá. 

     A manhã anoiteceu, a tarde se ofuscou e a noite pesa com uma espécie de instinto violento e velado. No lugar qual os esquecidos dormem, eu ainda sou carinhosamente lembrado.

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Hora de acontecer

     É preciso ter convicção. Cada nova decisão nossa altera completamente o panorama geral das coisas e sentimos como se o Universo não se aguentasse de ansiedade e estivesse pronto para sacanear com a nossa vida a qualquer momento. Somos frágeis ou nos fazemos frágeis assim? Queremos atenção? É nossa responsabilidade nos vulnerabilizar se queremos correr o risco de amar ou há ainda situações nas quais o amor derruba a porta até então trancada lhe tirando da sua zona de conforto? Claro que era muito mais fácil ficar em casa se desfazendo de possibilidades que mal se apresentaram e reclamando da sorte. O mundo por vezes é assustador, mas em aspectos gerais a vida é hilária. Alguns suspiram e sussurram em segredo que preferiam estar mortos, pois o peso dos corpos nunca mais foi leve. Outros trabalham seus medos, acordam cedo, buscam por saídas. Para onde nos levará a tal saída? Nunca saberemos, mas é preciso acreditar na vida. 

     O amor é uma metáfora, provavelmente uma daquelas péssimas, que quando dita gera um silêncio desconfortável de quem ouve sem entender, pois amar é muito mais sobre entender sem a necessidade de ouvir. O amor é uma planta e qualquer um pode cuidar de uma planta, bem como qualquer um pode se esquecer de regá-la e tratá-la com a simplicidade que requer. Amor é a sorte de navegar junto por um oceano desconhecido; é a descoberta inacreditável da segurança nos braços de alguém que pode honestamente ser chamado de melhor amigo. É não desejar mal a quase ninguém, é apostar alto, é escrever com giz no asfalto e riscar corações tortos nas árvores como se o gesto fosse fazer o tempo parar e admirar algo que não merecesse realmente o fim. Plantas esquecidas ao sol ressecam e então morrem. Não é diferente com o amor.

     O tempo passa e a visão límpida outro dia se embaça e o que foi um dia nunca mais será. Você sai por aí de casa e se obriga a ser corajoso. No começo saía sozinho e provava a força do meu coração tão valoroso. Sozinho por aí nos bares, eu não me sentia bem em quaisquer lugares da minha velha cidade. Os pouquíssimos amigos que tinham estavam muito absortos em suas próprias vidas e eu em minha solidão. É necessário estar sozinho para se arrumar bem o porão. Bebi cerveja e observei shows amadores que tocavam profundamente minhas dores com palavras erradas e frases perfeitas. Dirigi meu carro branco por novas estradas e relutei em acreditar em algumas coisas que foram feitas. Demorei, mas segui. Eu disse que quando eu fosse, eu iria, mas ninguém acredita nas palavras ditas à luz do dia. Fiz promessas que não poderia descumprir. Meu orgulho sempre foi chama acesa na madrugada. Mesmo nas noites frias, sempre tão vazias, sentia minha alma mais gelada, como se a própria gelidez das horas tardias fosse um casaco leve para a verdadeira invernia. 

     A dor dói até o dia que para de doer. A gente fracassa até o dia em que volta a vencer. Sua versão passada acharia o você de hoje exuberante e você se remoendo com o sofrimento constante que não existe mais e ainda foi capaz de te lapidar e deixar assim. Sou literal demais. Organizei uma procissão para que meu coração, enfim, mudasse. E outro dia desses de repente era simples que eu retornasse? Sou literal demais e invertido e permito que me vejam enfraquecido. Irritam-se, zombam-me e até me detestam sem me conhecer. Quem é que odeia pelo simples prazer? O rosto mudou e o retrato foi jogado fora e os meus silêncios apenas me pertencem e eu não posso contar com ninguém agora e quando chega a hora alguns ecos distantes aparecem e me questionam sobre minhas raízes. Mudei, mas não tanto. É preciso entender que há outras maneiras de felicidade e outras pessoas para fazermos felizes. 

     Geralmente somos apegados, mas eu me peguei amassando os papeis e sonhos antigos e os jogando com classe em um arremesso de basquete na lixeira. Tudo pesa até o dia em que se torna bobeira. O bairro da Liberdade agora é exclusivamente meu, sabia? E eu nem precisei comprá-lo! Tirei fotos com novos cosplays, comprei pôsteres, fiz um topete em um doce em formato de porco (mas não comi um doce de porco). Cantarolei Gregory Alan Isakov pelas ruas, escutei Devendra Banhart e me animei com Cage the Elephant. A última banda é a minha favorita dos banhos, especialmente quando preciso me animar antes de sair de casa. Sou uma nova pessoa, ainda que conserve aspectos do velho eu. Lembra da minha apoteose nos teus olhos castanhos? Agora não passam de olhares estranhos e tristonhos. 

     Sei hoje sobre a ironia da vida. Quando, enfim, esqueci de me lembrar, quem se foi quis outra vez fazer parte da minha vida. Disse não com firmeza e sei que não vou me arrepender. Eu cresci tanto e quero continuar a crescer. Eu me apaixonei outras duas vezes, mas o meu coração sinceramente é  demasiado egoísta para ser racional nas decisões. Apaixonei-me duas vezes, mas me afastei para evitar às costumeiras sensações. Sou tolo por só querer gostar de quem me gera uma sensação esquisita de identificação. Meses atrás conheci uma menina tão bonita que me tirou o chão. Os amigos dizem que outras que eu atraí são bem mais legais e interessantes, mas sei que não podem compreender. Sinto uma espécie de magia palpitar me levando a crer. Crer no que exatamente não sei explicar. Provavelmente nessas novas histórias e romances e vidas. Nesse outro jeito de ser feliz, entradas, recomeços e despedidas. 

     Insone mergulhei outra vez durante a madrugada. Acordei cedo para trabalhar e estava maquiado por olheiras escuras como piche. O retrato da comparação sempre fere. Sou melhor do que fui e sigo aquém do que pretendo ser. Se o objeto de comparação for sempre eu mesmo, eu acho que não há problema. Há problematização em outros tipos de dilema. Você consegue ser forte hoje?

     Algo aconteceu e senti vontade de fumar um cigarro. Convenientemente os fumantes que estavam aqui em casa no último sábado esqueceram uma cartela de cigarros. Imaginei-me como o Spike ou o Jet fumando e senti que poderia apoteotizar o meu primeiro fumo. Ri da idiotice, pois meu coração transbordando toda aquela tolice sabia que eu não fumaria o cigarro. Peguei a chave e saí para dar uma volta no meu carro. Há uma espécie de orgulho tosco em chamá-lo meu, pois o fato de que o comprei me enche de alegria. É algo que não ficou pela metade. As parcelas todas foram quitadas. Rio novamente e escuto músicas instrumentais. Dirijo longe até a casa de uma menina para pegar livros emprestados. Sinto algo estranho e sem nome. Essa coisa aparece e some. 

     Quero mais livros emprestados, mas não sei o que acontece comigo. Quero me aproximar, mas morro de medo de ser ferido. Admito, porém, que talvez eu seja tão afiado quanto quem deita com a lâmina pontiaguda em nome da autodefesa. Trancamo-nos em longas e resistentes fortalezas. O meu eu antigo socava a porta da frente até quebrar o muro. O meu novo eu procura brechas para entrar sorrateiramente no escuro. O atalho é tudo para um gatuno. Deixar-me tão próximo é um erro. Eu consigo entrar e depois sair sem ser reconhecido. Se acostumam facilmente comigo. Quando notam eu já estou ali e não posso ser esquecido. É bastante engraçado como temos nos fortalecido. Somos feitos de material mais resistente que o vidro. Essa coisa que chega e fica e possui belos olhos que são estranhamente convidativos me sonda em uma festa. Sinto vontades dignas, mas nenhuma delas hoje presta. Gostei da maneira como ela sorriu e falou comigo. Ainda bem que ela tropeçou para fora de casa ou nunca a teria conhecido. Não exagero ou idealizo ninguém tanto assim. Desisti de procurar coisa qualquer semelhante ou qualquer aspecto de mim. Se quem eu conheço é parecido certamente será interessante. Se quem eu conheço é meu oposto, uma espécie de eu invertido, talvez seja ainda mais legal que o encontro de antes. Tenho encarado minhas responsabilidades com o peso que merecem, mas os meus novos romances são transportados pela brisa suave que me enternece. Alguém me olha como ponto fixo e aqui desce? É uma noite apropriada para um vinho ou um suco de uva ou mesmo um café. O que me diz de começarmos? 

     Nunca mais dirigi nas ruas procurando rostos antigos. Minhas músicas são minhas e raramente reforçam qualquer história. O que se passou é simples soma na história. Os pontos de não retorno são mais claro que os sinais verdes, amarelos e vermelhos. Sinto fortes impulsos vitais e reconheço-me sem precisar de espelhos. Paro o carro e ligo para alguns outros amigos. Antigamente tinha enorme dificuldade em me situar no presente. A gente não pode ser aquilo que mente, entende? A gente é o que sente e meus dois olhos estão aqui e agora. Lembro-me de quando o olho esquerdo enxergava apenas o passado e o direito apenas o futuro. Ver o que está diante dos meus olhos é reflexo de como me tornei maduro. Ainda assim sou jovial o suficiente para desejar que chegue logo o próximo final de semana. Ainda que tudo pareça trivial é preciso seguir em frente pelas coisas que a gente ama. Se eu me enjoar do restante passo o sábado inteiro na cama. Nunca mais me alimentei de restos e o meu jeito lesto transborda e incomoda. Eu deveria parar? 

     Sou um homem de fatos, mas simultaneamente um ficcionista. Talvez a realidade não me resista quando eu aparecer cheio das minhas fantasias e poesias. Talvez tenham que inventar um novo nome para o amor. Vou inventar novas declarações. Quando chegar a hora de acontecer... Será que ela já não chegou? Sou quase irresistível quando falo dos meus sonhos e por isso aviso, não me deem essa brecha para falar do que o coração sente tanto prazer. Quando bem situado eu me sinto dono do lugar e até já ouvi que sempre sei o que dizer. A frase me plantou no rosto um enorme sorriso. Quem dera não fosse tudo questão de improviso. Naturalmente sou assim. 

     É estranho, mas gosto da ideia que ela faz dela mesma e dos livros que leu. Dou de ombros sem a necessidade de me entender. Gostei do cachorro tarado ali, da gata discreta, do sorriso ousado, da linguagem secreta, dos testes súbitos, das palavras sinceras, do que não era amor, mas foi chamado de algo parecido na véspera. Gostei das lágrimas minúsculas representando oceanos inteiros e do jeito que a lua cantou para nós em uma noite vulgar. Gosto do jeito que você sabe se distanciar. Gostei até de conhecer meses antes alguém que esteva tão quebrado quanto eu. Dane-se. Ninguém nunca entende o que falo e por isso só me pronuncio pela metade. Quem é que me entende nessa cidade? Procuro coisas que ainda nem sei. Não é preciso explicar o brilho do vaga-lume, o cheiro do perfume, o impulso do ciúme... A gente vê o que existe para ver e se dispõe a alcançar o que pode ser alcançado. Ontem mesmo escutei uma música e me lembrei de você, embora não saiba de quem estou falando. Descobri que é possível ser feliz de outras formas e estou ansioso para me colocar à prova. Não importa o caminho por onde eu for. Será que amanhã cedo posso tropeçar no amor? Claro que sim, mas é claro que sim! Repito empolgado! Toda possibilidade que existe no mundo repousa lá fora e espera por mim. O tempo de espera finalmente está acabado. Consultei o relógio. 18h48. As horas e os minutos só ficarão iguais a partir das 20h20, mas eu estou convencido. É hora de acontecer.