quinta-feira, 25 de julho de 2019

Treino de descrição

     Meus olhos tão acostumados à ficção cogitaram que eu estivesse mesmo sonhando. No instante em que a vi, recolhi-me, como quem se exaspera pelo medo de cometer alguma gafe irreversível. Quis me aproximar, mas travei. As pernas pareciam bigornas e o peso era excessivo. A garganta, de repente, secou. As mãos suaram e os dedos que até então tamborilavam, subitamente cessaram. Ergui meu olhar e o sustive na direção dela, não conseguindo posteriormente desviá-lo. Havia algo de sublime, de correto, de suficiente na mulher. Seus olhos transbordavam sua independência, sua capacidade, toda a sua segurança em apenas ser. Era a personificação da altivez. A sua idade era qualquer entre vinte e trinta anos, mas sua maturidade era intimidante para quem não sabe como tratar uma pessoa que se conhece e reconhece. Recordei-me, enfim, que eu sabia. Sorri e senti o degelo de meus temores. É necessário se movimentar por novos amores. Aproximei-me devagar e tive a sensação de que ela não recuaria. Ela piscava devagar, mas não transmitia qualquer letargia que fosse. A impressão, na realidade, era oposta. Avaliava o ambiente com uma frieza calma, pensando, maquinando, calculando possibilidades. Era de exatas, mas estranhamente humana. Sua figura era quase etérea, como alguém que fosse exageradamente bela para o ambiente, fora de encaixe. Era, sem dúvidas, alguém capaz de criar e destruir. O lábio inferior ligeiramente maior que o superior marcava a assimetria de uma boca perfeita, uma boca feita para ser beijada. Soube que sua pele era macia, antes mesmo de tocá-la. O nariz levemente curvado na ponta aumentava sua aura intelectual e estranhei a reação dela ao me perceber. Quando já estava próximo o suficiente, eu creio ter dito algo, mas não consegui me lembrar das palavras. Ela sorriu e eu cri que fosse um sinal auspicioso. 

     - Por qual razão você se aproxima de mim tão devagar?
     - Eu pensei que se eu me aproximasse rapidamente, bom, talvez você corresse. 

     No meu peito um demônio do fogo me inflamava. Auxiliava-me com conselhos, quebrava minha timidez, sussurrava segredos... Você apenas precisa continuar. Senti o gosto dos próximos anos na língua e me senti repleto de medo, mas pela primeira vez em muito tempo inteiro... Este aqui parece ser o meu lugar. Qual foi a minha surpresa, quando ela me olhou com ternura e apenas aproveitou. Eu beijei uma mulher deslumbrante e no mesmo instante ela deixou em mim o sabor do amor. 

     Menção honrosa: há quem se incomode com a palavra demônio, mas sempre que cito o terrível demônio do fogo, eu estou falando dele mesmo, o intimidante Cálcifer. Paz nos estádios, exercício de treinamento concluído, feliz dia do escritor pra mim e para todos os outros espalhados aí pelo universo. Beijão e bom final de semana!

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quarta-feira, 24 de julho de 2019

Sinal de Vida

Eterno contador das horas
Descobri em qual Tempo te encontrar
O céu plúmbeo anuncia o que sente agora
Você apenas deseja se afastar
Até que possa se recuperar de si mesma
Quanta ingenuidade no seu afago
Cicatrizes abertas mostram o estrago
Seu corpo é um eco da destruição
Abertamente anunciam pela cidade
Fugiu na madrugada a sua sanidade
O boato lhe traz humilhação
Você...
Você não superou
Encaro seu semblante, sério
Infante, reajo ao vitupério
Mas você não parece se importar
Os olhos marejados desfazem o mistério
Está viva, mas se sente em um cemitério
Vítima de um escandaloso adultério
Não sabe ainda como recomeçar
A noite quase se encerrando, sem lua,
Você se recorda enquanto olha para a rua
Tão vazia quanto a sua própria emoção
Diz que não sente nada, mas lágrimas escorrem
Denunciam sua mais secreta sensação
Você adormece, mas nem em sonho se esquece
Acorda em um sorumbático arrepio
Ajeita os cobertores e se aquece, porém,
Tudo ainda soa absurdamente frio 
A manhã seguinte começa e termina cinzenta
para quem se perde na desmedida do amor
Sua parte obscura a torna violenta 
Externa-se, enfim, toda a sua dor 
Repentinamente epifania
Desmistifica-se o que não compreendia
O que machucava antes agora é incentivo
O sofrimento também é um sinal
De que você ainda está vivo
Então viva, sobreviva e sorria
Quem sabe quantas
surpresas há em um novo dia?

sábado, 20 de julho de 2019

Memória

     Antes que anoiteça, por favor, diga as palavras que deixou de dizer. Antes que você escureça por dentro, por favor, diga algo que amorteça simultaneamente sua dor e prazer. Logo vai amanhecer. Faça algo, mas faça agora. Você já nota o relógio da vida ou ainda vive como se tudo fosse constante e eterno lá fora? Os dias estão mais curtos e as noites fugazes. Os ímpetos são mais brutos e expomos nossas vontades em gigantescos cartazes. Fora, na verdade, é dentro. Tudo o que você desconsidera talvez seja algo que deva considerar. As coisas pequenas e cheias de fragilidades são importantes. O agora é fundamental, mas nunca se esqueça do que ocorreu antes. Partes que nos formam, memórias, histórias, os caminhos que nos trouxeram até aqui... Hexagramas sentimentais de pontas que já não se conectam mais e também os motivos e pessoas que tanto te fizeram sorrir. Você amadureceu, não foi? Cresceu tanto! Aprendeu sobre política, geografia, cidades, sucesso e dinheiro. Sabe mais agora sobre mulheres, homens, restaurantes, bocas, ciúmes. Sabe que nas noites gélidas com a concentração e a imaginação certa, é possível sentir o cheiro de antigos perfumes? Sabe o tempo de vida de um vaga-lume? Você escuta o resfolegar dos ressentidos? Sente o hálito suave dos mortos pelos lábios de seus amigos? 

     As lições sobre o verdadeiro frio são aprendidas no inverno. Os improváveis arrepios nunca se repetem, mas é comum fechar os olhos e fingir que se esquece. Há consternação no meio dos seus pensamentos de valor? Há interlúdios entre suas canções de amor? Antes que a vida se vá e nos percamos das coisas quais nunca desejamos nos perder, eu peço para que hoje, por favor, apenas me deixe estar com você. As pessoas se partem em jornadas sem voltas. Você almoçou e saiu correndo, mas e se na próxima vez sentasse no sofá por uma hora? E se nós assistíssemos juntos aos jogos do campeonato brasileiro? E se você ficar quieto e perto nesta semana? E se o silêncio contemplativo bastar para estar ao lado de quem você ama? E se o que ainda resta de memória for uma nova história que precisa apenas de um exímio narrador? E se o que resta presta e basta para sentir a felicidade que o peso da idade recentemente lhe tirou? Eu sei, é clichê, mas um dia, se tivermos sorte, seremos velhos. Quando a velhice chegar, eu prometo que vou tentar extrair da minha futura idade os seus prazeres e suas dores. Quando for idoso vou me dedicar exclusivamente aos meus novos afazeres e aos meus velhos amores. Vou conservar a memória enquanto puder e você me prometa que ficará por perto apenas o suficiente para que eu me sinta seguro. O correr das horas enfraquece até o homem mais duro. Sabe que eu ainda me lembro hoje de tudo? 

     Meus olhos se fecham e minha percepção aumenta. Caminho em segurança pelas lembranças, lado a lado com o que me regozija e atormenta, mas desdenho das impressões quais elas se esforçam para me impor. Eu tenho olhado para o mundo com muito mais carinho e amor. Cônscio de que tudo se finda, eu vivo como se fosse morrer hoje e observo como a vida é linda. Abraço meus parentes e amigos e agradeço aos mais importantes por terem nascido. Debruço-me e conquisto uma nova mulher. Erro no flerte e não a mantenho por perto uma semana sequer. Dane-se. Afasto, aproximo, rimo, vasto, aprendo, ensino. Leio, escrevo, incomodo, sou incomodado. A vida é agora e ocorre e escorre ali do lado. O sábado é quente, mas é uma pena que meu café tenha esfriado.

     Escrevi este texto depois de passar um tempo refletindo sobre meus parentes que morreram, sobre os amigos que deixaram de ser amigos, sobre meu avô que está com alzheimer e aos poucos se esquece de alguns detalhes, sobre a minha avó que segura essa barra praticamente sozinha... A vida é frágil, rápida e tudo muda e se desgasta. Aproveite sua vida. É cedo demais para perder tanto tempo assim. Você empenha todo o seu tempo em gente que nem te olha com tanto carinho assim... 

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Eu ainda não havia parado de afundar

     Sonhei que me vestia elegantemente para sair de casa, mas havia certamente algo de errado. Meus olhos ainda preservavam suas maiores qualidades, portanto, nunca deixei de ver tudo o que realmente me importava. Uma coruja jazia perto, isso era certo, mas escutei seu crocitar de uma longa distância, pois minha atenção estava direcionada para outros objetos secretos. Aproximei-me vagarosamente de um espelho grande que havia na misteriosa sala na qual me percebi e, em seguida, observei o meu reflexo. Devo confessar, primeiramente, que não me agradei ao fitar eu mesmo. A figura diabólica e deforme desafiava qualquer pitada de nexo. A face do monstro que eu via fez com que eu me enxergasse perverso. Fui tão mau assim? Senti como se estivesse me afogando e ingenuamente acreditei que alguém apareceria para realizar o resgate. Eu continuava a afundar. Alguém me contou mentiras e eu soube delas imediatamente. Sempre fui bom com a detecção de coisas banais. Quase sempre dei de ombros e deixei que mentissem, pois quem evita a verdade geralmente possui uma razão para agir assim. Desta vez, entretanto, eu reagi e vi o mentiroso se erguer em fúria, exigindo entender a razão de eu tê-lo desacreditado especificamente na última ocasião. Engraçado como se comportam quando você deixa de agir da maneira que é conveniente para os outros. 


     Eu ainda não havia parado de afundar. 

     Eu ainda não havia parado de afundar. 

     Eu ainda não havia parado de afundar. Forçava os meus braços e pernas para cima, porém, era simplesmente incapaz de alcançar a superfície. E pensar no esforço que às vezes é necessário empreender apenas para respirar. E pensar nas tantas vezes que mergulhei fundo na tentativa de salvar vidas, até mesmo quando ainda não havia aprendido a nadar. A coragem e a tolice invariavelmente andam próximas. Um pouquinho mais para lá ou um tantinho mais para cá e de repente você se vê compreendendo a própria burrice. O motivo? Você se importa e não adianta tentar raciocinar sobre algo que só consegue sentir. Quem colocou mentiras no meio das verdades que você me contou?

     Eu ainda não havia parado de afundar. 

     Eu ainda não havia parado de afundar. 

     A batida do meu coração pulsa pela sua vida. São as partes que nos formam. Verdades que nos alcançam. Conversas rápidas. A sinceridade que se cala. O ego não te deixa ser menos arrogante. Você precisa mostrar que é melhor do que antes. Aponta os fracassos alheios enquanto fracassa, mas vê sua vida num espelho que se despedaça. Você está perdendo o que costumava ter e não parece que vai recuperar. Você está perdendo a única casa que teve, mas insiste em dizer que aquele ainda é o seu lugar. O desconforto te atrapalha, mas você se alimenta com conveniências e se regozija. Acha que é uma espécie de ditador de tendências, mas tende a seguir atrás do que te escraviza. Fecha-se em silêncio, mas não há inteligência que te separe da dor. Quem diria que alguém tão sensível e diferente também poderia ser refém do amor. E lá no fundo da sua alma, você afasta o novo e insiste no que escolheu te deixar. Persiste e resiste num choro incessante por quem prometeu não voltar. A sombra se foi com a noite e eu ainda não havia parado de afundar. Senti a autopiedade e a raiva, mas movi meus braços e pernas, recordando-me de que ainda sabia nadar. Respirei e em seguida, sentei-me placidamente mo chão. Sorri, mas ainda pulsava em mim a raiva. Não há muito sobrando, mas sei que cumpri para com as minhas dívidas. Não deixei contas pendentes. Eu poderia voltar a afundar, mas não me permitiria o afogamento tão fácil assim. Que se acertem aqueles que ainda devem algo. Que os antigos sonhos se explodam e que quem passou permaneça longe de mim. 

     Que o fantasma indecente morra. Que os antigos afetos se fodam. Que quem me tratou como objeto nunca mais me ocorra. Que a madrugada engula tudo e preencha seu estômago vazio e sacie seu apetite tão voraz. Que o processo de digestão seja eficaz: eternidades transformadas em nunca mais. 

22 minutos

     Não há comoção que me demova e nem desconforto que me mova. Sou o que costumo dizer, mas, evito falar para que possa viver sem ter a pressão das minhas próprias palavras em mim. Sou sério e cético, geralmente. Creio, porém, nas humanidades mais desumanas e nos sentimentos alheios e invariavelmente afetados, como o amor. É impressionante o que se faz em nome de uma emoção, principalmente quando você batiza o sentimento com um nome. Você pronuncia o nome, o rosto se vira em sua direção e ali há o universo. Você repete o nome numa despretensiosa e chuvosa manhã de sábado qual acorda antes e observa o amor dormindo tão pacificamente ao seu lado. Lá fora chove, mas dentro o silêncio é adequado. De repente você sorri, pois descobre que o amor também ronca. A memória de uma lembrança perfeita se vai, pois perfeição não há e nem existe continuidade que continue suficientemente. O relógio é inimigo. Tudo se desfaz lentamente. A narrativa se quebra e as reviravoltas da vida te atingem. Você recomeça, mas nunca mais ousa a batizar alguém com o nome do sentimento. Há agora uma quantidade impressionante de cicatrizes antigas, todas as rugas de cansaço, todos os receios tão sutilmente invasivos flutuando pelo espaço. Você sabe que tudo está visível para quem enxerga bem. Há ali o resto do que ainda não se foi, mas discretamente também persiste a sombra do que um dia foi amor. Eu que olho e vejo, percebo-a como algo tão inútil, mas dou de ombros por saber que não há ali nada de errado. Todos somos insistentes no que já deveria estar ultrapassado. Sou especialista em gente, principalmente em pessoas amargas e gargalho sonoramente de quem cria personagens fictícios para se representar numa realidade que parece insuficiente. Confesso que rio deles, pois às vezes me pego nesta identificação recíproca. Ser um não basta. Queremos nos fragmentar para que exista uma chance mínima de que alguém compreenda nossas completudes. Somos seres vastos, raramente magnânimos, mas quando inundados por uma coragem súbita, buscamos imediatamente o que faz palpitar mais rápido o coração.  

     Quando eu era novo, eu apenas agia ou deixava de agir. Nunca havia tempo para o pensamento demasiado e qualquer distração se preenchia de maneira suficientemente confortável. Quando a dor ocasionada pela solidão era exagerada, isolava-me em outros mundos. Fechava portais quais nunca deveriam ter existido em reinos distantes, vertendo-me numa utopia na qual eu personificava a coragem infinita do próprio menino que carregava a chave do reino dos corações. Gostava da poesia de sentir que as coisas estavam próximas, mas incrivelmente distantes. Não me cumpri em ideais, mas idealisticamente me tornei incomparável. Fiquei mais velho e mais sério. O trabalho dignifica o homem, mas o desgasta. Envelhecer dói e há ressentimento para com o relógio, principalmente quando sentimos que a vida está mais rápida ou lenta do que deveria. Captamos a distância entre nossas oscilações e compreendemos nossos ritmos, mas não existem mais ações impensadas (não completamente). Sabemos e temos a segurança do conhecimento, entretanto, às vezes escolhemos o escuro e a ignorância. Quando novo eu, não raramente, derramava-me por hábito. Não havia caixas guardadas em um porão secreto com coisas não ditas àqueles que se revelaram menos amigos do que supus que seriam; dos amores que não amaram; das pessoas que compraram a ilusão de que seriam amadas por mim e se decepcionaram. Não havia preocupação com quem se transformasse em cinzas no meio de meus tantos fogos cruzados e manias inequivocamente equivocadas, mas ao mesmo tempo tão singularmente minhas. Evito hoje o rastro de destruição por onde passo, mas talvez o faça mais por conta de meu próprio cansaço. Conservo minhas excentricidades de outros tempos e as novas, mas não sou mais qualquer príncipe de melhores horas. Meço sucessos e fracassos sem ter a menor preocupação em diferenciá-los. O que se parece às vezes é igual. Tudo termina de modo semelhante para os que se cumprem e para os que falham.

Metáfora prolongada do brilho das estrelas. Outra vez calei minhas palavras com a impressão de que deveria dizê-las.

     Pensei numa frase extremamente romântica, mas escolhi o silêncio, pois à época achei melhor não dizê-la. Quem sabe o receio tenha me afastado do brilho espetacular das estrelas. Como aprendi em quase um ano sobre mãos, sorrisos, bocas e gestos. Como entendi que quase ninguém me apreciaria por me derramar do meu jeito honesto. Bebi para perder o rumo, quando senti que o rumo era muito certo e quando não havia rumo, solidarizei-me com estranhos desconhecidos que sempre andam preguiçosamente em círculos sem saber para onde vão. Quando não havia ninguém, eu amei vultos que encontrei pelo caminho. Era preferível a ilusão do que crer em uma jornada feita por um homem sozinho. No Distrito Federal andava mais vagarosamente até o meu quarto de hotel e esperava que uma das tantas portas escancarasse de súbito um destino novo pra mim. Nada nunca acontece, exceto internamente. A imaginação inata é o nosso maior escudo contra a realidade, mas por vezes com certa crueldade deforma e piora o que já nos ataca. Um vacilo ao coração e repentinamente você se mata.


Mas olha... Tenho cinco minutos para terminar o texto e não sei o que devo escrever. Mas olha, eu queria te dar uma dica, mas nenhum conselho se fixa. Não sei o que vou fazer. Olha como a vida muda e as pessoas insubstituíveis somem e outras aparecem e você se acostuma. Olha como fica a saudade daquela memória embaçada na densa bruma. 

     Tive 22 minutos para dizer algo precioso, mas falhei. Observei a minha família e fui feliz. Comi pizzas e fui feliz. Na minha boca, porém, gostaria de sentir outros sabores nos quais se reinventam vidas e renascem esperanças em amores... Queria acreditar que... Que entender a razão de... Queria querer menos do que quero ou queria querer diferente do que espero. Posso ser feliz de outros jeitos, eu sei, mas ainda não assimilei tanto assim como. Tenho um comichão que me faz estremecer. Queria ter um amigo para conversar, mas hoje é daqueles dias que todos desapareceram. Bebo água sozinho. Bebo vinho sozinho. Logo mais beberei cappuccino (também sozinho) e vou dormir com o meu cachorro. Eu morri hoje, mas amanhã eu não morro. 

sábado, 6 de julho de 2019

O livro de Geffen - I - Capítulo 2: O entregador


Capítulo 2: O Entregador.

        Dambibo estava impaciente e mal-humorado. Reconhecia que a alegria não era um de seus pontos fortes, mas ao mesmo tempo pensava que as circunstâncias dos últimos onze dias lhe eram totalmente desfavoráveis e que aquilo justificava o seu destempero. O sujeito estava cogitando não fazer as entregas, mas seu senso de responsabilidade era superior às vontades mundanas. Sua ética profissional simplesmente lhe impedia de deixar obrigações pendentes. O trabalho existia, essencialmente, para que fosse concluído.
            — Porcarias de decoro e educação. Por que eu não posso simplesmente parar de fazer essas entregas?! — Sua voz era áspera e seu tom grosseiro, mas acreditava que não havia motivos para ser polido em um monólogo consigo mesmo. — Você sabe! Porque você é um entregador, seu idiota!
        Dambibo tinha noventa e sete anos de vida, mas para ele e os de sua espécie aquilo não era nada excepcional. — Se eu fosse um maldito humano provavelmente já estaria morto e com podridão em todos os meus ossos, mas pelo menos eu não estaria fazendo esse maldito... Essas entregas! — Ele continuava com os resmungos, pisava duro e mantinha uma careta. Embora reclamasse incessantemente, sabia que não havia ninguém para prestar atenção em sua birra. — Uma onzena trabalhando consecutivamente! Eu me pergunto se qualquer humano trabalha onze dias seguidos em seus reinos! É claro que não! Nem mesmo aqueles miseráveis elfos com suas cabeças de almôndegas — enfatizou a frase com uma raiva crescente enquanto cerrava o punho direito como se fosse socar algo — trabalham tanto quanto nós! Gostaria de acreditar que há limites para a folga, porém, a resposta é óbvia. Para ser sincero já é previamente sabido que não existem tais limites. — Dambibo continuava com suas rabugices, mas avançava com rapidez. Muito tempo se passara desde que percorrera aquele caminho pela última vez, mas ele ainda conhecia a trilha como as palmas de suas mãos. Durante o percurso reconheceu uma placa que não lia há alguns anos.

Cuidado: Área de Baleias Gigantes.

        — Cuidado? Até parece! É bom que essas orcas tomem cuidado comigo. Eles me mandam para qualquer lugar. E daí? Quem se importa comigo? Vila Nebotete! Pelas orelhas pontudas de Smeriel! Quem mora naquela vilinha por esses dias?! Com certeza existe um engano no destinatário, mas na dúvida quem deve percorrer quilômetros para tirar a prova? Dambibo! Quem é a cobaia da ocasião? Dambibo! Quem é arrastado até as proximidades da Montanha do Princípio? Dambibo! Toda vez eu! Sempre eu! Tudo eu! Se eu tivesse me tornado um bruxo, provavelmente disporia de mais regalias, mas que hora infeliz para ser um alatu.
        Dambibo atravessou uma longa e estreita passarela de gelo com impressionante velocidade. O azedume do entregador continuava palpável. Sua expressão transmitia irritação e desconforto, mas mesmo de mau humor e pisando com firmeza no solo, seus movimentos eram tão leves e suaves que lhe conferiam um aspecto de dançarino. A mente do entregador estava concentrada no momento em que o maldito elfo lhe designara aquela missão.
        Venha, Dambibo. Aproxime-se. Desta vez é importante. Você foi selecionado para entregar a encomenda de B para G. Este está na região da Montanha do Princípio, segundo o remetente, na Vila Nebotete, e não temos o número da barraca. Você terá que verificá-las uma a uma.        
        Dambibo não gostava muito dos elfos e nem que ressaltassem seu parentesco com eles. Ele também detestava piadas. Julgou tosco todo aquele humor élfico. O mestre de missões havia sorrido amigavelmente, mas ao entregador ele pareceu sarcástico e cínico. Dambibo perderia as estribeiras se não fosse seu emprego, mas a necessidade de obedecer ao chamado do dever existia e aquilo fez com que ele mantivesse o controle. — Porcaria de elfo! Ele não sabe o que é dar duro! Fica sentado naquela cadeira com aquele sorriso afetado e bobo! Aquele cara de almôndega! Até o nome é fresco... — Dambibo assumiu uma expressão abobalhada, afinou a voz e tentou uma imitação. — Olá, eu sou Grovidarmel, um elfo muito bacana. — Parou a imitação para dar vasão à sua raiva. — Grovi o quê? Que porcaria é grovi? Só pais almôndegas poderiam ter dado um nome tão delicado a um elfozinho. Patifaria! Nas horas difíceis não há nenhum Darmel para ajudar, mas nunca falta o Dambibo. Problemas? Muitos! Não sei quando foi que eu pendurei na minha testa uma placa escrita O Solucionador de Conflitos. Não posso ter paz?! Porcaria!

        O dia passava e o ocaso se aproximava. Os pássaros que cruzavam os céus já buscavam seus esconderijos para passar a noite. Dambibo seguiu a trilha por horas a fio com a mesma agilidade que lhe era peculiar. Mesmo que estivesse completamente insatisfeito e indisposto, ele jamais deixava de realizar seu trabalho. Se havia um serviço a ser feito, ele o fazia. Estreitou os olhos e finalmente viu a pequenina vila. Ficou aliviado por um instante até lembrar-se de que sua jornada era pura perda de tempo. Receou-se de que a entrega poderia ser só mais uma sacanagem dos malditos elfos, mas decidiu que nem mesmo eles fariam isso quando o assunto era trabalho. Ainda de mau humor, Dambibo continuou pela estrada. Ele observou que apesar de antiga, ela mantinha um aspecto relativamente bem conservado.
        — Vejo que estão cuidando bem do fim do mundo. Que notícia boa! — Disse em tom sarcástico. — Sei que há um engano no destinatário! Eles me fizeram vir até aqui! Eles ainda vão se entender comigo! Eles irão ver! Eu juro que vou... Vou fazer uma reclamação formal! Podem apostar que eu vou! — Ele estava surpreso com suas próprias piadas. Nasceu e viveu quase toda sua vida em Glacep, o Continente Gelado, e sabia que muitas lendas apontavam a Montanha do Princípio como o local onde o mundo se originara. Achou irônico que o começo do mundo estivesse largado há tanto tempo e mais merecesse o apelido de fim do mundo. Ele não presenciara os tempos em que Glacep era considerada um dos continentes mais prósperos, mas ouvira todas as histórias. Até pela experiência de vida, Dambibo sabia como a vida era imprevisível e dinâmica. O mundo dava muitas voltas.
        Você vê, Dam? Todo o restante do mundo evolui e Glacep parece ficar para trás. É triste. Algum dia esse continente vai virar história. — Escutou o entregador e por um momento foi como se ele estivesse prostrado ao seu lado.
        — Eu sei que você só fala agora através das minhas lembranças, mas eu nunca tinha prestado atenção nas suas palavras. É mesmo... É mesmo realmente triste. — Sua voz abafada pelo vento era quase inaudível. Por alguns instantes a sua carranca se desfez e sua expressão denotava uma tristeza profunda. Se existisse alguém por perto talvez pudesse ter um vislumbre de sua dor; provavelmente estenderia um silêncio solidário e se fosse empático o bastante observaria em silêncio soturno. Mas não havia qualquer ser vivo. Dambibo estava sozinho e ao redor só havia neve e gelo. Nos instantes em que se sucederam o entregador só ouvia as sinfonias produzidas pelo vento. A lembrança de outrora fez com que ele ficasse sorumbático. Sua alma era mais nublada e instável do que o próprio céu. Ele respirou fundo e seguiu em frente. Desanuviou os pensamentos quais preferia evitar, fugindo de um passado inevitável, qual ele sabia que era mais rápido que ele.

        A área montanhosa perto da Vila Nebotete representava um grande deserto congelado. Havia pouquíssima diversidade de vegetação, ínfimas árvores e poucas espécies de animais. Bem distantes, ao fundo do cenário atual, as únicas que ganhavam seu devido destaque, imponentes e soberanas, erguendo-se como se fossem rainhas daquela região, eram as montanhas. Dambibo fitou o horizonte, contemplativo.
        — Não consigo acreditar neste lugar. O vento é a única coisa que faz barulho por aqui, mas o silêncio deve ser ensurdecedor na maior parte do tempo. Já estive nessa região, mas mal passei pela vila. A ideia de permanecer em um local assim é absurda. Creio que a única boa coisa deva ser o fato de não haver salteadores por estas bandas. Com certeza congelariam as suas bundas criminosas por aqui. Ademais, o que salteadores fariam aqui? Roubariam ou tomariam para si exatamente o que? Venderiam neve por gelo e gelo por pedra? Não, não há motivos para cogitar salteadores nesta região. A não ser que fossem mestres de alguma magia ou alquimia avançada e pudessem transformar neve em ouro, qualquer hipótese de permanência neste local seria idiotice pura. Também não existem alquimistas ou usuários de magia que sejam realmente capazes disso, embora não seja sábio duvidar das histórias infantis. Por que é que estou falando sozinho?
        Alguns minutos depois, Dambibo finalmente chegou à humilde vila. Leu a placa Byon Yutro e compreendeu que os últimos que ali residiram eram da mesma espécie que ele. Não entendeu porque utilizariam a língua antiga após o decreto que determinava que todos os habitantes do planeta Sayarivie possuíam a obrigação de utilizar a mesma linguagem para comunicação, mas depois imaginou que a placa pudesse ser tão antiga que tivesse sido construída antes do decreto, apesar de seu estado muito bem conservado. Eu não penduraria uma placa de boas-vindas para ninguém se morasse aqui. Quem é que visita um lugar como esses? Quem é que se arriscaria? Lembrei! Obviamente há alguém que pode: Dambibo. Pensou com a sua ironia afiada.

        O entregador não achou útil procurar respostas para perguntas tremendamente inúteis e dando de ombros, partiu para examinar as barracas e encontrar G. Seu humor piorava na medida em que ele checava as barracas. Estavam incrivelmente limpas e como ele havia imaginado, vazias. Só havia duas barracas a verificar e seu pensamento estava concentrado em atar fogo nelas quando a inspeção terminasse. Dambibo checou a penúltima tenda e verificou que ela também estava vazia. Entrou como um raio na última. Quando suas mãos abriram a fenda e ele adentrou a barraca com o pessimismo que sempre o acompanhava, deu um passo para trás, recuando seu corpo em um impulso defensivo. Estava assustado ao perceber que havia um garoto humano deitado em uma cama.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Rosto e Memória

Rosto e Memória

Vi o seu rosto, mas já não sabia se ele era realmente seu
Vi o meu rosto, porém, não reconheci a minha imagem 
A vertigem que senti fazia com que estremecesse o chão
O mundo girava, girava e acho que nunca parou de girar
Ao menos quando tudo estremeceu, eu me coloquei no lugar
Meu corpo jazia imóvel e eu me observava de fora 
Sentado de pernas cruzadas ao lado do Tempo
Observei os ponteiros e o constante (es)correr das horas 
Átomo de fim do mundo, suspiro eterno do momento 
Vi quando todos se apressavam em um mundo urgente 
Notei que eu nunca te esquecia
Até que me esqueci de repente 
Contemplei meu corpo tão frágil
e a profundidade dos espaços 
Admirei como você não se dobrava
Constantemente forte como o aço 
Respirei quando tudo se desolava, mas 
simultaneamente eu me isolava em cansaço
Senti em meu peito a recriação do Universo 
Recomecei a andar nos caminhos que cri 
Numa noite maldita, lançaram-me um olhar sacro 
Numa madrugada sem fim, enfim, achei algo
Uma mulher de três faces me apresentou à Magia
Vi seu rosto outra vez, reconheci-o e a melancolia se apoderou de mim
Talvez eu tenha chorado, mas ninguém viu, assim não sei se aconteceu
Vi a sua sombra se mover na noite e convidar a minha para uma Terra do Nunca
Onde nunca fôssemos nos separar e os conceitos fossem reinventados 
Onde existisse espaço para concretizar o que quer que tenha sido imaginado
Onde faíscas que se tornam explosões podem explodir para sempre 
Onde a fragilidade do amor e a necessidade de destruir se silenciariam 
Onde palhaços, jornalistas, padeiros e advogados pudessem conviver bem
Onde cada um tivesse espaço para ser o que é sem se sentir refém 
Num antro onde estivéssemos livres das garras afiadas do desdém, mas 
Alguém apagou a luz e mergulhamos fundo na escuridão
As sombras desapareceram em uma espécie de fusão  
A invernia subitamente esfriou o mais quente coração 
Perdi a memória de tudo que um dia houve em vida
A sorte de quem não é forte é ter a história esquecida? 
Vi o teu rosto e recebi a sentença de morte 
Proferida por uma espécie de cruel Rainha
Abri meus olhos e tentei correr para dentro do meu carro e fugir 
Desembainhei um olhar afiado, ergui os braços cansados, mas não pude resistir
No breu um grito abafado e uma pancada em minha cabeça: furor
Quem sabe em outra vida, eu não entenda a razão das estrelas, 
o sentido da Vida e algo sobre Amor
Morri ontem ou pelo menos matei aos pontapés e socos
O que na minha pele esteve tão marcado e exposto
Aquele estranho conto que compõe a minha história
Tudo o que lembro é que foi em meados de agosto
Seu nome, porém, é um retrato fosco
Resto de um retalho tosco
Perdi a clareza de seu rosto em minha memória

quinta-feira, 4 de julho de 2019

O livro de Geffen - I - Capítulo 1: Perdido.

Capítulo 1: Perdido

        Um vulto marrom escuro quebrava a alvura do restante do ambiente. Era um único ponto escuro no meio da imensidão branca. Só alguém suficientemente louco ou embriagado ousaria atravessar o deserto gelado de Glacep sob a colérica nevasca, mas era precisamente a cena que se sucedia. Um ser coberto por um pesado casaco marrom caminhava vagarosamente para algum lugar. Não era mais que uma mancha assomada em meio a branquidão. Aquela era a pior tempestade de neve que acontecia nas últimas décadas. As rajadas de vento eram tão assustadoras e a neve caía tão intensamente que nem mesmo era possível dizer se era dia ou noite. O vendaval fez tremular o capuz e revelou por um instante o rosto inocente debaixo da manta: era apenas um menino. Ele usou suas pequenas mãos para ajeitar a posição do capuz e continuou seu lento avanço. A brisa cortante o trespassava tão bruscamente que parecia querer lhe impedir de seguir em frente, mas não havia oscilação em seu ritmo e nem hesitação em seus passos. Se houvesse qualquer indivíduo das raças superiores observando a situação, provavelmente diria que a criança era espetacularmente persistente. Se a análise fosse minuciosa, porém, notaria que o garoto parecia vazio. Era como se ele caminhasse cego e tranquilo para a própria morte.
        A criança possuía olhos cor de safira, mas eram opacos e desprovidos de emoção. Ele era o único a caminhar sobre o gelo naquele momento crítico, mas seguia em frente como se estivesse hipnotizado por uma força maior que ele. As passadas eram curtas, mas o seu ritmo constante fazia com que o avanço fosse gradual. Era como se percorresse uma trilha mapeada em seus pensamentos, porém, sua mente estava límpida e ele apenas continuava andando. Os nativos daquela região diriam que um homem adulto acostumado ao mau tempo teria muitas dificuldades em suster-se naquelas condições climáticas, mas de alguma forma o menino prosseguia e enfrentava a violenta tempestade. Acaso lhe perguntassem, ele não saberia explicar, mas sabia que precisava seguir em frente. A constatação bastava.
        A temperatura nunca estivera tão baixa nos últimos anos no Continente Gelado como estava na última quinzena e aquele era o dia mais frio dos dias atuais, porém, o garoto parecia estar alheio a isso. Obstinado, ele seguia em frente. Ignorava o frio soando indolente, mas insistia em avançar com uma persistência que poucos possuíam. O mais estranho naquela criança, porém, era que seus olhos não refletiam nada sobre seu estado de espírito. Enquanto caminhava nem mesmo um pensamento atravessou sua mente. Tudo nele era um enorme vazio. Sua mente era como uma tela em branco. Na medida em que ele mantinha o seu progresso, seus pés já afundavam na neve acumulada quase até a altura de seus joelhos, mas suas pequenas pernas insistiam em se mover. A nevasca o impedia de enxergar mais de três metros adiante, mas seus olhos permaneciam atentos e bem abertos. O vento ululante aumentava a sensação de que o continente gostaria de expulsar aquela pequena e indefesa criatura para longe, mas um passo por vez ele continuava, inabalável. Resistiu bravamente às lufadas e persistiu com firmeza em seu avanço.
        O garoto utilizava trajes simples: uma camisa de linho vermelha encoberta parcialmente por um gibão cinza escuro, uma calça marrom de couro novo e botas marrons do mesmo material da calça. Vestia ainda uma capa de cor marrom escura que possuía um capuz que cobria seus cabelos e parte da testa. Ele nada sabia a respeito do material de suas roupas, mas eram vestimentas de qualidade inquestionável. A camisa e a capa haviam sido feitas para alguém mais alto que ele, pois a capa se acumulava ao piso nevado sendo arrastada enquanto ele se movimentava, e a camisa ultrapassava seus punhos, engolindo-os, o que lhe foi conveniente durante sua caminhada na tempestade. Em um local onde o clima fosse frio, aquela vestimenta lhe protegeria com facilidade, mas naquela região qualquer criança comum estaria a ponto de congelar mesmo com a roupagem. Havia algo de especial naquele menino de olhos azuis. Era como se o frio não fosse suficientemente ousado para penetrar seu corpo.
        Após mais algumas passadas curtas, o menino avistou uma discreta placa de madeira, ligeiramente conservada. Manteve-se andando, sem alterar o ritmo, e notou que conforme continuava a caminhar, a sua visão se tornava mais nítida. Agora a placa estava acerca de dois metros de distância e ele percebeu que ela era mais alta do que ele. Parou por um instante observando com atenção a inscrição que nela havia. Byon Yutro. Recitou as palavras em sua mente. Ele tentou vasculhar na memória algo que pudesse lhe indicar alguma informação sobre aquela frase, mas não obteve qualquer resposta. A ventania que ele escutava em conjunto com a nevasca ressoava infinitamente em suas entranhas percorrendo os seus vazios. Quando reconheceu que não entendia a frase da placa soube que não faria diferença entende-la. Não deveria ficar parado ali preocupando-se com questões triviais, diziam seus instintos. Tinha que ir adiante.

        A criança deu mais dez passos mantendo sempre a mesma direção. Avistou nove barracas de aspecto frágil, dispostas em uma espécie de sequência torta que lembrava um L invertido. Um garoto normal celebraria feliz e aliviado por encontrar abrigo para se proteger da tempestade de neve, mas aquele permaneceu indiferente e silencioso. Embora a temperatura não parecesse o afetar, ele começava a sentir o cansaço pela longa caminhada. Não tinha em suas lembranças quando começara a andar na neve e nem tinha a mínima ideia de por quanto tempo seguido já estava em sua incessante jornada, mas sentia os músculos de suas pequenas pernas acusarem o cansaço. Logo mais seu corpo se retesaria e ele não teria forças para continuar. Deu dois socos fracos em suas coxas como quem dizia para elas aguentarem mais, quando uma rajada mais forte de vento jogou seu capuz para trás e seu pequeno corpo oscilou. Se não estivesse com as pernas afundadas na neve, talvez tivesse sido arremessado ao longe, mas só a sua cabeça ficara descoberta. Agora seus cabelos alvos como a própria neve haviam sido revelados e balançavam freneticamente como se fizessem uma espécie de dança ritmada. Repentinamente a tempestade se tornara ainda mais agressiva. Ele cruzou os dois braços acima da cabeça para proteger seus olhos dos flocos nevados que despencavam do céu com inacreditável violência. Voltou a andar e parou quando estava a poucos metros da primeira barraca. Fechou os olhos para se concentrar melhor em tudo o que estava acontecendo. Seus pensamentos, porém, eram extremamente vagos e a única coisa que trespassou sua mente foi uma breve observação: gostaria de entender porque o vento está tão furioso hoje. Permaneceu imóvel na tentativa de ouvir melhor, mas acabou por dar de ombros. Ele repetiu em seus pensamentos algo que imaginou ter escutado ao menos uma vez: nunca escutamos bem enquanto estamos furiosos, vê? Se alguém está furioso, se afaste. A fúria é o inverso do estado natural. Sempre cria problemas, e nunca os resolve. Não se enfureça. Há alternativas.
O menino fez força para lembrar-se de quem havia lhe dito aquilo, mas seus esforços foram vãos. Ele decidiu que o vento não diria qualquer coisa relevante naquele estado irracional e deu um passo adiante se posicionando de frente para a primeira barraca. Notou que não havia portas, mas não foi difícil localizar a entrada, pois havia uma pequena fresta disposta centralmente na lona. Decidiu usar suas mãos para abrir aquela espécie de fenda e finalmente adentrou à barraca.         

        Dentro da tenda, o garoto se surpreendeu com a fenda que se fechara sem a sua ajuda. Concluiu que aquilo evitava que o vento gelado para o interior da barraca. Ficou pensativo a respeito da fenda de entrada e logo chegou a uma conclusão. Ela fora projetada para permanecer fechada, mas como o tecido de que era feita possuía surpreendente elasticidade e resistência, aquele que desejasse entrar só teria o trabalho de abrir a fresta com as próprias mãos. O material elástico faria com que a fenda se fechasse assim que alguém entrasse ou saísse. Sei. Você estica o tecido da barraca criando uma abertura temporária que se fechará imediatamente quando você a soltar. Depois da breve reflexão sobre a fenda, ele voltou seus olhos para o que havia na parte interna da barraca. Foi acometido por um tipo diferente de curiosidade. Notou que por fora aquela barraca tinha um aspecto frágil e vulnerável, mas por dentro a impressão era completamente diferente. Agora ele se sentia protegido da ira das ventanias. Fechou os olhos mais uma vez se concentrando para tentar ouvir com atenção os mesmos sons terríveis que o vento produzira e que ouvira do lado de fora, mas agora toda a raiva que ele percebia nos sons não passava de um eco fraco, quase imperceptível. O garoto concluiu que o vento ainda não cessara a fúria, mas preso para dentro aqueles sons tenebrosos mais pareciam sussurros. Os assobios que se assemelhavam a gritos de socorro agora não passavam de leves chiados. Abriu os olhos e voltou sua atenção ao interior da barraca. Desta vez não deixaria nada escapar de sua análise.

        Havia três archotes acesos dispostos em suportes de cobre que iluminavam a pequena residência. Observou com mais atenção tudo a seu redor. Uma pequena e complexa estrutura feita por pedaços de ferro atravessava estrategicamente algumas partes da tenda. Ele olhava tudo repleto de curiosidade. Pedaços de ferro sustentavam outros pedaços do mesmo material no teto baixo enquanto outros pedaços ainda estavam presos ao chão, fincados como estacas. O piso era de gelo e refletia a imagem de maneira límpida e perfeita se assemelhando a um espelho. O garoto observou seu reflexo por um instante, sem muito interesse e voltou a examinar a tenda. A moradia era pequena, mas olhando por fora parecia muito menor. Não havia quase nada no interior da barraca, mas era aconchegante assim mesmo. Os músculos da perna do menino novamente o alertaram para o cansaço, e desta vez ele sentiu um tremor se estender por todo seu corpo, porém, decidiu que não descansaria até terminar sua inspeção. Agora tentaria ser mais rápido. Correu os olhos pela barraca e tudo que encontrou foi uma cama sem cobertores e travesseiros, e um livro ao centro dela. O livro que era intitulado Receitas com Ervas do Mestre Pactus chamou sua atenção, pois tinha trinta centímetros de altura por vinte de largura, mas o que realmente causava espanto era sua capa muito espessa. O menino sentiu-se imediatamente atraído por aquele livro. Suas mãos tocaram a capa involuntariamente e seus dedos deslizaram suave e pacientemente por ela. Sentiu a textura como quem tentava captar uma mensagem invisível ou apenas se deleitava com algo incompreensível. Saiu do seu estado de torpeza. Quando retirou o livro da cama teve certa dificuldade em segurá-lo, pois o livro era mais pesado do que aparentava. Ainda assim, o garoto decidiu que não sairia dali sem ele. Pegou-o com ambas as mãos e em seguida saiu pela mesma fenda pela qual havia entrado. Então ele rumou para a segunda barraca.
        O menino constatou com rapidez que a segunda tenda era tão vazia quanto à primeira. Antes de começar uma nova análise, ele deixou o livro no chão para que seus braços pudessem descansar. Percebia agora que assim como na primeira também havia uma cama nesta barraca. Havia também algumas louças colocadas lado a lado em um pequeno suporte cor-de-rosa. O suporte fora feito com muita cautela e se assemelhava com um item específico para guardar as louças. Se não fosse feito para guardar essas coisas, isso aqui poderia ser um banquinho.
A criança não sabia se aquele pensamento cruzara sua mente por estar beirando a exaustão ou se de fato aquilo se assemelhava mesmo com um banco, mas deixou o assunto de lado e se aproximou do suporte para observá-lo de perto. Havia uma chaleira metálica de cor cinza com um semicírculo branco desenhado na parte frontal e uma estranha argola pendia em seu topo como se fosse feita para ser pendurada. Havia também algumas xícaras e pratos brancos com semicírculos cinzas igualmente dispostos em cima daquela bandeja cor-de-rosa. O tamanho tão reduzido daquelas louças causou uma estranheza no garoto. Reparou que os objetos eram tão pequenos que cabiam nas palmas de suas pequenas mãos. Ele ergueu com cuidado uma miniatura de xícara, e levou um pequeno susto quando viu a xícara aumentar de tamanho. Ela maximizou-se até ficar do tamanho de uma xícara comum e agora era apropriada para que o menino pudesse utilizá-la. Ele retornou a xícara ao suporte e ela voltou a encolher. Então a retirou novamente, e observou mais uma vez a xícara aumentar. Ele ficou ligeiramente impressionado com o que via, mas não tinha disposição para pensar no assunto. Já estava muito cansado, e por isso não foi capaz de notar que havia mais objetos em miniaturas próximos do suporte. Embora sua mente estivesse límpida como a nascente de um rio, seu corpo só queria parar. Ele continuou a analisar tudo a sua volta e notou o aspecto impecável de limpeza daquela tenda. De alguma maneira ele sentiu que aquilo era correto. A limpeza significava, de uma maneira inexplicável para ele, que as coisas estavam exatamente como deveriam estar. Quando voltou a andar, seu pé direito bateu em algo, e ele abaixou-se para pegá-lo. Constatou que era outro livro, este intitulado de Guia de Pesca no Gelo do Mestre Pactus, mas este estava sem todas as suas páginas. Como não achou útil carregar um livro que tinha a capa, mas estava sem páginas, resolveu deixá-lo. Em seguida recolheu do chão o outro livro que encontrara na primeira barraca e seguiu para a terceira.
        O menino parou assim que entrou na terceira tenda. Outra vez deixou o livro no piso de gelo antes de procurar cada detalhe. Reparou que existiam aspectos similares na primeira, segunda e na terceira barraca, e tentou estabelecer uma espécie de padrão. A iluminação era gerada por archotes, a estrutura de ferro era muito parecida nas três, e em todas havia uma pequena cama para uma pessoa, posicionada em um canto. A barraca na qual estava, porém, possuía características singulares. Havia uma grande cavidade circular ao centro da tenda preenchida por águas quentes e borbulhantes. Naquele instante o garoto não teve a percepção do que aquilo significava, mas eram águas termais. Aquela barraca era utilizada pelos moradores para o banho. A criança, alerta, viu um suporte de metal alaranjado fixado na parede mais próxima da banheira. Estendida acima do metal laranja havia uma toalha amarela. Observou com atenção tudo mais uma vez e não encontrando mais nada que o fizesse permanecer naquela tenda, recolheu o livro perto da entrada e seguiu adiante.
        A vistoria nas cinco barracas seguintes foi veloz. O garoto observara que elas eram rigorosamente iguais a primeira barraca que tinha checado. A única mudança notável era a posição da cama e a ausência de livros. Finalmente chegou à última barraca. Era a nona e já estava decidido antes mesmo de saber se havia uma cama em seu interior que passaria a noite ali. Ao entrar, reparou que a tenda era muito diferente das outras. O seu corpo não aguentava mais, mas apenas por reflexo se manteve em pé, pois precisava conferir. Seu olhar analisou minuciosamente tudo ao seu redor. A primeira observação que fez era a de que embora todas as barracas possuíssem o mesmo tamanho por fora, esta era nitidamente maior por dentro. Não sabia como isso poderia ser possível, mas não havia sentido em negar algo que estava acontecendo. O menino não percebeu, mas aquela era a barraca do chefe dos antigos moradores da vila. Ele vasculhou rapidamente e encontrou uma lança de caça, uma bengala e um escudo de madeira. Seus olhos se voltaram involuntariamente com avidez para a cama. Esta tinha o triplo do tamanho das outras camas da vila. Exausto, o menino subiu nela. Ficou sentado com as pernas esticadas e sentiu um alívio súbito. Seus olhos corriam pela barraca e estavam cada vez mais pesados enquanto seus pensamentos tentavam encontrar alguma coisa que fizesse sentido. Ele não se lembrava de nada que acontecera antes de estar caminhando na nevasca. Não se lembrava de rostos, não se lembrava de propósitos, não se lembrava de acontecimentos e nem de quem dissera as poucas palavras das quais havia se recordado mais cedo naquele dia. Era como se a sua vida tivesse se iniciado com aquela dura caminhada no gelo. Tirou os sapatos e os colocou no piso, ajeitou-se na cama e colocou o cobertor sob seu corpo. Deitado, sua mente começava a desacelerar e seu corpo a ficar quente e confortável, mas ele ainda teve tempo para notar que apesar de tantas camas aquele era o único cobertor da vila. Não sabia se isso tinha realmente significado. Suas costas relaxaram e suas pálpebras estavam pesadas como bigornas de ferro. Já não era mais capaz de se manter acordado. Estava prestes a entrar em um sono profundo quando seus olhos se arregalaram subitamente pela compreensão. O menino de repente teve uma única certeza. Geffen. Sim. O meu nome é Geffen. Ele soube que a necessidade de seguir em frente havia o abandonado. A força que tinha para se manter desperto se esvaiu rapidamente. Geffen sentiu o mundo tornar-se rosa e depois negro. O sono de que tanto necessitava finalmente havia o alcançado e dormiria agora, pelo menos naquela noite, completamente ignorante e sem preocupações.

Você me envelheceu

       Certa feita cheguei em casa completamente exausto. Cumprimentei o meu cão com todo o entusiasmo que ainda me restava. Confesso que, na verdade, quase não restava nada meu em mim. Eu havia deixado que a sonolência se apoderasse de meu corpo. Preocupei-me com meus lapsos de memória, mas sabia que era uma das consequências. Representava apenas uma das portas que cruzei. Prendi a respiração por tanto tempo que me esqueci de como respirar. Arfei longamente e me senti de volta em mim. É difícil, não? Quando as coisas doem dentro e não há ninguém por perto e morre ignorada sua comoção. É difícil. Você sofre e as pessoas com as quais conta estão realmente longes. Hoje não lhe serve toda a sua inteligência, sua capacidade, sua formação. A infeliz verdade é que o seu alcance não alcança. Não há mãos para segurar e você treme por horas antes de conseguir cochilar. O que será que faz o seu amor? Se você pegar o carro em um acesso súbito de loucura romântica e dirigir até o seu destino, diga-me, como é que sua pessoa te receberia? Talvez um olhar insinuante que acusa o seu lunatismo. Talvez uma face horrenda de esgar interpretada por pura questão de oportunismo. A gente sempre enxerga o que vê? 

       Saí daquela casa como outras tantas vezes. Era quase tão minha quanto àquela em que morei. Achei que sempre ia voltar. Inocência... as crianças viram jovens, os jovens viram adultos e os adultos se tornam velhos. Cedo ou tarde é preciso aprender e, goste ou não, você aprende. Aprende a lutar contra as injustiças ou a permiti-las ou a participar delas. Aprende a erguer os punhos ou a desviar os olhos. Você se esforça, mas também descobre que nem sempre isso adianta. O que é que funciona de maneira real e objetiva? Você tenta disfarçar suas ambições de maneira furtiva, mas nem sabe o motivo de escondê-las. Acha que é um equívoco crasso sonhar em ter um lugar ao lado das estrelas? Cesso o devaneio para que volte a me concentrar aqui. Meu instinto protetivo nunca arrefeceu, mas uma conversa específica me envelheceu. Ainda que tenha sido durante um sonho, eu me espantei com o seu jeito peculiar de pescar em mim o que melhor havia aqui dentro e eu ainda nem fazia ideia. Disse-me com uma confiança revestida de qualquer coisa bonita, na verdade, coisas realmente interessantes e lindas. Abordou o meu modo de pensar e me fez ver que havia outra maneira de ver. Revi todas as minhas hipóteses com outras perspectivas. 

       Bom, você me envelheceu. Esse conhecimento não é absolutamente necessário, mas faz bem. É o tipo de coisa que cresce sem medida e sem precisar de qualquer tipo insistente de impulsão. As minhas intenções são bem esclarecidas quanto aos assuntos do coração. Não me permito ser mais inocente, pois me recuso a repetir erros. Não posso me tornar a versão oposta das coisas quais acredito. É o dano que sofri que me reforça (e reforma), portanto, o sofrimento foi bendito. Digo e repito que, o abandono de coisas quais julgamos fundamentais é inevitável, pois é a maneira de nos transportamos sempre para a nossa própria essência. Há coisas, porém, que relutam e não aceitam o abandono. Felizmente não sou como essas coisas. Fecho os olhos e recebo o beijo do sono. É doce e me sinto aquecido e seguro enquanto durmo. Abro os olhos para notar que estou em uma terra metafórica e repleta de revelações que não encerram nada. Vejo a engrenagem que faz o mundo girar e choro por pensar que cogitei a achar que um dia tudo estivesse ao alcance de minhas mãos. Presunçoso fui. Alguns mistérios nunca terão solução. Pássaros embranquecidos batem suas asas pelo negrume cósmico da galáxia, mas não consigo compreender. Você apareceu e me explicou sobre empregos novos, coisas novas, cores novas e animais. Confessou que era uma raposa original, da cor certa, mas não entendi suas palavras. A vidente disse para eu tomar cuidado com raposas e aqui estou eu, enterrando o meu instinto arisco para me arriscar ao risco. Estou envelhecendo.  

        É você que vai me humilhar diante do povo? É aqui que tudo acaba para começar de novo? Recuperei a expectativa da vida na possibilidade de te encontrar. Não havia qualquer pessoa se posicionando entre nós. Sorri de como você parecia meiga, quase engolida por seu próprio cachecol. Pequenas coisas nunca se apequenam. Grandes coisas nem sempre murcham. Ninguém entende, mas você é capaz de vencer. Resplandece em nossos olhos o brilho de quem compartilha um tipo secreto de prazer. De repente você me surpreende, age fora do hábito, quando brada sobre o quanto você mesma estava bonita. Indagou ligeiramente em um sobressalto: Você me seguiria pela eternidade em uma noite infinita? Sorrio e balanço a cabeça assentindo, pois sinto o momento exato em que se preenche aquele meu estranho vazio. O âmago desconfiado me recorda que a confiança é um prato que se come frio... 

        Ainda assim é necessário correr riscos. Valorizar o próprio valor individual é fundamental para que saibamos educar os outros a nos tratarem como nós merecemos. Entendo as lições que ela me ensinou. De todo jeito ensinamento e aprendizado são formas de amor. Você realmente me envelheceu... 


As coisas mudam

     Deite a sua filosofia hermética sobre mim. Fale sobre as sete leis ou qualquer baboseira com ou sem sentido, mas, por favor, deite a sua verdade sobre a minha. Destrua-me, se for capaz. Vença-me. Mostre-me sua fibra, ofenda-me como só você sabe e quando terminar de me ofender, bem, você pode começar tudo de novo. Diga que eu mereci o que houve, mas silencie o seu merecimento sobre suas próprias atitudes. Não há caráter que mude. Você não acredita em troco, certo? Tudo que vai volta. O que está acima está abaixo. Suas oscilações são reais ou convenientes? Você é o que demonstra ou esconde desesperadamente o que sente? O seu frenesi é tão fraco assim? Perdeu o fôlego? Ora, venha, eu estive te esperando. Você pode fazer melhor do que isso. Surpreenda-me com chocantes revelações sobre novos mistérios. Prossiga com suas vituperações sobre mim enquanto me equipara aos ébrios. O que é que você se sente e não quer sentir? Quem é que te impele quando você mente, mas ainda me olha e sorri?

     Você é arrogante e acha que sabe como me sinto, quando cessou o meu sentir. Você aposta muito antes sobre minhas atitudes e me espera cair. Se eu não caio, você se frustra e levanta ofendido. Sempre foi bom de apostas, mas não percebeu que neste jogo sempre esteve perdido. Então bata de frente comigo e faça, enfim, do seu jeito. Descubra o que te move e aja direito. Não se acovarde. Eu te olho e te vejo. Isso não ficou para trás e não importa o que você faça, nós sabemos, nunca há algo de novo. Tudo recomeça e você move novas peças, mas segue firme no mesmo jogo. Não passa de um viciado com instintos selvagens que engana quem olha, mas nunca enxerga. É um apostador nato que só crê em fatos e sempre presume a aposta que compensa. Seu instinto vil e barato será o causador da sua própria sentença. Há ecos de tristeza por onde você passa. Agora você ergue seu grito agudo sem qualquer puder. Pisa no que há em seu caminho e não se comove com o choro e a dor. Tudo o que é alheio nunca lhe pertenceu e nunca lhe tocou. Até o menino que desejava ser o apanhador no campo de centeio entendia mais sobre o amor. 

     O que me conforta é saber que não somos todos iguais, embora sejamos todos feitos da mesma coisa. Soo estranho ou confuso? Dane-se. Imerso nos oceanos das minhas próprias capacidades, às vezes vou fundo e quase me afogo em busca de autoconhecimento. Eu estive procurando o rosto que eu tinha antes da criação do universo, mas ainda não o achei. Conheço-me cada dia mais e tenho me permitido sensibilizar com causas alheias. Socorro animais sem ter dinheiro para pagar tratamentos, mas dou meu jeito. É assim que minha vida vai e continua. É assim que tudo continua e vai. Você me olhou outro dia e viu a dureza férrea de meu olhar. 

     As coisas mudam, as coisas mudam, as coisas mudam... Eu lembro de que te ouvi cantarolar. E é verdade, porém, você não gosta de admitir. 

     Ontem mesmo eu não tinha a altura que tenho e não sonhava os sonhos que eu sonho. Dias atrás e eu era um sujeito passivo e enfadonho. Creem na minha calmaria, mas não cometem mais tanto o erro de me subestimar. Eu me tornei alguém feliz, mas é impossivelmente irreal ser constante na condição de felicidade. A tristeza vai e volta, mas sempre acaba batendo à minha porta. Escrevi um poema sobre isso, você se lembra? Preparei o café para passar a noite acompanhado, mas até a tristeza não chega para ficar. Bebo outra vez tudo sozinho. Estou em casa e tenho intimidade com meu teclado, mas me sinto um estranho no ninho. Quando acontecerão as próximas mudanças? 

     Não sei, não sei, não sei, mas as coisas mudam, mudam, mudam e nunca cansam de mudar.
     Agora você sofre, sofre, sofre... mas eventualmente essa dor vai te ensinar. 

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Primeira noite juntos

Estava na casa daquela mulher chamada Viviane
Embora nós soubéssemos que aquele
não era o seu verdadeiro nome
Não me detive na questão por muito tempo
Gostei do apelido que ela havia inventado
Nomes vinculam e ela apenas não queria ser vinculada
Chamei-a de Vi, pois deveria ser Vivi
para a maioria dos desconhecidos
Contou-me sobre como era conceder entrevistas
Falou um pouco sobre economia, aulas e concursos
Disse seu sabor favorito de chiclete e o que faria
acaso um furacão utópico a surpreendesse no deserto
Tomei notas mentais e observei a simetria de suas qualidades
Acham que sou raso, mas me tornei especialista em fragilidades
Vi foi até a geladeira e pegou uma garrafa
Sorriu e me ofereceu vinho e eu aceitei
Não tomei nota da precisão de seus defeitos
Hoje é a nossa primeira noite juntos e compartilhamos
a ânsia pelo prazer e o receio pela falta de intimidade
Se tudo ocorrer bem vou sussurrar que foi perfeito
Se tudo descambar vou me convencer de que não havia outro jeito
As possibilidades não se apressam, Vi é tudo o que me interessa agora
É a noite qual não importa o externo, internamente todos estamos nublados
A próxima piada pode fazer raiar o sol em um semblante desconfiado
A segunda taça foi o pretexto ideal para ter me aproximado
Uma frase errada e ela pode franzir o cenho e sair do meu alcance
Na primeira noite a sutileza dos detalhes pode deter a chance
Não leia pela minha narrativa isso como uma espécie de romance
Éramos apenas dois estranhos tentando cobrir o desconforto
Como uma música sem graça que se acelera até o conhecido refrão
Nosso interlúdio foi silencioso e não pisquei meus olhos
Veja, como vi que Vi vinha em minha direção
Ouça, como ouvi quando Vi falou sobre o seu coração
Veja como os olhos dela brilharam
rapidamente ao ouvir a minha última frase
Perceba que Vi é uma mulher de fases
Composta por transformações, tal como a lua
Seu estilo engloba todas as roupagens,
mas vi que Vi escolheu ficar nua
Quebrei a distância final que nos separava
O resto do mundo acontecia enquanto a gente se beijava
Depois mergulhamos fundo na busca pelo prazer
Até que tudo se resumisse em um mundo sem resumo
Se eu tentasse descrever, creio que Vi fosse o meu rumo
Ao final, enfim, o relógio voltou a funcionar
Nós saímos do mundo, mas o mundo não saiu do lugar
Falei sobre algumas excentricidades que me tornam interessante
e sobre besteiras que me tornam absolutamente banal
Ela sorriu como se ali existisse algo além do normal
Desconheço o que é que ela contemplou, mas acho que vi
Vi encontrando em meus olhos algo que tanto procurou
Só que ainda um mês depois eu ainda não saberia dizer o que
Enquanto isso eu pensava no trabalho que tinha ao amanhecer
Ela não se sentiu desconfortável e eu também não
Ela me ofereceu mais uma taça de vinho horas depois
Vi como Vi soou inocente desejando que eu ficasse
Segure-me rápido, pois sou fugaz, quase efêmero, percebe?
O vinho eu dispenso, pois já é hora do café
Levanto e visto minhas roupas esquisitas
Ela me avisa que a camiseta está do avesso, mas ok
O inverso geralmente é o meu lado certo
Limpo a garganta, pois tenho que ir embora
Ela quer fumar o seu cigarro, mas
hesita por de medo de me afastar
Eu nunca fumei um cigarro e me envergonho
deste segredo qual prefiro não contar
Dou um beijo suave em seus atraentes lábios
As manhãs não pedem agressividade
Pego o meu carro e vou embora dali
Pelo retrovisor vejo que Vi revive nossa primeira noite juntos
Imito-a por um instante me detendo na memória, mas
aumento a música, pois no momento prefiro mudar de assunto
É engraçado como as horas tardias diferem
Entretanto, geralmente não são esquecidas
Não há nada como uma noite inédita
Na qual emoções gélidas são outra vez aquecidas.