sábado, 29 de junho de 2019

Nenhuma inspiração

     Era uma tarde como outra qualquer, mas era uma tarde que nunca se repetiria. Eu poderia ter dito que as horas me pertenciam e você poderia ter dito a mesma coisa, mas nós nos contentamos com a felicidade, embora tenha nos faltado a compreensão de que um momento simples como aquele se tornaria especial. A tarde pertencia a ela mesma. O que acontece, na verdade, é que era especial enquanto vivíamos, mas não percebemos (tanto). Geralmente funciona assim com as melhores coisas. Se antes pudéssemos ter notado a fragilidade com que tudo se esgota, nós não teríamos desperdiçado as últimas horas nos esgotando e brigando por ciúmes simultâneos e igualmente idiotas. Tudo se desgasta rapidamente e se transforma. As conexões mais incríveis sempre serão impressionantes, ainda que fiquem esquecidas em algum lugar do tempo. Alguns amores morrem, outros renascem e outros nem chegam a ser amor, mas este é o ciclo. Há sofrimento e há felicidade, mas é bobagem tentar discorrer sobre tudo isso. Ainda assim cumpro a função do bobo e me derramo em minhas ideias e ideais. Alguém deve falar das coisas ignoradas, pequenas e praticamente alheias. A vida é fugaz e o tempo escorre pelos dedos como grãos de areia. Ouvimos as batidas fortes do coração e os olhos se enchem d'água em um dia comum, pois agimos fora da normalidade e paramos para escutar o que ninguém mais escuta. Ouço como se o que é abordado me importasse, pois sinceramente me importa. O suco de uva manchou o colchão e brigamos por esse grande nada, mas rimos até cair no chão quando o cão uivou e tentou invadir a janela durante a madrugada. Foi a única vez que ele uivou em todos os seus anos de vida e nós achamos que era só uma sexta-feira morta após um dia de trabalho. Eu ainda lembro o som da chuva no jardim dos fundos da casa. 

     A chuva não parava na minha alma. Eram manhãs terríveis na escola e ainda hoje são quase tão palpáveis como quando as vivi. Foram três meses longos nos quais não falei com sequer uma pessoa. Eu havia chegado ao colégio novo depois de uma vida inteira estudando em apenas um lugar. Recordo-me de como me sentia assustado, recolhia-me em mim sendo o meu próprio refúgio de segurança e contava os minutos até que chegasse em casa para que finalmente pudesse jogar meus jogos no computador e ouvir as minhas músicas. Nunca tive tendências suicidas, mas por vezes perdi o sentido de existir. Quando parecia que tudo faltava, eu  me lembrava de que sempre tive estradas para locais seguros, mas o coração se torna pesado quando as jornadas são solitárias e cri que minha interação na escola dependia de mim, porém, não conseguia ter iniciativa e nem fazer amizades. Era inacreditavelmente impossível dizer apenas oi. Assim as manhãs seguiram horrendas por um bom tempo. Eu era incapaz de distinguir os dias. O mundo parecia monocromático e as pombas todas eram iguais, exceto por uma que era obesa e manca. O livro dos meus dias descrevia apenas páginas em branco, pois eu todo era feito de silêncio e ecos. O meu jeito de viver era inequivocamente reto. Meditava sobre possibilidades e não conseguia mudar nada na única realidade que existia. Sofri com o isolamento até que meus heróis com rostos de vilões apareceram e salvaram a minha vida. Foi apenas um convite para o futebol no sexto tempo (que era opcional) qual aceitei e tudo mudou. Eles eram e são até hoje estranhos, mas foram os únicos que me ofereceram ajuda quando ninguém mais conseguia me enxergar. Percebo hoje a necessidade daquelas manhãs longas e solitárias. Posso hoje chamá-las como quiser, mas elas eram apenas estranhamente parecidas e infinitamente tristes. É na solidão que damos valor aos que nos acompanham. Estar solitário e depois me unir aos "réprobos" da escola foi um dos processos mais importantes na minha evolução. Se eu soubesse hoje a falta que sentiria daqueles amigos... 

     Permito agora zombar da minha própria sensibilidade e igualo as coisas de uma maneira irracional, mas o faço por conhecimento e não por tolice. Essencialmente tudo existe e se repete e podemos, ora, viver em imaginação quando este mundo nos traz mais felicidade do que a realidade. Infelizmente sou alguém incapaz de me esconder pelo sono, pois durmo três horas por noite, transformando-me em morto-vivo, embora seja mais como um vivo que se assemelha com um morto. O peso de existir deixa meus ombros doloridos. À memória registramos impressões do que experienciamos sem ter certeza do valor da experiência. A voz percorre mentes e países e ecoa por outros mundos e nunca sabemos realmente a influência que temos. Primeiro nos deparamos com a clássica subestimação das nossas capacidades. Depois vislumbramos a nossa própria inteligência e alcance. É perigoso. Quando a inteligência se refina e nos sentimos poderosos, passamos pelo processo inverso pelo qual superestimamos nossas capacidades e desconsideramos coisas e pessoas que antes considerávamos. Nesta etapa há o risco inerente de nos isolarmos em uma solidão que objetiva uma busca pela erudição. Refinados em nós mesmos, cruzamos a noite escura com os olhos alertas, balançamos nossas cabeças, mas evitamos o contato visual. Há uma formalidade notável, mas não há educação ou carinho. O riso é abafado pelo medo de ser ridículo agora que você se tornou alguém considerável. Quem é que se arrisca a bancar o tolo? Quem é que pode rir na hora errada? Quem é que se importa com esse tipo de pequeneza? 

     Veja, eles ainda são jovens. Estão sentados no carro e rindo e sabem que em dois ou três meses ou doze meses nada será como antes, mas vejam como são cúmplices na felicidade e na melancolia que serve como pano de fundo de uma memória inesquecível que eventualmente será esquecida. Veja como são invencíveis e como são amigos eternos e como nada pode lhes derrubar. Invencíveis! Perceba como a alegria contagia tanto que as crises de riso se iniciam e não param, não param, nunca param, nunca nesta noite, nunca pararão. Veja, como eles ainda são incríveis e como todo o restante soa como motivo para rir e sorrir. Parmesão, pipoca, café derrubado. Veja como ninguém vê como a gente. Vê como ninguém é como a gente. Vê como o amanhã não soa real e como as histórias estão repletas de loucuras mais loucas do que as nossas e às vezes não há o que fazer.  Veja que não há objetivo que não nós mesmos. Veja como todos mudam, mas sinta  (assim como eles sentem) que este dia é raro e não pode ser desperdiçado. Ame-os agora. Veja como um deles peculiarmente anota tudo e guarda em uma gaveta bem chaveada, pois é algo que ele pode não voltar a ter e precisa segurar firme. Talvez os outros dois façam isso de maneiras diferentes. No fim do dia a gente é o que aprende. No fim da vida o que fica é o que a gente demonstra e sente. 

     Tudo é frágil e delicado e para os que enxergam e simultaneamente veem, é possível extrair de tudo uma nova inspiração. As estrelas lá na noite de breu causam uma surpreendente comoção. A brevidade da vida se anuncia, mas é mais forte que vidro este coração.

     Então todos se separam e vão cuidar de suas próprias vidas. Seus caminhos seguem (separados). Problemas novos os perseguem (mas estão preparados). A vida é assim e assim vai sendo. A gente gasta o viver da vida enquanto pode até que um dia tudo (e todos) vão se esquecendo. E alguns, bem lá no fundo, admitem que está tudo bem. Numa noite de junho, juntos, aqueles amigos foram além. Diferentes, estranhos, compartilhando uma vibração.      Dois tipos distintos de raposa e um tipo único de dragão. 

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Eu ainda estou aqui

     Quis falar de amor durante a madrugada, mas elas não foram feitas para isso. Aquece-se o meu peito pelos desejos não realizados. Queima-me os devaneios pelos outros inventados. Sinto-me tão especial e inequivocamente quente. Vou descrever um sonho real das minhas emoções, mas talvez vocês não estejam prontos para ouvir. Talvez eu ainda não possa falar. Prometo ser sincero, mas e daí? Sensações e esmero, apenas outros motivos para sorrir. A minha melatonina acabou e nem sei se funcionava, porém, era importante no ritual do sono. Consistia numa espécie de preparação para o abandono (próprio). Agora sou obrigado a encarar as horas sombrias. Dane-se, pois sou capaz de ser tão soturno quanto o relógio. Sou tão imprevisível que acabo... Óbvio. Quando nem comecei. Atraso pontualmente e sem equívoco. Adio tudo o que posso, afinal, é para isso que serve o amanhã. Às vezes gosto de sentir que só eu posso inventar mundos. Impulso egoísta de quem se conhece. Vontade oportunista que seleciona aquilo de que se esquece. Você escuta as vozes e sabe que são muitas! Apenas chilreiam ininterruptamente. Os outros falam muito e o tempo todo, mas o tempo todo nesta noite infinita estou sozinho. Aposto que a noite lá fora é bonita, mas os meus dedos descrevem aqui alguma parte do meu caminho, neste acesso de fúria sem romantismo com traços fúnebres de poesia. 



     O médico diz que sou o bebê mais pesado do mês de março naquele hospital em 1992. Sorri e diz que os arianos são impulsivos, embora tenha cursado medicina e zombe da astrologia. A velha (em 2019) me vende um amuleto de boa sorte e me dá dois de presente, pois diz que eu nasci para o sucesso. Ela promete com uma convicção sobrenatural que logo eu vou chegar aos meus objetivos e quando isso acontecer, claro, eu comprarei mais amuletos dela. Espero que o sucesso venha rápido, pois ela não parece que vai aguentar mais muitos anos. Reflexões em mim nas canções desta vida fugaz. Fui anteontem impressionante. Fui no dia seguinte o desânimo personificado. Agi sem agir como se não me soubesse errado e ri. Aviões cruzam os céus na madrugada; pessoas vão para a Europa e dormem na aeronave. Outras pessoas aproveitam suas últimas horas de sono, pois logo vão pegar o ônibus para mais uma batalha. Não se intimidam ainda que ganhem pouco, acostumaram-se com o fio da navalha (no pescoço). 2h36 é a hora perfeita para tomar mais um litro de café. "Não tenho escolha", respondo quando alguém me acusa de negligência de minhas próprias responsabilidades. Você cale essa boca, pois eu não me esqueço do que importa. Cumpro-as e me assumo. Sou tão imprevisível que altero repentinamente o meu rumo. Sou tão vampiro quanto não gostaria de ser. Nunca brilhei na luz solar. Reconhecem-me nesta cidade e adoro. Reconhecem-me nesta cidade e odeio. Reconheço que falhei na hora de acertar e que cometi o acerto perfeito no errar. 



     Não sabendo o que fazer, eu resolvi escrever para me distrair. Alguns fazem amor e outros fazem sexo. Alguns se escondem para evitar a dor enquanto outros se embriagam até desaparecer o nexo. Eu escrevo. A madrugada segue e se agiganta. Os fantasmas te atormentam e nada adianta. Pego o carro e saio para comer um sanduíche. Os preços são assustadores, mas gastei gasolina e mereço. Escolho a melhor promoção, sinto a minha própria comoção. Agora evito gastar mais dinheiro. Pego a chave do meu carro e me recordo de que o vizinho ainda não pagou o conserto do risco que ele fez. Isso não é importante agora, eu penso, mas ainda me sinto ofendido. Quem é que admite a culpa, mas não conserta o dano cometido? 





     Dirijo sozinho até uma árvore perto do cemitério. Penso nos que já se foram, mas eu ainda estou aqui. Grito bem alto: "EU AINDA ESTOU AQUI". As almas penadas me compreendem e por isso vou embora. Meus dedos pegam fogo e preciso escrever uma carta endereçada à minha própria casa. Amanhã às 17h15 eu a lerei e talvez note que me dei bons conselhos. "Evite quebrar espelhos, rapaz. Apegue-se às superstições se for esperto, cuidado para não transformar o seu jardim em deserto, quanto ao resto, o resto tanto faz". Escrevo e tomo o cuidado de não me mover, pois o cachorro gosta de dormir escorado nas rodas da cadeira do computador. Talvez este seja o único tipo de amor. Suponho que o combate aos espíritos ruins machuque o estômago, pois a gata preta come a planta do vaso. A vida se esgota em uma conversa entre três amigos no carro. O dom da amizade é um dom raro. Bebo mais café e meus olhos cansados resistem. Grito outra vez: "EU AINDA ESTOU AQUI". Um vizinho me xinga ou talvez seja um mendigo. Quem é que sabe quem é o que nestes dias? Ele deve estar com o rabo quente para se incomodar como meu grito. Não me importo com o incômodo alheio. Só a beleza e a destruição interessam. A raiva me aquece e continuo escrevendo. O sentido se perde no sentir, mas sei que o que importa é continuar escrevendo. Sou o eco do fim do universo e também sou o nada. Sou o tiquetaquear do relógio antes do nascer do dia. Sou o esgar de ódio e ainda a face formosa da poesia. Sou o sono contínuo que nunca descansa e ainda o amaldiçoado homem lúgubre de fala mansa... Aquele pronto a sacrificar mais por quem por mim nunca se sacrificaria. Conheço todos os estágios e mesmo assim desconheço porque a vida é assim. Sou o cobrador dos pedágios e dono de algumas secretas estradas. Sou único e só mais um, perdendo-me na individualidade comum, imperador secreto da madrugada. O sol aparece radiante anunciando um novo dia. É o fim do meu reinado. Volto a ser feito de algo mais resistente que o vidro, mas puramente tão frágil. Perco-me do meu instinto sempre ágil. Não tenho do que reclamar, mas reclamo. Nem tenho o que amar, mas amo. O clarão me irrita e sou tratado com desprezo e desdém. Eu só queria que chovesse agora, mas algo lá fora me diz que vai ficar tudo bem.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Horas tardias


E lá vem você determinada 
Posso ouvir bem o barulho dos seus passos
Agora eu espero que se aproxime de mim 
Vejo que é cuidadosa, mas segue na minha direção
Acho que percebeu que sou bicho fugaz de coração
Antes eu só contava os dias para a chegada do inverno
Confesso que contei os minutos até que você aparecesse
Revelo também que sempre fui 
muito humano para agir com exatidão 
E a sina de quem é exato é ser atacado 
por quem se faz somente em confusão 
Você sabe bem, não sabe?
Nunca arredondei as horas e os minutos
22h27, pois não tenho como enganar o tempo
Não me contento, porém, você pode notar? 
Em uma noite dessas você furou a ordem da estação
Era outono lá fora, mas você dentro e fora era verão
A luminosidade do seu olhar quebrou meu ímpeto de solidão
Eu que voava alto no céu aterrissei no chão
Precisava ver de perto aquele brilho
E lá vem você determinada
Posso ouvir bem o barulho da sua gargalhada
Posso admirar uma mulher que sabe 
batalhar pelo que merece
Quase todo mundo se esquece, mas não você (nunca)
Bom, eu queria realmente escrever nesta noite (para você)
Você me salvou, mas o fez sem intenção 
Queria te conceder um espaço, mas 
Eu que sou todo cansaço
Não sei como proceder sem parecer 
Vão 
E lá vem você determinada outra vez
Duvido profundamente de minha lucidez
Será que você poderia voltar apenas 
para se aproximar novamente?
O que será que fiz para conquistar 
alguém assim de repente?
Nem sei o que sinto, mas talvez tenha ciúmes 
Perto de você eu não minto e nem confundo perfumes 
Quando foi que me tornei bom em algo como conversar?
Admito com infelicidade que nada me anima, exceto você
Prometi em nome da rima que vou ser diferente e vou vencer
Apelo furioso da miséria de quem só age errado
Surto doloroso e separação da matéria pela qual sou formado
Quando foi que meus olhos ficaram opacos?
Quando foi que deixei de ser assim tão fraco?
Ainda assim meus esforços parecem todos tão tortos
Sou feito de respiração fraca e acúmulo de sonhos mortos
Escureço antes do cair da noite 
Lumio antes da primeira luz solar 
Se não tenho lugar no mundo 
Todo o mundo é o meu lugar
Você chega hoje ou sentir o seu cheiro é sinal da loucura que atormenta a possibilidade do esquecimento definitivo? 
A lembrança da doçura realmente transforma um homem lépido em furtivo? 
E lá veio você determinada 
Poderia gastar três vidas, mas não saberia explicar
Tudo o que posso dizer é que espero sorrindo
Quando você se inclina para me beijar
Sozinho me vejo despertar
Quando preferia estar dormindo
Foi um sonho bonito e triste, pois a mulher nem existe 
Mas sigo firme no propósito de saber ter tentado 
Só me sinto direito quando faço tudo errado 
Só direito me deixo doer quando os meus defeitos
são extraídos do peito e escancarados 
Interlúdio em mim 
Quais são as próximas canções? 
Ainda é começo da madrugada quando me deito (outra vez)
Com os olhos cheios de água salgada e
a boca com a memória do sabor
Já é tarde para sair de casa, mas 
o negrume da noite anuncia que ainda 
é muito cedo para o amor.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Por mim

     Eu não faço confusão, embora, de quando em quando eu a personifique. Tenho a capacidade de extrair a lucidez pungente das coisas e às vezes deixo de sentir até que doa. A minha sensibilidade às vezes abarca outros mundos e às vezes se encerra com a porta fechada do meu quarto. Tudo me interessa. Nada me interessa. Grandes esforços e em seguida chega a preguiça vestida de placidez. Acredite ou não, ela engana muita gente, mas não quem se fez com a minha rigidez. Aprendi a ignorar a roupagem, pois quase sempre me visto com as roupas erradas. Tranco-me para não permitir que o meu estado lúgubre transborde para fora dos limites e quando saio sou todo dragão: chamas, barulhos e sorrisos. Salto da cama e mergulho de cabeça e coração em tudo o que preciso. Solto fogo e vejo o mundo queimar. Encho-o de brilho e caos. Você sente? Essa beleza destrutiva que se alimenta de migalhas e faz o estômago saciado. Você vê? Aquelas destrutivas sutilezas que com pequenas ausências morrem de inanição. 

     Ao longe se aproximam. Não sinta pena. São apenas almas errantes consternadas pelo cansaço estendido e a sensação de estarem (ou serem) alheias. Eternidades que se despedaçam agora. Ímpeto esquecido de melhores horas. É o impulso de quem não odeia, mas preferia odiar para sentir algo queimar nas noites em que faz frio. O nada é o inverno no meio de uma noite de verão, túnel de acesso fácil ao absoluto vazio. Em um dia você se vê juntando os cacos até que subitamente pisa em tudo o que você juntou e sopre os farelos em um rio para que nunca mais voltem até você. Não voltarão. Tudo muda. Talvez a vida só valha a pena se as escolhas forem suas e o controle, mesmo descontrolado, ainda seja seu. Eu? Eu não me interesso em brigar pela razão, pois não há razão que me descreva e nem descrição que me racionalize. Sou muito exato para ser humano, mas o que mais eu poderia ser? Uma estranha dorme no meu ombro numa viagem de ônibus e sorrio. Sou eu e simultaneamente sou outro e esse tanto que é tão pouco me causa um arrepio. O ombro vai ficar dolorido, mas a dor vem e vai e a vida continua. Miro o alvo que ninguém vê e todos riem da minha pontaria como se os meus objetivos fossem devaneios distantes de um menino. Respiro fundo e desço na próxima parada. É hora de buscar o meu destino.

E me perguntaram um dia desses...
Sobre os limites em que dói a dor,
Sobre as medidas em que se calcula o amor,
Sobre os motivos e razões para viver...
Não importam os lugares para onde você for,
Você define o seu próprio valor, pois continue em frente,
Primeiramente e sempre por você.

     Há quem vá chamar isso de egoísmo, mas estão errados. É sobrevivência. É amor próprio. Ame sua coragem e sorria os seus sorrisos. Seja você e o restante que se ajuste. Cedo ou tarde o mundo inteiro vai se acostumar com o seu jeito e o mais importante é que você viva a sua vida por você mesmo. Eu? Eu vivo por mim. 

terça-feira, 4 de junho de 2019

Cristopher Green


     Cristopher Green era o tipo de homem menos verde que havia. Em todos os aspectos que se pudesse descrevê-lo, ele era cinza. Usava sempre um terno preto com uma camisa social branca por baixo, remangada, embora ninguém jamais soubesse. É que odiava a sensação dos fechos e do botão em contato com a pele. A calça e os sapatos eram pretos, pois preferia a noite. Se fosse alguém diurno, Cristopher não hesitaria em usar calças cáqui e sapatos brancos. As únicas pessoas que ele tinha na vida estavam habituadas a chamá-lo de Cris e os desconhecidos o chamavam de Sr. Green, embora não existisse nada mais irônico. Cris costumava evitar a luz do sol e jamais passava protetor solar na sua pele alva e sardenta. Fazia a barba sempre com quatro dias de atraso de um jeito que era comum que estivesse com um aspecto de abandono. Seus cabelos escuros e compridos desciam até a altura dos ombros e eram rebeldes, despontando para os lados, mesmo que o sujeito não os penteasse por opção. Cris odiava o pragmatismo da maioria das pessoas, ainda que isso nunca o tenha tornado agressivo. Sentia-se avulso ao mundo. Isolava-se sempre que conseguia, mas não conseguia se afastar sempre. As coisas eram diferentes no mundo de Cris. Suponha que na sua cidade o pôr do sol acontecesse às 17h45, Cris já estava escuro desde às 16h00. Se o nascer do dia ocorresse às 6h00 com o primeiro canto matinal de um galo, Cris contrariava a lei natural. Despertava em três horários diferentes: 04h33, 11h36 e 15h39. O restante das horas era vago e o homem acinzentava tudo que pudesse, como quem varre a poeira de um cômodo a outro sem realmente se livrar dela. Creio que você possa imaginar a profissão de Cristopher Green. Obviamente era advogado, até pela razão da ironia que haveria em seu nome se fosse engenheiro ou jardineiro. Claro que ele não era do tipo de cidadão que presava pelas causas ambientais, mas sempre era alvo de piadas sem nenhuma graça em relação ao sobrenome. O que você precisa saber sobre Cris é o que o motivou a fazer aquela estranha viagem de quarenta e dois dias para a Islândia: silêncio. O advogado só falava quando precisava, ainda que escutasse dezenas de pessoas na maior parte dos seus dias, estivesse literalmente acordado ou não. Cristopher sabia que a maioria das pessoas era tragicamente comum e eram vítimas ingênuas que não percebiam o quanto a sociedade as forçava a compartilhar hábitos, mas admitia que a lucidez talvez fosse um veneno sem antídoto. Uma vez que você algo, você nunca mais pode deixar de ver. Cris era ateu, mas sempre murmurava um deus me livre quando pensava em dividir suas excentricidades. Não havia pior pesadelo. Acreditava que a vida só valia a pena se as escolhas fossem realmente suas e o controle, mesmo descontrolado, centrasse em sua própria pessoa. Não se interessava em brigar pela razão, pois não havia razão que o descrevesse e nem descrição que o racionalizasse. Era muito exato para ser humano e seus instintos o impeliam a calcular hipóteses antes de agir, exceto no que concernia à súbita ida até a Islândia.

        - O que há na Islândia, Cris?
        - Há a Islândia, Tom.
       - Isso tudo é por que você não come ninguém aqui, Cris? Vai cruzar o oceano por que não quer gastar trocados com prostitutas? Você é muito verde mesmo. Sabe que na Islândia é mais difícil, não é? É capaz de você foder uma pedra ou uma cachoeira ou um deus esquecido.
        - Claro, Tom. Verde como o meu nome. Sexo com deuses. É isso.
      - Vou te dizer, Cris. Você pode não ter o jeito com as mulheres como eu tenho, sabe? - Disse e cheirou o próprio sovaco em um gesto que fez Cristopher se sentir enojado. - Use a tática do cabelereiro, Cris. Na adolescência vi muitos amigos que conseguiam fazer funcionar.
        - Que conversa é essa, Tom?
       - Sabia que ia te interessar, Cris. É simples. Você vira o melhor amigo da princesa e ela vai te usar como confessionário. Você saberá todos os segredos. Parece chato, não? Mas tenha confiança, Cris e no momento em que ela ficar vulnerável... BOOM! Você mostra o seu verdadeiramente verde para ela.
        - Isso é nojento, Tom.
      - Isso é estratégia, Cris. E você bem que poderia fazer bom uso dela para se dar bem com as mulheres ou vai ser um virgem eterno, ainda que tenha transado com duas ou três. Estou dizendo, cara. De dez manés que usam essa tática, nove se dão bem. Às vezes a menina percebe a coisa endurecendo, Cris, e aí pula fora, mas nessa situação basta que você não seja tão verde.
        - Do que está falando, Tom? Isso não é sobre mulheres.
        - Então você é gay, cara?
        - Você é um idiota.
        - Um idiota que entende das gatinhas, Cris. Quer morrer virgem, cara?
        - Não sou virgem, Tom.
       - Pode não ser virgem porque perdeu a virgindade, Cris, mas na sua alma e na essência age como o maior dos cabaços.

     Cristopher sabia que aquele tipo de conversa ridícula era o tipo favorito de conversa de seu amigo Thomas Nutshell. A sorte de Cris era que a conversa nunca se prolongava, pois Tom era de idas e vindas costumeiras e estava quase sempre embriagado ou drogado. Ainda assim, Cris sabia que Tom possuía a rara capacidade de ser honesto, independentemente da situação. Era o tipo de cara que levantaria o punho contra o próprio pai, se o pegasse cometendo alguma injustiça e que afrontaria até os melhores amigos em caso de necessidade. Podia ter suas peculiaridades e indubitavelmente era um idiota, mas prezava pelo que era certo acima de tudo. Certa feita espancou um tal de Vicente que era da mesma roda de amigos que ele, pois o rapaz diz que usou da tática de se aproveitar de menina bêbada.

     - É o que eu digo, Cris. Jogue a porra do jogo, mas não descumpra as regras. Aquele filho de uma puta... Arranquei alguns dentes do babaca e não me arrependo. Soube que a garota já estava desmaiada antes? Meu único motivo de alívio é que a menina abusada prestou queixa. Muitas delas sofrem com esses caras e não prestam, Cris. É um mundo fodido. 

     Thomas faria falta na Islândia. A maioria das pessoas existia placidamente de uma forma tão mecânica que Cris zombava da possibilidade de sentir a ausência delas. Sentiria falta de seus três gatos e de sua cadela, mas os humanos, ainda que semelhantes a ele pela espécie, pareciam-lhe completamente alheios pelas vicissitudes. Cristopher era cinza e sólido, pouco dado às mudanças, enquanto o restante mudava as cores e os cortes dos cabelos, as preferências sexuais, as residências, gostos, maneiras e maneirismos. Trocavam os restaurantes de sempre e os faziam ser os restaurantes do de quando em quando até que, enfim, por fim, fossem os restaurantes de nunca mais. Não havia apego ou constrangimento em alterar tudo subitamente, mesmo que não houvesse motivos e as refeições ainda continuassem quentes e perfeitas. Cristopher pensava que talvez na Islândia tudo fosse diferente. Ainda que os deuses quais não acreditava lá fossem mais antigos e menos esquecidos, ainda que a aridez desértica e gelada fizesse com que poucos habitassem o país, ainda que os céticos oferecessem a chance de degelo à própria insensibilidade. Cris se indagou sobre como seria ou não vasta a sua dieta. Provavelmente os islandeses bebiam sopa no almoço e na janta. Pelo menos a cerveja nunca estaria quente. Cris imaginou se alguém sentiria sua falta e concluiu que talvez e apenas talvez, Laura e Tom. Laura era a única mulher na vida de Cris que se fazia presente, sem ter a obrigação. Não era agiota ou parente e tampouco colega de escola de Cris. Ela havia entrado casualmente na vida do rapaz em uma ocasião, quando ele estava sentado sozinho em uma praça. Ela se sentou ao seu lado comendo um bolo de três cores: branco, marrom e cinza. Ofereceu-lhe um pedaço e disse.

     - Hoje é o meu aniversário.
     - Então você é do dia 10? Minha mãe é do dia 15 de julho.
     - Sim. Legal.
     - Parabéns.
     - Obrigada.

     Os dois então comeram o bolo de cappuccino e compartilharam um silêncio estendido. O cabelo dela era quase prateado e Cris pensou que era semelhante ao da mulher do seriado, mas não sabia explicar qual era o seriado e por isso nunca chegou a perguntar para Laura se havia se inspirado na atriz. Cris era quieto e quase nunca falava. Ela, por outro lado, dividia-se em dois estados completamente opostos: o silêncio velado e a ininterrupta comunicação. Na terceira vez que se encontraram, Cris teve a impressão de ter respondido a mais de quinze perguntas e escutado pelo menos dez histórias. Considerava-se sortudo por poder dividir o tempo com ela, mas tinha uma intuição de que aquilo tudo um dia se perderia. Admitia que intuições eram como poderes abstratos e não fazia sentido crer naquele tipo de coisa, mas será que na Islândia encontraria respostas? Cris nunca havia usado a tática do cabeleireiro. Seria possível que Laura o fizesse cabeleireiro por ter segundas intenções? Impossível! Possível? Por que estava dando corda para algo leviano que Tom havia dito? E do que isso importava para alguém mecânico como ele, afinal? Cristopher Green respirou fundo e sorriu desanimado. Para todas as coisas na vida, ele parecia ser insuficiente. Era como se tivesse nascido para fracassar. Às vezes, porém, tinha o rosto perfeito e estranhamente adequado para que alguém o socasse em cheio.

     - Sabe de uma coisa, Cris? Eu gosto de você.
     - Acho que também gosto de você, Laura.
     - Acha? - Disse e fez uma careta dramática, mas pensando naquela feição, meses depois, Cristopher se perguntou se ela estava mesmo preocupada com a resposta.
     - Acho. Copo meio cheio, copo meio vazio. Faz diferença? Você tem água ainda. Pode beber se estiver com sede. - Laura gargalhou alto e de maneira escandalosa. Cris gostava dos pequenos surtos dela.
     - Diga-me, Cris. Você é a minha água para quando eu estiver sedenta? - Cristopher sabia que a pergunta era uma provocação, mas deu de ombros.
     - Sou. - Ela o observou com seus olhos grandes como a lua e escuros como o céu noturno. Ainda que pareça idiota, Cris admitiu que eles dançavam em pequenas doses de brilho, como estrelas despregadas do firmamento. Sentiu vontade de dizer isso a ela, mas sabia que seu romantismo soaria completamente bobo e constrangedor. Preferiu ficar calado. O silêncio era um bom amigo. 
     - Você, Cristopher Green, é diferente, mas não é menos idiota que qualquer outro homem.

     Talvez Laura sentisse sua falta. Talvez Tom sentisse sua falta. Talvez não houvesse táticas ou respostas, mas apenas mais perguntas na Islândia. Uma vez viu o mapa de um jogo baseado no país e pensou que seria legal um dia visitar aquela imensidão. Se os dinossauros ainda vivessem e suportassem o frio, aquele era o cenário ideal para que vivessem. Não fazia sentido que um homem tomasse, por vontade própria, um avião para a Islândia. Cris pensou em coisas que não costumava pensar. Lembrou-se de todos os seus horripilantes desenhos de quando era criança, mas a sensação de estar vivo o transbordava naqueles palitos feios e descoordenados expostos no papel. Era à época bom nos videogames e os amigos apanhavam para ele no Super Smash Bros 64, ainda que ele jogasse com Jigglypuff ou Yoshi. Era bom saber que era bom em algo, mas queria sentir que viver garantisse o sentido de sentir e bem, na maioria das vezes, a vida era vaga e faltava o sentir do sentido. Não sentiu vontade de chorar, mas sentiu o aroma do café, completamente inapropriado para a fila de embarque que se fazia no túnel para entrar no avião. O cheiro foi um sinal de alerta de que poderia estar enlouquecendo.

     - Talvez eu ame algumas coisas e não deva. Talvez essa viagem seja uma inoportunidade oportuna. Talvez eu me conheça mais e valha a pena ou veja que gastei um dinheiro difícil de ganhar para me conhecer e entender que eu mesmo não valho o que penso, se é que penso valer mesmo alguma coisa. Só espero não morrer congelado enquanto estiver cagando. Quero uma morte bem morrida, daquelas que o apresentador do jornal possa falar sem precisar forçar a seriedade e que a mãe possa chorar ao dar a notícia.

     Cristopher Green divagava. Sentou-se na sua poltrona e em seguida uma senhora gorda sentou ao seu lado. Alguns minutos depois ela havia adormecido e escorava no ombro de Cristopher. Ele imaginou que a maioria das pessoas se irritaria com a invasão de privacidade e em um dia comum até ele talvez se irritasse, mas não era um dia comum. Seus ombros ficariam doloridos, mas e daí? A dor vem e vai e por isso não importava tanto. Quase ninguém sentiria sua falta e naquele fim de tarde atípico, ele poderia ser exceção ao que todos costumam tomar por comportamento padrão.

     - Que você durma bem, mulher gorda. Não sei o que há na Islândia, mas eu vou para lá e por coincidência você também. Espero que um de nós possa achar o que procura.

        Cristopher não era de dormir em aeronaves, mas apagou instantes depois enquanto imaginava se os dragões islandeses eram mais reais que os deuses inventados pelos humanos. De alguma forma não metafórica sentia a leveza de existir, como se o fato de viajar o desobrigasse das obrigações e o removesse de suas responsabilidades. Dormiu confortavelmente e sonhou que seu pai, sua professora de matemática na escola, Tom Cruise, Tom Nutshell e Laura estavam reunidos contanto histórias saudosistas a respeito de Cristopher Green, que era ele e ao mesmo tempo não era. No sonho seu nome soava como se ele tivesse sido especial em vida. Acordou repentinamente quando, enfim, o avião pousou no Aeroporto Internacional de Keflavík. Sorriu pela primeira vez em algum tempo com a expectativa de descobrir o que havia na Islândia.