segunda-feira, 22 de abril de 2019

Quando briguei com Deus


     Certa feita briguei com Deus. Creio que todo o meu embasamento para a argumentação que se sucedeu tenha sido repleto de falhas. Eu que costumava ser tão pontual hoje perdi a capacidade de acompanhar o tiquetaquear do relógio. Eu que nunca fui imprevisível e domei sempre minhas partes pesadas, nem sempre consigo voltar ao tranquilo, pacífico e óbvio. Não me compreendendo, eu pedi para que Deus me esclarecesse sobre os meus caminhos e responsabilidades. Implorei para que, ainda que tivesse que partir sozinho, que não me poupasse, preenchesse-me da verdade mais dolorida. Antes que o tempo passasse, as flores murchassem, o mundo mudasse. Antes que toda a afeição fosse esquecida. Gritei, mas meus berros só me deixaram rouco. Sussurrei, porém, a única réplica foi um silêncio de deixar louco. Sem saber o que fazer, eu tentei qualquer coisa para que possuísse apenas um minuto a mais. De tanto se vai até tão pouco e o afago de repente se desfaz. Agora arco com as consequências de todos os impulsos meus, mas quando tudo vinha desmoronando, quando a inveja alheia foi se espalhando, onde é que estava Deus?

     Estremeci diante da minha incapacidade de tornar outra vez tudo certo. Até que sou muito estúpido para alguém considerado esperto. Li livros jamais escritos, vivi histórias ainda nem inventadas. Desapareci no campo da realidade e renasci ficção. Esbravejei contra esse Deus, assumindo que perdi a razão, mas por que justo agora teria de me tornar vilão? Quis jogar fora todos os meus detalhes que me tornam singular, mas os segurei firme. Talvez o Deus sumido soubesse narrar a minha história de um jeito sublime. Ainda assim fui acertado por meu próprio golpe. Não tentei bater, mas o meu movimento ricocheteou e eu acabei caído. Se eu ainda não tivesse deixado ninguém ferido, mas as coisas são como são, embora não saiba se exatamente como deveriam ser. A minha insistente solidão afasta de mim meu melhor tipo de prazer. Gostaria de tomar água e fazer exercícios. Gostaria que alguém calmamente entendesse meus suplícios. Gostaria de poder estragar a janta por ter errado no sal. Gostaria que a nossa salvação fosse suco de uva e pão integral. Adoro também as rotinas compartilhadas. Amo rir nas noites quase infindas com minhas novas e ancestrais amizades, porém, noutra noite de lua linda quis te mostrar o meu local secreto na cidade. Falhei em tudo. Estremeci diante da injustiça que me impuseram, mas cônscio de mim, admiti que fui ainda mais injusto. Onde estava o divino quando o ódio era destilado? Como me proteger de um comportamento viperino se só posteriormente me percebi atacado? Não sou assim tão pequeno. Poderia, mas não vou mostrar de onde veio o veneno. Renovo-me em mim e assumo a culpa de tudo, mas onde estava Deus para me proteger de mim quando tentei e não devia? Onde estava Deus para me proteger de mim quando machuquei a quem não merecia? Criei furacões em sopros, príncipe das tempestades. Desmedi a minha própria medida quando me fugiu do controle a realidade. Sinto-me doente. O suor escorre, a temperatura sobe, mas tudo bem. Meu melhor estado é o febril. Sei que assim sinto melhor o mundo que nunca me sentiu. Uma mulher aparece de madrugada e estou pronto para amá-la. Foi invenção da minha cabeça, eu sei, mas isso nem interferiu. Beirando à insanidade, nos limítrofes finais da realidade, outra vez a minha alma sorriu. Pois assim desconsidere minhas declarações apaixonadas, não por serem falsas, mas sim exageradas. Tornei-me especialista em amor fantasma. Tenho uma tendência ao eterno e ao drama. Rio dos falsos espertos, metralhadoras de opiniões que só atingem espectros, a frase matreira em busca da fama. Continuar em frente é sempre pungente e a vida frequentemente dura me deu outra surra. Às vezes dramatizo quando me falta a compreensão. Por que diabos a vida é assim? Onde estava Deus quando precisei que ele me salvasse de mim?

     Arrumo-me com pressa, na minha maior rapidez e desta vez estou apenas meia hora atrasado. Dominado pela minha própria lucidez, vejo-me no primeiro espelho ao que percebo que me vesti errado. Estou do avesso, mas não faz mal. A roupa hoje é um detalhe frugal. Saio pelas ruas andando com a lista do mercado na mão. Esqueço a urgência. Posso almoçar mais tarde. Se eu fosse pelo caminho mais rápido, eu teria voltado para casa em dez minutos. Como alonguei o que poderia ser breve, hábito do prolixo, voltei quase uma hora depois, mas não estive estendendo o que não deveria. Parei para ver o mundo e li em cada canto de tudo uma nova poesia. Contemplei as flores selvagens amarelas, vermelhas e lilases. Ao longe vi uma igreja cheia e ouvi o canto de tantas moças e rapazes. Levei os pimentões mais feios, pois eram os únicos que haviam no mercado. Esqueci-me das batatas. Cumprimentei os pássaros que cantavam nos fios de eletricidade, sentei-me na beirada da calçada e apenas observei. Inverti as perspectivas. Agora eu era alguém da igreja observando o rapaz de comportamento inabitual do lado de fora. Era o pássaro olhando para o humano desconfiado que para na rua e ali se demora. Era a flor consciente da própria beleza e do próprio perigo, apavorada com a possibilidade de ser brutalmente arrancada e em seguida esquecida. Era o pimentão olhando o humano e pensando se a alma dele também não estava apodrecida. Acima das nuvens passa um avião e logo, vejo-o, depois, sou a máquina pesada e voadora observando o mundo de cima. Eu ri, pois exatamente assim gostava de ver o mundo Exupéry. Depois, centro-me no cerne das coisas e observo rapidamente o mundo por dentro, ao estilo de Vinicius de Moraes. Como veem o mundo os  demais? De todos não sei, mas convivi e sei como enxergam os caminhoneiros. Para eles é como uma estrada em linha reta, assim como viu em linha reta os humanos, Fernando, o Pessoa. Cogito em seguida destruir aquilo que mais amo, como disse Oscar Wilde que toda pessoa faz. Este mestre deve ter cometido um engano, pois só agora vejo do quanto sou capaz. Posso ser o mar em tormenta, mas também manso como a garoa. Respiro a vida que há em mim. Ouço meus batimentos como se eles valessem a pena e me lembro da última pessoa que ousou escutá-los. Sorrio tranquilo. Esse Deus nunca me mostra as coisas como quero. Suponho que seja minha responsabilidade prestar atenção no que vem vindo. Dias atrás eu estava brigando com Deus, pois tudo o que existe e o que há além disso estava ruindo. Feliz, enfim, chego em casa e conto para o meu cão que estive me divertindo. Ele abana o rabo sorrindo. Para quem possui um bom par de olhos, sabe a maneira correta de observar, de cada dia se extrai um aspecto lindo.

     A briga às vezes chega quando a gente precisa. Faz bem se colocar em outra perspectiva. “Todo mundo oscila” vi a frase escrita em diversos cartazes. Foi ruim brigar com Deus, mas já fizemos as pazes.

sábado, 20 de abril de 2019

Antes que a tarde amanheça...

     Tendo analisado minuciosamente meus próprios sentimentos e pensamentos, vejo-me fora de mim como alguém que de tanto se perder acabou encontrado. Conheço minhas vicissitudes, mas não é como se o conhecimento produzisse sequer um tipo de garantia. Oscilo sozinho e tenho permitido que outros me machuquem, mas sigo cônscio de que sou eu que ofereço-lhes a oportunidade. Sobre mim? Não, não creio sempre em mim. A clareza que tenho em minhas próprias frases, às vezes, é justamente o que me impede de dizê-las. Conheço minhas próprias insanidades ao ponto de distraí-las ou entretê-las. Recolho-me em uma espécie de casulo em um quarto escuro esperando que a vida não seja tão dolorosa assim. Ergo novos muros esperando que algum dia alguém os atravesse em busca de mim. Ninguém me procura. A vida frequentemente é dura. Faço-me de frágil, mas meus punhos cerrados estão sempre prontos para testar minha sorte. Há dias que enfrentaria um dragão alado, mas em outros uma nuvem escura me faz temer a morte. Eu só rezo bem baixinho para que a força invisível não me esqueça. Só peço para que o grãozinho plantado, sempre tão bem cuidado, enfim, floresça. Antes que a noite vire madrugada.

     Tendo analisado todas as hipóteses, eu me esqueci apenas da hipótese de que toda análise é inútil e de que só existe o que há e mera hipótese é apenas vislumbre de ideia daquilo que nunca será. Sei o que vejo e não há distração que me faça mudar. Sei o que almejo e não há atalho qual eu deva pegar. Ainda que eu possa. Às vezes é simplesmente tentador, mas são os caminhos difíceis que ensinam mais e sempre fui ávido em aprender. Quando abro os olhos para dentro, vejo-me de fora com a convicção que tenho da minha falta de convicção. Não me falto, porém. Malogram minhas maiores vontades, porém, alerta, eu tento reencontrar minhas partes. Sou o homem que matou o charme. Sou aquele que disse as palavras certas nas horas erradas ou o que errou o timing nas palavras certas guardadas? Calo-me, observo-os, observo-me, resguardo. Sou tudo e sou nada. Sou o interlúdio da canção antiga não cantada. Eu não sou mais quem você deixou? O céu anuncia novidades com mais clareza do que eu poderia imaginar. Esta é a hora dos demônios! Seria melhor se estivesse em casa, perdido em sonhos enfadonhos, escutando o barulho do ar-condicionado que ainda não chegou. Atravesse a porta da sonolência e se mantenha soporífero. Desligue-se da consciência. Durma logo, por favor. É tarde, mas ainda é muito cedo para falar sobre o amor. Pois durma. Antes que a madrugada vire manhã. 

     Entediado interrompo de uma vez todos os tipos de pensamentos. Deixo-me sentir e me perco nos detalhes da beleza perfeita de uma flor. Assim somos todos. Nossas perfeições são tão discretas que quase ninguém é capaz enxergar. Queremos que os outros sejam indefectíveis, mas somos tão falhos e vulneráveis como os que exigimos que sejam melhores do que são. Estou acordado, mas em um planeta distante. Lembro-me de como Ransom estranhou as novas criaturas quando chegou em Malacandra e sobre sua melhor filosofia sobre impressões. Nada pode ser tão horripilante quanto a primeira impressão e nada pode ser tão maravilhoso quanto a impressão seguinte. O inverso também se aplica. Tenho sido apaixonante ou deprimente. Estágios distintos do meu pior melhor estado em mim. Canto sem parar e grito frases marcantes até ficar rouco. Às vezes me sinto tanto, outras vezes tão pouco. É natural, certo? Não estou louco. Diga que sim. É assim que é a jornada. Caminhamos quase sempre em frente. A borboleta ontem mesmo era lagarta. Então rasteje, mas que o ímpeto em impelir o corpo para frente seja apenas por motivos dignos. Esqueça a possibilidade de fracassar. Siga. Faça. Antes que a manhã vire tarde. 

     Nunca sobrepujo minhas vontades nas dos outros. Imponho-me em mim, canso-me, porém, sigo acordado. As noites são cada vez mais curtas. Os sonhos são cada vez mais assombrados. Os tempos mudaram e não houve sequer um mensageiro que pudesse me avisar? Imagino uma história diferente desta vez. Sorrio, choro, sofro. É uma questão de humanidade não ser tão exato, mas é necessário ser exato na afirmação de que não há razão em ser completamente humano. A questão não é merecer ou não. Todo mundo merece e ao mesmo tempo ninguém merece. Excedo sem exceder. Quase tudo me desperta o interessa, quase nada me prende. Tive relações imaginárias mais sólidas do que as reais e simultaneamente deixei de tentar solidificar o que não era imaginação. Cortei relações antes que ela se tornassem mais que mera expectativa do vislumbre de algo mais. Fui extremamente cuidadoso até o dia em que fui irresponsável. Tolerei de tudo, mas franzi o cenho e fiquei de prontidão contra os insensatos de orgulho obstinado. O que posso fazer se nada posso fazer? A ideia que criamos é de nossa responsabilidade e muitas vezes o que nos afasta da alegria é apenas uma teimosia insistente. A realidade é que queremos ser felizes apenas do jeito que supomos a felicidade e nunca de um jeito diferente. Evitamos a história diversa, a curva improvável, a subida íngreme, pois queremos o caminho mais seguro para casa, assim, ignoramos todas as outras possibilidades buscando apenas o desejo egoísta de centrar em uma ideia que talvez não exista mais. A hora dos demônios acabou. O relógio continua o seu tiquetaquear e as batidas são tão lentas quanta as do seu coração. Não tenha pressa, mas acelere a sua percepção. Beba nove ou dez xícaras de café e dissipe-se da solidão. Entenda-se para que possa entender todo o resto. Feche os olhos e olhe com o coração. Veja além da ilusão. Antes que seja tarde demais.


Antes que a tarde amanheça
E a noite vire dia
Põe poesia no café e
Café na poesia.

Paulo Leminski.


segunda-feira, 15 de abril de 2019

Tenho tentado...

   Tenho tentado, em vão, alcançar as coisas que sinto distantes de mim. Reparo-me na existência alheia e sorrio sem confiança. Nesta noite de lua cheia, eu só desejei ser um homem hábil na dança, mas como só posso me equilibrar nas minhas próprias capacidades, eu resisto como posso e sigo sendo apenas o que sou. Descobri o segredo da vida, mas não havia ouvinte que quisesse sabê-lo. Sou sempre subestimado e dou de ombros com um sorriso minguado. Algumas situações se repetem e todos aqueles que deveriam se lembrar agora se esquecem. O que é que posso fazer? Nada. Sinto uma espécie de perigo, mas continuo de peito aberto sendo o que sou. Um vulto perdido, um mero eco não ouvido, algo importante esquecido, uma sombra de amor... 

   Tenho tentado e não sei se falho o suficiente para falar com propriedade. Os que me acompanham de perto eventualmente querem saber. O segredo para sobreviver com sede no deserto, a forma de continuar a amar quando o amor já não faz muito por você. Veja! Há estágios de construções que você pode mirar para não deixar a sua crença ruir, mas o único passo fundamental é que você nunca deixe de acreditar. Você talvez tenha sido um mendigo pelo amor, como eu fui, catando qualquer resto para não morrer, recolhendo tudo o que há no caminho apenas para que um dia volte a ser. Você sente falta e isso não é motivo de vergonha, mas é necessário levantar a cabeça, limpar a calça com dois ou três tapas e tirar a poeira de cima das velharias. O que era antes não torna a ser um dia. A vida é em frente, mas às vezes você olha para trás e sente, não? Seu ânimo não é mais o mesmo e nem mesmo você, mas você guardou tanto aquela parte especial para alguém. A decepção agora é uma lacuna impossível de preencher. Todos estão mudando tanto assim? Como estaremos no momento que antecede o fim?

   As pernas doem e você não quer ajuda para se sustentar em pé. É bom, eu digo e repito, é bom que ainda sejamos capazes de manter acesa essa chama de orgulho. Há variados tipos de fogo. Alguns mudaram abertamente os antigos planos; sem enganos, trocaram eu te amo, mas nós, insistentes nas persistências infindas, queremos saber, tentamos entender, até mesmo o resquício da loucura mais linda. Não há tragédia limpa. Ao fim há sonhos mortos, sangue e lágrimas. Dói, mas você evita tocar a ferida. Dói, mas você evita falar sobre o que ainda faz palpitar o seu coração. Dói, pois já não são as mesmas mãos. Dói simplesmente por doer. Você sabe que pode ser cada pequena coisa e que ninguém precisa saber, mas a alma clama, não é verdade? Você é tão discreto que seus desejos mais profundos jazem secretos longe dos ruídos imundos da cidade. Encontros dissonantes te levam até a verdade. O barulho abraça o silêncio e diz que está tudo bem, ele pode se quebrar em seus braços essa noite. O barulho, compreensivo, é mestre em expressar emoções. Como podemos ser tão diferentes e nos apegar em tantas tradições? Como podemos ser opostos e cada vez estarem mais próximos estes vastos corações? Os céticos observam com incredulidade e os que possuem fé não conseguem crer. Quando foi que o mundo voltou a se mover? Alguns dizem que a sua vaidade será sua ruína, mas você não teme esses discursos repletos de vulgaridades, pois conhece a própria sina. Por que há de temer os monstros que espreitam cada esquina? 

   Tenho tentado, em vão, alcançar-me quando saio de mim vagando à esmo. Tenho tentado entender a minha própria vastidão. Amei, invariavelmente, pessoas. Nunca fui daqueles que devaneia sobre a coisa amada. Ainda assim, eu me via fora de mim. Às vezes me desculpei mesmo que a minha ação não estivesse errada. Às vezes não me desculpei mesmo sabendo do meu erro. Somos prisioneiros de nós mesmos. Tenho liberado meus impulsos ao menos uma vez na semana. Arrefeço quando sinto que ninguém me ama. Tenho tentado mesmo sabendo que, ao final, vou estar errado. Tenho vivido dormindo e sonhado acordado. O que eu perdi de tão importante qual não soube encontrar? Às vezes, olho-me com minúcia e testo a força da minha astúcia, rebaixando-me ao meu menor estágio para me equilibrar e não me tornar cego. Às vezes, eu tenho travado lutas intensas contra o meu próprio ego. O que é isso tão negativo que me faz sentir que tudo vai dar errado? O que é isso de condicionar e estabelecer regras quando só é amor se é insensato?

   Tenho tentado, em vão, encontrar alguém que me encontre. É inútil. Estamos acostumados a nos acostumar aos costumes. No contato diário esquecemos de valorizar quem nos traz o lume. Na ausência persistida encontramos a face do amor que foi deixado para trás. Tenho conseguido sem tentar muitas coisas das quais não me imaginei capaz. Na leveza que sinto ao abandonar velhos fardos, eu assumo com coragem novos encargos e abraço a minha paz. Há caminhos irrecuperáveis, mas não me apego mais à ilusões de memórias afáveis. O que for meu um dia o vento traz. Os que estão por perto me perguntam sem parar "Ainda existe amor verdadeiro?". Desiludido e quebradiço, eu sigo a acreditar, é o amor que nos faz inteiros. Não desista de amar só por quem alguém pisou com força no seu melhor sentimento. Eu não disse que tenho tentado? É numa despedida esticada, na extensão de uma nova risada, que há a percepção de que o quebrado ainda pode ser consertado e a vida volta a valer em um novo momento. 

terça-feira, 9 de abril de 2019

Diálogo com o Tempo

   - Amaldiçoe todos os que te amaldiçoaram, ainda que estivessem corretos. 
   - Odeio-a exclusivamente porque a amo.Veja só... As tradições se inverteram ao longo deste último ano. Escondi-me por um longo tempo dentro de casa, centrei meus olhos em meu âmago. Entender-me era absolutamente necessário. Revivi os meses mais silenciosos da minha vida. Minto. Não odeio, mas serei honesto... também não amo. As certezas são incertas e as coisas estão díspares. 
  - Cada um possui o seu drama e o seu sofrimento, irmãozinho, assim, relativiza-se a dor alheia. O foco eventualmente recai sobre os próprios pesares. 
  - Há sensatez nisto. Se todos os problemas de outras realidades interferissem diretamente em meus atos, não importaria quais fossem os fatos, sem dúvidas, eu teria caído. 
   - Será que não está no chão faz tempo e por isso não notou que já não é mais capaz de cair? 
   - Quem poderá dizer? Não tenho sido tão bom assim, admito. 
   - Pesa-se que é importante não ser um desses miseráveis que derramam ódio em tudo o que é vivo e possui vida, mas há um limite para a empatia. Não ser tão bom assim pode ser bom o bastante. Você pode até se solidarizar, ser o ombro amigo perfeito, mas é claro que nunca saberá mensurar qual é o tamanho da dor alheia. 
   - Nem mesmo se a sentirmos?
   - O sentido de sentir é relativo. Suaviza-se o fato com base nas experiências próprias. 
   - Seja mais claro. O que quer dizer? 
   - Nada diferente do que disse. Não tenho uma boa relação com a minha mãe e você ama e convive com a sua, respectivamente. Minha mãe, se possui amor por mim, nunca soube demonstrar, assim, eu e ela somos mundos diferentes. Talvez ela sentisse um pouco a minha perda, talvez eu sentisse um pouco a perda dela, mas o fato é que estamos acostumados com a ausência. Se a sua mãe lhe faltasse, talvez lhe faltasse um grande pedaço, mas se minha mãe faltasse, creio que seria um prolongamento de uma distância que nunca fizemos questão de cobrir. 
   - Você falou sobre isso outro dia. Distâncias incalculáveis, mas me diga, até você tem mãe?
   - Aquilo não possui qualquer relação com isto e todo mundo tem mãe.  
   - Às vezes nossas conversas se tornam redundantes.
   - Claro. Pesa o fardo, não? Todos que estão aqui foram vencidos. 
   - Vencidos por quem?
   - Importa quem desfere o golpe se você não é capaz de resistir? - As conversas até então fluíam naturalmente, mas a indagação freou a resposta rápida de Seth. O cozinheiro reconheceu com admiração a sabedoria do Tempo, mas notou que nem ele tinha todas as respostas (embora talvez possuísse todas as perguntas). O cozinheiro era muito espontâneo para ter de pensar para responder, porém, muito sincero para dizer algo sem ter a certeza do que gostaria de dizer. Odiava significar coisas sem significado.
   - Não sei. Acho que importa, na verdade. Um golpe é apenas um golpe, mas um golpe sofrido por alguém em quem você confia é inesperado. Dói mais. 
   - Percebo que já sofreu destes golpes antes... - Seth ficou em silêncio. Talvez o Tempo soubesse mesmo de tudo, mas o cozinheiro não estava sentindo seu mundo colorido. Ainda era calmo como a garoa, porém, fechava os olhos e se tornava completamente cinza. O cozinheiro tentou se lembrar de seu verdadeiro nome, mas havia apenas sombras pálidas e sem significados na memória. Suspirou decepcionado. Lembrou-se em seguida de um truque ensinado pela Bruxa Que Devora. Levou as duas mãos ao peito e os dedos tocaram suavemente a pele no ponto em que dentro jazia a ponta do coração. Quando abriu os olhos, havia retornado ao quarto. Tudo era cinza, exatamente como o seu estado de espírito. O cozinheiro não sabia dizer o motivo, mas o Tempo parecia ter parado. Os olhos retornaram para a frase da profecia inscrita na parede do quarto absurdamente bagunçado. Nem todo anjo é branco. Nem todo mal possui asas negras. Às vezes um simples estranho endireita suas veredas. Seth suspirou profundamente. Seus batimentos cardíacos estavam acelerados. Sentia como se a frase quisesse lhe mostrar algo, mas lhe fugia a compreensão. Tentou encontrar uma solução, mas admitiu a inutilidade daquilo tudo. Saiu a esmo pelo Palácio. Sabia que precisava de pelo menos uma pista que o colocasse na trilha certa. 
   - Não é uma caça ao tesouro se eu nem sei o que estou procurando... 

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Formidável...

     Eu tenho sido formidável em minhas maneiras de existir. Não que isso signifique muito, mas creio que seja sensato manter a coerência. Você não precisa se explicar para pessoa alguma, porém, o início das contradições no próprio discurso em que acredita te afasta de você mesmo. Somos a repetição da história que contamos diversas vezes em nossas cabeças. Um eco e seus mesmos. Tantos contos diferentes somados com mentiras podem te tornar uma espécie de confusão ambulante. Por ser essa a minha crença, eu me mantenho inteiramente são neste mundo trôpego e embriagado. Quando sou eu representando a figura patética e alcoolizada, eu me vejo nos mesmos níveis detalhados de tropeguidão das coisas todas, completamente nivelado por baixo. Sou eu ali, mas simultaneamente sou outro também. Eu me represento, atuando em mim, mostrando aos que me rodeiam toda a eloquência da minha alma, pois qualquer indivíduo deseja, cedo ou tarde, ser aceito. Sabemos ao ponto de dizer ainda que ser compreendido e ser aceito sejam mundos distantes. Divido-me para ser unidade outra vez. Depois paro e reparo no meu sono de dentro, observo o mundo de fora e me escondo do calor do sol. Fito seriamente tudo o que existe como se a vida fosse mais do que uma comédia com nuances trágicas (há quem diga que seja uma tragédia com nuances cômicas). Você é capaz de manter a sua coerência ou bate no peito e assume com coragem a sua hipocrisia insensata? Você se dedica ao que ama ou ama se dedicar ao que sempre te mata?


     Eu tenho sido formidável, mas às vezes me vejo tentado a ser diferente do que sou. Quem não se pouparia um pouco por ilusões profícuas sobre o amor? A vida é muito dinâmica, tenho dito isso com frequência, mas quando digo que tenho tentado, eu estou realmente sendo honesto. A tentativa basta se não posso ter o que quero e tenho que me contentar com restos? Sigo sendo quem sou e sabendo o que desejo, mas nas noites vazias onde a pele arrepia à invernia, eu tenho me sentido só e por vezes com medo. Seria muito ter um pouco de carinho e calor? Seria terrível contar com um beijo de amor? Poderia ser você aquela que bebe vinho comigo, faz piadas infames e lindamente sorri como quem eventualmente prevalece? Poderia ser você a despertar comigo em um mundo que ainda adormece? Você sabe, eu tenho sido formidável em devaneios épicos inseridos em utopias quase lúcidas que tenho enquanto acordado. Sou o rei dos sonhos líquidos, príncipe absoluto e insípido, herói absoluto de um mundo vil qual por mim foi idealizado. Governei terras áridas longe daqui. Eram secas e sofridas, cenário semelhante aos de filmes de terror. Escrevi um diário e o chamei de livro dos dias, mas naquela terra de ilíadas, ninguém possuía conhecimento ou falava em poesias, assim, senti-me encolhido. Ordenei e fui desobedecido, nasci para ser combativo e combatido, ainda que minhas palavras tenham sido: que só haja amor! 


     Eu tenho sido formidável e se tivesse um filho com ele seria afável. Sigo sendo quem sou, apenas por ser a única pessoa que aprendi a ser, mas é preciso tomar cuidado para não dar maus exemplos a quem está ao seu redor. Nesta manhã de domingo, eu e meu pai comemos em uma padaria próxima da casa de meus irmãos e ao nosso lado estava uma mulher e seu filho pequeno (5 anos de idade, aproximadamente). Tratou a criança como se ela fosse um pequeno robô e não prestasse a atenção em nada. Alguns minutos depois começou a destratar os atendentes do estabelecimento por uma suposta demora excessiva sendo que seu pedido era o mais demorado de ser preparado. Soltou vários porras, merdas, caralhos e ainda fez caretas debochadas, disse que queria falar com o gerente e em tom de menosprezo seguiu ensinando seu filhinho, criança quieta e atenta. Eu tenho sido formidável e para me manter assim, eu não posso ser conivente e nem olhar nos olhos de alguém tão áspero com real esperança. A salvação é pelo risco, mas quem é que se dispõe a arriscar? Arisco arrisco, cônscio dos meus rabiscos que formam palavras, perdi-me novamente e acordei em uma ilha encantada. Celebro o risco. Tenho sido formidável e sacudo minha cabeça para voltar à realidade pungente. A gente é o que sente ou o que mente ser? Questões infindáveis de problemas criativos e solucionáveis, mas de que isso importa? Não importa. Ainda assim, perco-me, mas sei que tenho sido formidável. Por que a responsabilidade de ser o exemplo recaiu sobre mim? Meu sussurro quase inaudível não chega aos ouvidos do  garoto, mas espero que o vento lhe transmita este pouco: você não precisa ser assim. Eu tenho sido uma boa projeção do que muda de lugar. Sou assim desde que adquiri a compreensão de que nada permanece do jeito que está. Tenho sido formidável. Oscilo como a chuva na manhã em que finalizo o meu texto, mas no geral, eu molho a mente dos que me acompanham assim como a chuva molha a minha pele. Ainda que seja sutil, eu sei que tenho sido formidável. E você? Como está se sentindo hoje? 

sábado, 6 de abril de 2019

Distâncias incalculáveis

    Quem me dera ter a capacidade de escrever um texto maravilhoso para cada pessoa que se vai, porém, não é assim que a vida funciona. Substancialmente escrevo sobre a memória da perda, sobre o sorriso enérgico capaz de abraçar, sobre como me ensinou a pegar ônibus em São Paulo e até sobre como não entendo o que às vezes acho que já deveria ser de minha compreensão. É impossível usar palavras perfeitas, pois alguém se foi e racionalmente estou falando apenas sobre o que ficou para trás. Não há tempo para acertos e consertos. As coisas simplesmente são como são e a incerteza é uma das maiores punições e bênçãos que recebemos. O desconhecimento sobre o que há depois da porta da morte deveria bastar para que nos valorizássemos em vida, mas adivinhe só? Não basta. Assim buscamos conforto na fuga para que não seja necessário enfrentar o que deixamos. 


Há distâncias incalculáveis...

    A vida é delicada e fugaz, mas frequentemente nos deparamos com ilusões que nos fazem enxergá-la como se fosse realmente duradoura. O que é que dura? Se suas barbas estão grisalhas, se seus acertos se tornaram falhas, se restou apenas passividade onde havia o fervor de batalha? O que é que dura? Sua essência pura? Sua enferrujada armadura? O que antes chamava de vencer? O que dura? Suas críticas rasas aos que ousaram ousar muito mais do que você? Sua incapacidade de deixar de ser um escravo do prazer? O que é que dura? Por isso admiro uma mulher que de tudo acha graça e faz a tragédia da partida virar fumaça. Eu sinto que ela sente os ritmos corretamente... a vida passa em um clichê clássico ,"em um piscar de olhos", não mais que de repente. Quem nunca deu um suspiro longo e pensou que ainda ontem costumava ser uma criança livre e despreocupada? Quem é que nunca se preocupou em se divertir sem pensar em mais nada? Quem é que nunca brigou feio e depois ficou apavorado com a possibilidade de não poder restabelecer a paz? Quem é que nunca esqueceu do mundo em uma morte recente e não agradeceu a oportunidade de estar vivo no riso de um bebê? Quem é que não quis correr e se esconder no longo abraço de uma mãe? Às vezes é preciso se consolar em outros abraços, pois os que nos confortam jazem longe demais. É tão triste ter de usar a palavra inalcançável, mas a necessidade freia a mentira. 

Há distâncias incalculáveis e só queríamos mais uma vez dizer...

    Se esta noite eu me pegar sentindo a sua ausência, eu posso olhar para o poste de iluminação ao final da rua e fingir que é um farol? Posso fingir que a luz em minha direção representa o sol? Quão bobo vou soar se admitir que seu riso que sempre me tirava da escuridão? Será que faz realmente mal sussurrar uma mentira que é profícua? Será um crime reviver memórias que em algum momento foram capazes de salvar o seu mundo? Há coisas que se vão e não voltam. À luz do dia o sol, ágil e caloroso, é muito bem capaz de escondê-las, mas você sabe como ninguém que é durante as noites, nas horas frias e paradas, quando você escuta as batucadas dos corações dos relógios em infindos tique-taques, é que seu lado de dentro está mais escuro do que a noite de negrume. Nunca mais se sente o cheiro do perfume. Ainda podemos falar, mas nem no mais perfeito dos silêncios podemos captar vislumbres das respostas. Eis então que as lágrimas se derramam, pois você ainda ama e o golpe é doloroso, talvez até mais do que você possa suportar. Seu coração está em pedaços, mas é a convicção na força dos velhos laços que te fortalece. A alegria na memória é reflexo da ausência que nos engrandece. Neste sentido, eu digo sem medo de errar: tudo mudo e troca de lugar. A falta é apenas o sinal de que quem se foi para nunca voltar era alguém capaz de conquistar corações e quando você fechar os olhos saberá, claro que saberá... pois quem vai para sempre apenas vai, mas ainda fica. São nossas estradas para locais seguros, nossos jeitos de derrubar grandiosos muros e declamar a verdade em sussurros que nos fazem continuar. Essa noite você partiu, mas neste coração sempre terá um lugar para qual voltar. 


As distâncias poderão continuar incalculáveis, porém, meus instintos são todos inefáveis
Chego aos lugares que quero por caminhos quais outros nunca cogitaram percorrer
Na madrugada de solidão e tristeza encontro novas maneiras de te rever.

Eis uma homenagem singela aos que já se foram para não mais voltar. Fiz o texto pensando na minha recém falecida tia Sandra e tenho que dizer que ela era uma daquelas pessoas que tinha o dom da hospitalidade e do riso. Que sejam repletos de alegrias seus novos caminhos, tia, pois, embora ninguém saiba dizer, creio que a morte é apenas mais uma etapa. Obrigado por me tratar como filho, por tanta parceria e aprendizado, por me ensinar a pegar ônibus e metrô em São Paulo, pelos cafés das manhãs e por toda a amizade. Obrigado por ser uma das poucas pessoas da família que comentava nas minhas poesias. A senhora nunca vai ter a dimensão do quão significativo isso foi pra mim, pois meus escritos são a minha alma e há sempre tanta pressa para imergir na correria do dia a dia e para "se encontrar" no sentido financeiro, que a maioria já vive uma escravidão dedicada ao dinheiro e acha que tudo o que faço é brincadeira. Ainda não fui publicado, mas sou feliz por me sentir inteiro. Obrigado por me compreender quando quase ninguém tenta! Como meu irmão citou no texto que fez, você fez de São Paulo nossa casa anos atrás. Grato eternamente à você, tio Sérgio, Séi, Guga e Paula. Obrigado! Eu que não choro acabei meio amargo e com os olhos marejados, mas se há a tristeza pela perda é sinal de que em vida houve diversos motivos para a alegria. Vá e vá bem. As distâncias são incalculáveis ainda, mas isso não quer dizer que nunca mais sua família e amigos irão te reencontrar. Adeus, mas apenas por enquanto. Texto dedicado à todas as pessoas importantes que já se foram. Em minha boa memória ainda jazem e jamais serão esquecidas. 


Com amor, 



Daniel Rosa Possari.