segunda-feira, 28 de março de 2016

Para você que está longe...

     Entro na casa e antes de tudo sinto o cheiro diferente de lá. É um cheiro no qual estou prestando atenção sem perceber. Um cheiro que não se alterará com o tempo, e que minha memória é incapaz de esquecer. Sou recebido com muita alegria e meus irmãos e meus pais também. O sorriso largo de minha avó Malvina me diz que estou em casa, e seus olhos escuros e alegres dançam. Eu não sabia que futuramente só me lembraria dela sorrindo, e por isso não presto tanta atenção. Vou ao banheiro e estou apertado para fazer xixi, mas a privada é mais alta que eu de uma maneira que não sou capaz de urinar em pé. O jeito é escalar o vaso sanitário, e fazer xixi sentado. O que parece uma missão fácil não é tão fácil assim, pois o buraco do vaso é feito pra gente grande e eu tenho que usar meus pequenos bracinhos para não cair. Com muito esforço a minha urinada é um sucesso, mas o desafio não acabou. A pia para lavar as mãos é duas vezes mais alta que a privada. Tento esticar meus braços e abrir a torneira, mas falho. Achei que conseguiria porque sou o segundo mais alto da turma do colégio, mas acabo de perceber que não sou grande o bastante. Fecho a tampa do vaso, e me debruço na pia. Agora que consegui lavar as mãos, saio do banheiro e sigo para a sala. O resto do pessoal já se cumprimentou, e só eu preciso dar oi pra todo mundo ainda. Entro na sala e vou à direção do meu avô Damião. Ele me recebe com um abraço forte, e me chama de baiano, e eu não faço a mínima ideia do por que, mas me sinto muito feliz. Toda vez que chegamos somos recebidos com uma espécie de festa onde todos estão se divertindo, pois todos sempre sorriem. Falo oi para o Thalis e pro Francis, e não muito depois vou jogar vídeo game. Minha avó que me conhece muito bem pergunta se eu quero comer tomate com sal, e eu me empolgo muito e aceito. Geralmente peço antes que ela me ofereça, mas hoje não foi assim. O tomate com sal foi maravilhoso e foi muito legar jogar vídeo game. Depois de algumas horas nós estamos prontos para ir embora. Hoje não dormirei aqui, mas quem sabe da próxima? Não tem problema. Nós nos despedimos e eu me sinto cansado. Durmo no banco de trás da caminhonete enquanto algum CD de sertanejo toca e só acordo quando estamos entrando na garagem de minha casa. Na minha perspectiva inocente de criança sei que vou dormir pesado, e agradeço a Deus porque meu dia foi perfeito.

     Entro em baixo das cobertas. É o segundo dia de viagem na fazenda do meu amigo Carlos Alberto. A mãe dele acaba de me dar à notícia de que minha avó Malvina teve um AVC e foi para o hospital. Eu não sei o que é AVC, mas sei que ir para o hospital não é uma coisa boa. Já é hora de dormir, e é sabido que sou um dos meninos mais chorões da minha idade, mas não assimilo a notícia imediatamente. Espero até que o Carlos Alberto e o outro Daniel durmam. Quando acho que eles estão dormindo começo a chorar. É engraçado o quanto acredito em Deus, pois peço para ele fazer com que minha avó melhore enquanto as lágrimas continuam a escorrer. Choro por algumas horas, mas na verdade só se passaram alguns minutos. Continuo chorando até meus olhos pesarem e adormeço.

     Acordo e tomo café da manhã. Acho que quinze dias se passaram desde o dia que voltei da fazendo do Carlos. A fazenda dele era muito legal, e tinha até uma coruja na entrada, mas tenho mais o que fazer do que me lembrar disso. Assisto Digimon e subo as escadas. Sento na cadeirinha de madeira, e agora estou jogando vídeo game. Sempre me divirto com esses jogos, e sou o melhor jogador de vídeo game da minha turma na escola. Não é fácil vencer o Victor Hugo e o Jorge no Super Smash Bros, mas sempre venço. Acho que são dez horas da manhã, e minha mãe sobe a escada sorrindo dizendo que tem uma surpresa, e minha avó aparece atrás dela. Sorrindo ela abre os abraços e espera ser abraçada, e é exatamente isso o que acontece. Não sei se pausei o vídeo game, mas não importa. Ela superou o AVC e foi liberada e não precisa mais ficar no hospital. Tudo vai ficar bem agora. Tudo vai ficar bem...

     Acordo e existe um clima estranho pairando no ar. Há visitas em excesso na casa. Eles são família, mas sempre avisam antes de aparecer e não costumam aparecer tão cedo. Minha mãe chora muito, mas ninguém chega perto de mim para me dizer o que acontece. Meu primo Francis está sentado na escada, e ele enterra sua cabeça nas palmas de suas mãos. Passo por ele, pois ele certamente não quer conversar. Vi o Thalis passando, e tive a certeza de que ele tinha chorado muito. Agora fico preocupado porque meu primo Thalis é sempre sorridente e alegre. Passo por mais pessoas, mas todos escondem seus rostos e não consigo identificá-los. Encontro meu tio Etiene, e ele tem um comportamento diferente dos outros. Se alguém já me deu a notícia do dia sinceramente não me lembro, mas sei que ele vai falar comigo e que eu não vou esquecer. Os olhos do meu tio Etiene estão carregados de lágrimas, e parece que ao menor sopro ele vai desabar, mas de algum jeito ele se segura. Ele está tentando ser o homem naquela situação. Um dia nós dois saberemos que todo homem também chora, e que não existe vergonha em chorar em uma situação como aquelas. O dia demora a passar, e ele parece inteiro cinza. Não argumento com Deus, mas não entendo também. Nunca mais vou ver minha avó? Ela nunca mais vai me preparar tomate com sal? Isso não faz sentido. Já não sei se tudo vai ficar bem agora. Acho melhor perguntar para o meu pai, pois ele é sempre o homem certo e vai saber o que dizer. Quando vejo que meu pai também chorou hoje percebo que desta vez nada vai ficar bem. Nunca mais vou ver a minha avó? Isso não deve ser verdade. A qualquer momento ela vai subir a escada e interromper meu vídeo game, e vai sorrir de novo, e tudo vai ficar bem outra vez. Vai sim. Eu sei que vai.
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     Quase uma década e meia se passou, e tudo mudou tanto. Volto ao lugar sagrado da casa dos meus avós, e desta vez a primeira coisa que faço é cumprimentar meu tio Etiene, a esposa dele Kácia, e meu primo Francis. O tempo passou tão rápido que o Francis já se tornou pai, e o Thalis não mora mais aqui. O que eu sei é que a casa tem o mesmo cheiro, mas nunca mais vai ser a mesma. Talvez a casa esteja igual e eu tenha mudado drasticamente. Minhas constantes reflexões me fazem crer que são as duas situações simultaneamente. Vou ao banheiro e agora consigo urinar em pé tranquilamente. Curvo meu corpo para lavar minhas mãos, pois a pia agora é muito baixa. Tenho 1,87m de altura e minha cabeça ultrapassa a altura do espelho. A privada já não é capaz de me engolir, e o banheiro não me parece mais gigante. Na realidade agora ele me parece muito pequeno, mas eu sei que o homem que vejo no espelho era um menino se esforçando para alcançar a pia não muito antes. Aqui o passado, o presente e o futuro se encontram. Molho o rosto para desanuviar meus pensamentos, e sigo para o quarto do meu avô Damião. Ele está deitado, e sofrendo. Usa fraldas, e sondas no corpo. Ele não se alimenta sozinho e não é capaz de se mover e nem de falar. Já não faz nada sozinho e está assim há alguns anos, e é difícil de ver, mas toda vez que o vejo tenho certeza de que é o homem mais forte que conheço. Por mais que não faça nada sozinho, seu cérebro funciona perfeitamente. Imagino o quão ruim deve ser estar preso no próprio corpo, mas um vislumbre é o suficiente para me deixar mal. Quando ele crava seu olhar no meu, encaro-o de volta fixamente.Tenho um arrepio, mas não desvio os olhos. Ele tenta me dizer algo com o olhar, e acho que estou perto de entender, mas ainda não entendo. Por isso peço desculpas ao meu avô Damião. Perdão, vô, pois queria te entender de verdade e não consigo. Queria te ouvir me chamar de baiano mais uma vez, e ouvir seu riso. Depois que a vó foi embora às coisas ficaram mais difíceis para todo mundo, mas eu juro que toda vez que fraquejei fui capaz de levantar. Vou tentar para o resto de minha vida ser um homem duro na queda como você é vô Damião. Vou te dizer isso na próxima visita. Estou crescendo ainda, vó. Já ouvi do meu irmão mais velho que estou me tornando um homem maravilhoso, e receber um elogio de um cara como o Caio é algo muito especial. Lembra o quanto nós dois brigávamos? Talvez seja difícil de acreditar, mas nos tornamos melhores amigos. Tive alguns espelhos no meu crescimento, e eventualmente alguns exemplos bons se tornaram ruins. Espelhos quebrados não dão azar, mas espalham-se em milhares de cacos. Mesmo se você conseguir colar quase todos os pedaços não vai ver a imagem refletida da mesma forma. Percebi depois de tentar um pouco que juntar os cacos não valia a pena. Eu estava olhando no momento em que todos os espelhos quebraram, e sei como fazer para não me deixar quebrar no futuro. Fiz uma coisa fantástica para que fique gravado: parei de chorar. Choro muito raramente (não chorei em Marley & Eu e nem em Sempre Ao Seu Lado), mas hoje sou conhecido de uma maneira diferente da de antigamente. Perdi algumas pessoas da minha vida por ser muito sincero, e fiz algumas escolhas boas e outras ruins, mas o importante é que raramente repito meus erros e por isso amadureço rápido. Ser diferente nesse mundo é penoso. Muitas vezes ser diferente significa que você vai ser posto a prova, mas nenhuma prova foi capaz de me derrotar. Espero que esteja orgulhosa de mim, vó. Não me sinto bobo de escrever um texto para minha avó falecida, pois sou o que sinto, e senti vontade de escrever. Não tenho ido tanto à igreja como quando pequeno, mas se não estou tanto com Deus, Ele nunca esteve tanto comigo. O meu caminho é uma linha reta, e sou leal aos princípios que aprendi com minha família (inteira) e com as minhas experiências. Coragem, lealdade, perseverança, humildade. A família por parte de pai era considerada rica, e a de mãe considerada pobre, em termos financeiros, e viver em dois mundos me ajudou a crescer entendendo um pouco do que é a realidade. Tenho orgulho do meu avô pedreiro e do meu avô empresário, e tenho orgulho da minha avó concursada e da minha avó dona de casa. Muito orgulho. Estou começando a me tornar o homem que quero ser para o resto de minha vida! Vó, o Matheus é um dos caras mais inteligentes que já conheci, e entrou para o livro dos recordes como o homem com o maior dedão do pé aqui do Brasil. Talvez ele acabe dominando o mundo eventualmente, pois é sociável e tem um coração enorme, mas ao mesmo tempo é um folgado de primeira categoria. Sou um sujeito legal, vó, mas não sou fácil. Tento pensar primeiro no bem dos outros, e sei que isso é meio suicida, mas é assim que sou. O mundo anda tão mal que seria impossível descrever de uma maneira simples, mas eu sou desses que sonham com um lugar melhor para se viver. Sonho que as pessoas se entendam e parem de brigar tanto, e que sejamos capazes de novas realizações através do amor e de tudo que advém dele. Quero colocar no coração das pessoas mais força de vontade e mais amor... Alguns me chamam de moralista. Alguns me chamam de altruísta. Eu não me chamo de nada. Sou só o Daniel. E vou sendo o Daniel enquanto puder ser. Fui Daniel ontem, sou hoje e vou ser amanhã. Procuro exercitar a empatia e me colocar no lugar dos outros para não ser tão duro ou injusto. Falo com a voz fininha com meu cachorro Link (que um dia vai ganhar um textão também), e procuro tratar bem todos que conheço. Espero que estejam orgulhosos de mim hoje, mas garanto que vou buscar meus sonhos e um dia terão muito mais motivos para ter orgulho. Sinto sua falta, vó. Escrevi isso tudo para você que está longe, mas nunca longe o bastante para ser esquecida. Amo você muito, vó Malvina. Amo você muito, vô Damião. Obrigado por tudo!

Obs: Minha mãe está bem, vó. Fez um trabalho Nota 1000 nos criando. A mulher é a mistura perfeita entre você e o vô. Hoje ela se revoltou porque queimou uma fornada de pães de queijo, mas faz um café divino todos os dias e têm moral comigo. Também vive dizendo que já sou um grande homem e que tem muito orgulho de mim. Estou fazendo as coisas certas. Continue olhando por mim. Se eu tiver longevidade sei que farei grandes coisas por aqui. Fique bem! 


Desejo uma boa semana para quem leu meu texto (e pra quem não leu também). Não é um texto muito no meu estilo, mas senti vontade de escrever diferente e para minha avó. Não farei quaisquer correções ou revisões, pois estou cansado e desta vez não estou preocupado com a gramática. Então fiquem bem e sejam gentis e amáveis! Beijos! 


"Mera mudança não é crescimento. Crescimento é a síntese de mudança e continuidade, e onde não há continuidade não há crescimento". C.S Lewis.