quarta-feira, 29 de maio de 2019

Amor

     Eu não tive nem como ficar pasmo, pois quando me dei conta já estava transbordando. Tudo bem nunca ter vivido esse amor de casal, mas como alguém que viveu pode se esquecer? Deixar de sentir? Ok. Deixar de saber? Não. Simplesmente havia me dito que... Não sabia o que era o amor. Eu não tive nem tempo de respirar fundo.

     É claro que você sabe. Amor é a simplicidade que a gente complica. É algo fácil e quando se possui olhos cuidadosos passa a ser cada vez mais simples. É o descanso na loucura segundo Guimarães Rosa ou a loucura que explode na calmaria a confusão desastrosa (segundo eu mesmo). Amor é você aparecer no mesmíssimo lugar durante anos e estar louco para dormir junto. É ansiar para contemplar o sorriso ou apenas para dividir o silêncio. É deitar no chão da cozinha e ser lambido no rosto por um cachorro preto do tamanho de uma pulga e sussurrar... Isso foi o que esperei por anos... É aqui que quero ficar. 

     O amor está acima dos outros sentimentos menores ou tortos. O amor persiste quando os corpos viram cinzas ou jazem soterrados e mortos. Amor é lealdade desmedida, séries ruins, animes novos ou repetidos aos finais de semana. Amor é amar o pouco que se tem e saber regar bem o que a gente ama. Amar é ter a consciência de não ter religião, mas transformar os cinemas nas segundas-feiras numa tradição tão sagrada que a falta dos filmes seja um pecado. Amor é saber o que sente e não ter medo de cessar o sentir, pois a valentia e o vento sempre sopram na direção certa para os corações firmes. Amor é amor e a ideia de mensurá-lo é correr o risco de soar como um pateta. Amar é falar do vislumbre até do que não mais se sente e se prostrar como um péssimo poeta. Amor é Roma ao contrário, aroma nas roupas esquecidas ou escondidas no armário, sorrisos presos em retratos empoeirados; memórias medianas muito bem vestidas e transformadas em atos românticos apoteóticos. Quem ama ou deseja amar ou é bom de olfato (como eu nunca fui) sente o cheiro do amor ou do que o que desejaria que fosse amor quando a pessoa vai embora. Amor é olhar de fora para dentro e simultaneamente de dentro para fora. São ainda olhos que dançam enquanto te observam, pois veem pela sensibilidade a amálgama que te compõe e imaginam o universo que existe dentro de você. ]

     Amor é como o conhecimento da humanidade sobre os oceanos: agimos como se soubéssemos de tudo, mas vimos apenas dez por cento. A arrogância faz pensar que entendemos e nesse momento somos idiotas e isso é amor. Amar é ser estúpido cônscio da estupidez. Amar é abrir mão, sem razão, da própria lucidez. É entender que aqueles dez por cento são suficientes para querer a eternidade e almejar uma chance de olhar para os outros noventa, até mesmo as partes agressivas e melancólicas. Talvez você nunca veja tudo, mas imagina. Se fosse uma história clichê, o amor seria o desfecho e o clímax. 
     
     Quem é você? Por que você? 
     
     Irrelevâncias infantis. Isso, na verdade, não interessa minimamente. Eu estou feliz que esteja aqui comigo nessa manhã, tarde ou noite e basta. Amor é andar de mãos dadas e olhar vitrines de lojas caras quais talvez nunca consigamos comprar; é planejar trezentas e cinquenta viagens das quais cinco vão dar certo. Amor é querer quase sempre estar por perto. Amar é, talvez, concordar que os restaurantes da cidade são todos uma merda, pois até a inconsciência sabe que é preciso buscar algo em comum nos dias difíceis e que pontos de equilíbrio são necessários. Amor é proximidade e distância, mas nunca amar a distância prolongada que se gera pelas vezes em que se faz necessário o afastamento. Amor é privacidade e invasão. É ternura sim, mas também tesão. Amor é olhar descuidado e ser capaz contemplar gestos, beijar os olhos, olhar as bocas e ter a noção de que... Tomara. Tomara que Deus exista para que minha filha tenha o mesmo jeito teimoso e falante dela. Amor é saber que se não houver filhos, há outras maneiras de ser feliz.

     Amar é aprender a não deixar para trás pelos motivos que não lhe pertencem e é saber deixar para trás espólios desnecessários que a gente traz quando deixa de sentir o que sente. Amor é golpe direto: faca que rasga o orgulho ou que quebra na tentativa. Amor é gatuno solto na noite, mãos leves e açoite, passos na neve e tentações furtivas. Amor é insanidade, insensatez e respeito. Amor é assim e também de vários outros jeitos. Amor é quando um senhor de sessenta e seis anos de idade empurra a porta da casa, entra correndo e grita, seu desespero escorrendo desenfreado pelos olhos e sua boca travada em frases que se repetem involuntariamente: Ela morreu, filho. Ela morreu! Amor é saber que dali em diante tudo vai mudar de repente... É não controlar o a angústia; é tentativa intermitente. De viver...

     Amor é cuidado prolongado por quem durante anos prolongou solitariamente o cuidado sobre dezenas de pessoas. Amar é acertar a piada e transbordar pelos olhos azuis como o céu a felicidade mais genuína, pois a esposa com a qual é casado há cinquenta e três anos gargalhou e naquele riso, o mundo tão gasto quanto sua memória e seus ossos, voltou a brilhar mais uma vez. Amar é ficar quando tudo dá errado. Amor é quando na noite fria vejo seu rosto no vidro embaçado do carro. Amor é se sentir internamente e inteiramente retorcido, é ser lembrado quando o resto do mundo havia te esquecido, é abraço forte e apertado. Amor é o furo da cronologia em busca de se sentir bem. Amor é intenso e expansivo, mas nunca faz reféns. Amor é colo macio, sexo forte, café quente, cafuné infinito. O amor preenche vazios, não mente, traz sorte e é invariavelmente bonito. Amor é a falta de respiração acalmada por um toque na pele. É algo pelo qual se zele. Amar é ver a imensidão do mundo nascendo das lágrimas no rosto, é ter e não ter a vergonha de se sentir exposto. É desconfiar, mas uma última vez acreditar... Agora não há engano. Amar é deixar alguém navegar no seu oceano. Amar é nunca matar aranhas, pois é melhor acreditar nas superstições mais tolas. O amor é um sentimento que transcende o tempo e palpita nas entranhas em uma tarde de outubro vazando pela língua a frase... “Eu acho que amo você”, ainda que saiba que não há achismos. É acreditar apesar dos anacronismos e silogismos quando o amor fecha a porta de supetão. Amar o amor é sempre confiar que alguém ainda achará o caminho para o seu coração.

E ela disse... Foi muito lindo isso que você falou.
Eu ri e fui embora, mas falei baixinho, quase inaudível... 

Essa é a minha sensação sobre o amor.  

terça-feira, 21 de maio de 2019

Países distantes

     Sentei-me para conversar comigo sobre o que não conseguia falar com ninguém mais. O coração estava pesado pelo luto. A respiração estava ruim. Talvez tenha sido uma péssima ideia tomar dez xícaras de café, mas provavelmente foi a melhor que tive no dia inteiro. Olhei-me por alguns instantes, até que me localizei. Juro que estive prestes a escrever algo genial, porém, vi o momento em que correram para longe todas as palavras. Não tenho como descrever corretamente o que contemplei. As letras, incrivelmente desastradas, tropeçavam umas nas outras e se atropelavam. Elas, presas dentro de uma jaula perfeita na minha mente, aproveitaram a oportunidade de fuga quando eu mesmo, carcereiro de mim, destranquei a única saída. Gritei para que esperassem, mas fui ignorado. Assim, confesso-lhes que fiquei completamente desolado. Não é correto alimentar expectativas, mas hoje era o melhor dia para que as letras colaborassem comigo. A gente precisa dos amigos quando precisa, não é? Certo? Diga! Tique-taque... Meus olhos quase não piscam. Tique-taque... Minha sensibilidade é aguçada. Tique-taque... É uma ocasião rara, pois meu ímpeto é violento. Estou ácido, mas sou realmente capaz de me controlar. É assim que sei que sou o cara bom que tantos acreditam que eu sou. É pela insistência em ser o que preciso, ainda nos momentos em que só consigo ser como posso e brigo comigo arduamente para fazer o que é certo, apenas por questão de necessidade. Posso me machucar, não me foge à consciência, mas tenho um forte desejo de nunca ser detestável a mim. Respeito-me. Cumpro minhas promessas. Permito-me errar, mas não sou desafeto de mim mesmo. As pálpebras estão pesadas, como se sustentassem ferro. O sono é real e constante, mas perdi a capacidade de dormir. A lucidez se expande até um ponto em que as coisas todas perdem a sobriedade. O sentido é tão claro que repentinamente se escoa como a chuva ou o orvalho e desaparece. Agora os dias são longos. As noites são infinitas. Descanso entre um pesadelo sombrio e o intervalo de uma canção. O que é esse sofrer leve equiparado ao sofrimento que outros precisaram passar? 

     A morte despeja seu hálito maldito e apodrecido na minha face. O odor incômodo da bafejada, porém, não me remove do meu estado constantemente soporífero. Quero acordar, mas nem cheguei a dormir! Deitei por três horas, mas mantive meus olhos abertos. Quero acordar! Quero acordar? Dinamismo dos olhos atemporais... O olho esquerdo enxerga o passado que não pode ser esquecido. O olho direito vislumbra um futuro brilhante. Minha atenção nunca está no presente para agradecer pelos presentes que tenho recebido. A sina é de nunca ser o mesmo que antes. O movimento incessante faz a gente buscar o sossego. A tranquilidade excessiva faz urgir uma necessidade de sair, sugere um gosto de desespero. Tarde passada meu avô Damião concluiu, enfim, a jornada dele nesta Terra. Resistiu contra o tempo e mostrou uma força assombrosa. Terei essa capacidade de sobreviver algum dia? Eu me sinto acovardar. Será que alguém como eu pode ser corajoso e combativo? As memórias, ao menos, proporcionam certas estranhezas felizes. Mergulho em um passado límpido, eras antes da minha juventude, nas partes e peles sem cicatrizes. Ali vejo eu mesmo chegando, olho-me, mas que cabelo redondo e engraçado! Olho ali, vejo-me, lá vai o mini eu ligar o videogame. Bizarro como essas coisas a gente simplesmente sabe. Agora se aproxima a minha avó Malvina trazendo um prato de tomate com sal e em seguida vou ser abraçado pelo meu avô de um jeito todo especial! O senhor Damião falará e o eco de sua recepção é eterna: êêêêêêêêêêêêêêêê baiano! E gargalha em seguida o seu riso típico que me faz rir também. Um riso meio rouco, inteiro de carinho e amor. Olha como é a nossa família: simples, amorosa e direta. Olha! Olho-me outra vez agora mais atento. Eu e o mini  eu separados por anos e vidas de qualquer mera possibilidade de me tornar poeta. Eu? Daniel da imaginação, dos brinquedos, dos desenhos, dos videogames e do computador? Você acreditaria, vó? Você me leria, vô? Se um dia lá no futuro eu devaneasse em mil poemas de amor? Será que minhas palavras chegarão até esses países distantes quais vocês jazem? Será que vale a pena lutar por sonhos tolos que nos aprazem?

     Sei que este meu padrão é ligeiramente quebrado. Sei ainda que não sou ortodoxo, mas é como sou. Dane-se. Queria entender um pouquinho mais da vida para estar cônscio dos perigos, entender-me mais e compreender o mundo que a sensibilidade deixa para frente ou para trás. Por que há quem sofra parecendo fadado a uma espécie de castigo? Meu avô foi forte a sua vida inteira, mas como eu passei a desconhecer o único Damião que reconhecia nesses últimos anos. A cada vez que o encontrava, ele estava mais fraco. A cada vez que eu o encarava, seus olhos sempre pareciam um pouco mais opacos.  E a fraqueza lhe absorvia inteiro. Sua doença o consumia e ele era cada vez mais triste e magro. Crueldade irônica a de manter o funcionamento cerebral apenas ao ponto de conservar a lucidez no único estado em que a sobriedade racional já não interessa. Continuava a lutar pela vida. Seu olhar duro parecia implorar para que, de algum jeito, morresse com pressa. Mas vivia. Prisioneiro do próprio pensamento. Mas vivia. Os fieis dizem que Deus é justo, mas nessas horas falha a crença no julgamento. Enfim, o fim chegou. Enfim, despedidas fugazes e mensagens de amor. Enfim, descanso para a alma longe de qualquer possibilidade de deterioração de outros corpos. Enfim, sossego, tranquilidade para a nova jornada no caminho pelo qual seguem os mortos. Olha, você desconhecido, que não sabe de quase nada e nem sabe dizer ao que pertence. Tome conta dos seus amigos, toda perda, ainda que lenta, ocorre subitamente. E você passa a tentar trazer de volta, mas nada é como antes. Você deseja visitar quem partiu, mas quem queria encontrar nunca mais se viu. Todos estão em países distantes, sabidamente impossíveis à visitação humana. Rezo, arranjando-me com minha pouca fé, para que sejam felizes em uma nova trama. É o fim da dor. Hora de coisa nova qualquer. Que os finais sejam apenas recomeços. A paisagem é nenhuma e nos sentimos sem sorte, mas um dia também atravesso essa misteriosa bruma e descubro a próxima etapa depois da morte.

So I dive into the past
Deep in a ancient river 
Back to the start where it rests 
Some kind of a happy shiver 
Maybe the hurtest mans can never be sold
Maybe the summer minds can't ever be cold 
Time has now pass and we are all old
But when life ends what do I know?  
Maybe the weakest bodies holds the hardest souls 
Maybe the shattered parts builds hearts of gold

    Os crisântemos estão espalhados ao lado dos fantasmas e dessa grama toda bem cortada. Os antigos casais dançarão nesta noite sem nuvens.
E a vida continua. 
     E as flores exuberantes logo estarão murchas.
E a vida continua. 
     E as lágrimas escorrerão sem previsão de cessar.
E a vida continua.
     O tempo é bem que escoa e novas crianças ralam seus joelhos nas ruas. 
E a vida continua.
     E a gente precisa se esforçar ao máximo.

E a vida continua.
     E os bancos dos cemitérios estão vazios. Será que os espíritos se sentarão?
E a vida continua. 
     E as mulheres seguem lutando ferrenhamente. 
E a vida continua.
     E os tipos de homens certos fazem como elas.
E a vida continua.

     E os pais cuidam dos filhos até que um dia os filhos cuidem dos pais.
E a vida continua, continua e continua.
   Agora vá. Carregue-me na memória. Deixe as velhas histórias pesarem confortavelmente em seu coração. Viver é vago, mas nunca em vão. Agora vá, pois todos se vão. Há outros mundos além deste. O relógio corre e a vida continua... Segue em frente ainda hoje. 

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Crônica sobre nada - #1

     Sou como sou e vou sendo como posso. Muitas vezes me pressiono para ser mais nos melhores momentos ou ser apenas melhor nos momentos em que é preciso me dedicar ligeiramente mais. Tenho que ser o sensato da vez por inúmeras vezes. Adivinho-me, pois é fácil antever minha própria insatisfação com o mundo. Fui até vítima da frase agora quero ser minha prioridade quando não disse ou insinuei um A sobre me tornar sequer mais que meramente participativo em outras existências. Tive que decidir por quem forçou a indecisão sobre meus ombros. Nada era tangível, mas tudo era palpável. O que existe no plano imaginário certamente existe no plano físico, certo? Se o que pune a mente castiga, por consequência, o corpo, como podemos chamar qualquer coisa que subsista no campo das ideias de irreal? Nesta maneira de encarar os fatos, é possível afirmar que tudo existe, até mesmo o que não existe. A cada novo dia sinto que sei ainda mais sobre o que sou e me assumo naturalmente como uma espécie de bizarrice ambulante. Meus sonos são cada vez mais curtos, porém, ininterruptos e bons. Eu vim até aqui evitando os desperdícios. Comi apenas o que precisava para sobreviver. Eu cheguei até aqui atravessando as pontes que eu mesmo construí. Posso ter orgulho do que fiz se o que fiz foi indubitavelmente bem feito? Posso deixar que me creiam como vampiro se não sou capaz de convencê-los de que sou de outro jeito?

     Ser alguém orgulhoso é geralmente ruim, o que não quer dizer que ter orgulho seja algo ligado à quaisquer tipos de comportamentos vexatórios, viciosos ou hediondos. Um pouquinho de orgulho é necessário, digo-lhes com convicção. Não importa em que fase da sua vida ou em que estágio de evolução você se encontre ou que você suponha que se encontre, é importante também manter esse orgulhos, pois é ele que garante a particularidade de pelo menos algumas de suas ações. Se você quisesse mesmos saber, eu lhe diria sinceramente para que não compartilhasse seus hábitos. Isso não o faz mais ou menos orgulhoso. É fundamental impor um tipo de restrição que seja individual, indivisível e totalmente pessoal. Faça com que seus hábitos sejam seus e desconsidere a natureza teoricamente boa ou ruim deles. Hábitos são apenas hábitos e é preciso alimentá-los de quando em quando. Só nunca alimente monstruosidades que poderão lhe consumir e consumir ainda as pessoas que ama. Acaso comece a agir dessa forma, eu peço para que recue. É importante ser singular e saber o que quer fazer, mas é igualmente fundamental ter a noção de que não deve destruir ninguém no processo. Nem todo impulso de batalha é desnecessário, mas impelir-se destrutivamente é algo atroz e estúpido, na maioria das vezes. Nunca penso em machucar os outros e é por tal que às vezes sou eu que acabo machucado. Minha mente é muito humana e por isso meus atos todos falham em ser exatos, mas não me deixo levar por questões levianas e muito menos sou daqueles que ignoram os fatos. Vejo os defeitos meus e os alheios. Sorrio. É só um hábito chato que aprendi com a empatia que cresceu independente em mim. Houve um tempo em que cada palavra que nascia, em seguida, morria inerte na boca. Tantas vezes deixei de agir por considerar minhas atitudes toscas. O que é que sou quando não tento ser mais do que desejo ser?

     Sou nada e sou tudo. Alguém capaz dos melhores discursos, mas das maiores inconveniências. Sou aquele que pode chocar com um impulso direto e áspero de genialidade, só para, em seguida, surpreender com a minha asnice. Sou ainda capaz de improvisar rimas e recitar poemas longos, porém, vejo-me falhando quando pretendo sair de uma pilha de escombros qual eu mesmo me enterrei. Soterrado, eu penso em tudo e minha sensibilidade se estica e abrange todo o universo. Enfiado em um buraco, eu ofendo quem precisa ser ofendido. Depois sofro as dores de todos e sorrio o riso de todos. Entro em exaustão depois de vislumbrar o sublime. Busco o silêncio profícuo, pois sei que eventualmente este vazio é o que vai me transportar de volta ao meu corpo. Às vezes passo os dias conversando e matracando. Não sei quanta gente sente a minha verdadeira falta ou quanta gente se aproxima de mim por interesse, até notarem, enfim, que não há porque suster o interesse em alguém desinteressante. Refuto quem se aproxima rápido demais. Sou arisco, embora meu coração seja uma lareira quente, sempre pronta para abrigar aquilo que apelidam de desconhecido. Reconheço nos outros eu mesmo quando saio por aí vagando a esmo. Sempre que ouço, eu presto atenção. Sempre. Essa é a sina de artista que faz com que a minha mente e meu coração sejam apenas uma coisa. O meu lado racional se emociona no derramamento estúpido da minha essência imbecil. O meu lado emocional racionaliza a minha capacidade de sentir. Sou grato, mas às vezes acabo reclamando dessa gente cheia de contradição. Minha memória absorve os impactos sofridos ao longo dos dias, semanas e meses, mas aguenta tinta este coração. Na pele carrego as cicatrizes como uma espécie de estampa dos últimos reveses, mas não há quem se reveze comigo no sentir. Há dias que alegro tudo e há outros em que me sinto esvair. Consegue segurar alguém que vaga rápido assim? Eu apareço e desapareço, mas ninguém chega realmente perto de mim. 

     Permaneço enquanto posso, porém, cônscio de que logo chega a hora de mudar. Ando e desando, olho para os animais e para as flores e para as mulheres. Espero que alguém me olhe de volta, mas a superficialidade dos outros segue meramente ilustrativa. Mergulho fundo. Nada me tange realmente, assim, não sou obrigado a me permitir mais do que permito. Tenho sido simpático pelas manhãs e pelas noites, mas eu quase sempre sou insuportável nas tardes. Às vezes temo gastar meus melhores sorrisos para estranhos e perder o momento em que a mulher da minha vida aparecerá. Talvez seja, de qualquer forma, alguém com mais forma do que eu. Alguém com uma fé inabalável em Deus ou uma presença apoteótica ou uma arrogância inalcançável. Talvez eu me permita mesmo saber o gosto de suas bocas. Talvez rasguem papéis, mordam canudos e te olhem nos olhos como se você realmente importasse. É possível que seja real, mas você sabe que se quisesse inventaria. Talvez digam que você parece Lúcifer do seriado. Talvez mintam. Talvez falem o que querem dizer ou talvez ainda digam coisas que acham que você deseja ouvir. Você poderia inventá-las? Este hábito é só seu. Tenho o hábito de olhas para trás antes de seguir em frente, pois gosto de checar se o meu passado e meu futuro soam duradouros. Rio da inutilidade da tentativa de ser útil em mim. É meu maior hábito tentar transformar tudo em ouro. É melhor cessar meus devaneios solitários, findar minhas bobeiras. Tudo tem um rosto solidário, aprazível com essa noite de sexta-feira. Tento enriquecer inutilmente utilidades que poderiam me vestir bem. Eu sigo bem quando estou com todo o mundo, mas sigo melhor quando estou sem ninguém. 

Os sonhadores acordados são perigosos
Os acordados perigosos são todos sonhadores
(...)
Ouvi diversos e enraivecidos rumores
Espalhados apenas por questão de vaidade
Desdenharam das finalmente esquecidas dores
Zombaram outra vez de quem acredita na verdade
(...)
"O que ganham fazendo o errado?"
"É que às vezes nós sentimos muitas saudades"
"Por que jogam com dados viciados?"
"Porque é o único jogo na cidade,
o único jogo na cidade..."

     

terça-feira, 14 de maio de 2019

Prelúdio de Assalto - No apartamento

        O corpo de Miguel estava inerte no sofá e sua respiração era tão lenta que era quase impossível dizer se estava vivo ou morto. O cinzeiro estava cheio de bitucas de cigarro e o piso acarpetado também. Mu acreditou que apenas a sorte do desgraçado havia impedido com que o apartamento queimasse, pois o parceiro sempre se drogava e perdia a noção das coisas quando estava frustrado. Tendo por base o cheiro de bebidas baratas e prostitutas, Miguel havia estado bastante decepcionado. Juca estava sentado com a coluna completamente torta. A boca aberta liberava um ar fétido e Mu teve vontade de arrebentar a boca do idiota com socos. 
        - Escutem aqui, seus merdas! Nós não somos sócios? Que diabos vocês estão fazendo nesse apartamento de merda? Não me recordo bem, mas parece o cheiro do rabo da sua mãe, Juca. O outro retardado está vivo?! 
        - Ele fodeu tudo outra vez, cara. É sempre assim... - Comentou Juca sem qualquer emoção na fala. - Você nos botou nessa, Ferraz. Agora estamos fodidos assim... - O único homem sóbrio no quarto desferiu um soco violento em Juca. 
        - Vou te relembrar das regras, seu drogado de merda. Nunca me chame de Murilo ou de Ferraz. Vocês, palermas, possuem o péssimo hábito de serem uns fracassados do caralho, mas não me envolvam nas suas burrices. - Disse com a face transformada em um esgar odioso. 
        - Tanto faz, cara. Tanto faz... - Seu tom era exageradamente despreocupado e tranquilo. Agia como se nem tivesse sido atingido. - Ele desobedeceu seu plano. - Indicou com a cabeça. - Por que não o soca também? - Mu sentiu a raiva crescer. Talvez fosse melhor mesmo se livrar de idiotas como aqueles, mas não tinha associados competentes para o próximo assalto. Miguel e Juca não eram tão ruins, porém, eram especialmente fracos com as drogas. O primeiro era viciado em cocaína e Juca usava de tudo um pouco, mas estava conseguindo se controlar nos últimos meses. A fúria de Murilo era grande. Não perdoaria a incompetência. 
        - Quanto tempo até que o Miguel deixe esse estado vegetativo? - Perguntou ligeiramente irritado. - Quanto tempo até que você possa ser útil? - Juca ergueu calmamente os olhos e os susteve com tranquilidade na direção de Mu. Não havia raiva e nem incômodo. 
        - Eu só preciso de um banho, cara. Aquele ali acho que não sai do lugar. Talvez um chute na barriga ajude, entende? Acorda com um sustinho básico e vomita o que precisar, mas aí a gente levanta e vai. Se você achar mesmo que a gente precisa dele... 
        - Você sabe como são os meus alvos, Juca. Precisamos de três e eu não conheço mais ninguém apto. 
        - Tá de sacanagem comigo, chefe? Olha, cara, numa boa, minha mãe aleijada é mais útil que esse fodido. Eu conheço um cara que pode ajudar a gente. O apelido dele é Aborto e você imagina a razão. O maluco nasceu do avesso. É mais feio que enrabar a irmã no natal, saca? Tão feio que ele assusta as pessoas com a cara dele mais do que aquelas suas máscaras de esquiador. - Mu odiava contar com o apoio de desconhecidos, mas deteve o olhar minuciosamente em Miguel. Ainda não sabia se o sujeito estava vivo ou morto.
        - Ligue para esse filho da puta. Pouco me interessa se ele é bonito ou feio. Precisamos de mais um. - Disse e seguiu para o banheiro. Gritou antes de empurrar a porta com violência. - Você toma banho depois que eu mijar. 
        - Cuidado com o cavalo de Troia, cara. -  Disse e pegou seu telefone para discar o número de Aborto. A chamada estava em espera. Juca era preguiçoso, mas não incompetente. Sabia desde o dia anterior que Miguel jamais conseguiria e ele mesmo havia antecipado a grande oportunidade para o colega de infância apelidado de Aborto. Mu já estava mijando quando viu e sentiu a podridão da maior cagada de toda sua vida. 
        - PORRA! - Berrou furioso, mas continuou a mijar em cima dos monstruosos pedaços de merda. Eram tão grandes que cobriam a água. - CARALHO! DE QUE CU ARROMBADO SAIU ISSO? VAI SE FUDER, FILHO DA PUTA. 
        - Cara, eu estou no telefone com o Aborto. Se você tá tão pistola é a hora de colocar o Miguelito pra desentupir essa porcaria. Eu vou tomar meu banho prendendo a respiração. - Parou de falar com Mu por um instante. - Alô? Fala, meu bem abortado. Como é que está essa minha placenta? 
        - Puta que me pariu. - Resmungou antes de decidir que era melhor se calar, pois o cheiro horrível estava agora em sua língua e em suas narinas. Fechou a tampa e saiu sem lavar as mãos. Olhou com um ódio crescente para Miguel que seguia deitado. Mu ainda não sabia dizer se ele estava dormindo ou morto, porém, já não interessava. - Melhor que esteja morto, arrombado filho da puta. 
        - Certo, cara. É isso. Mu é o melhor do ramo, nunca errou. Vamos ganhar um cash alto, coisa supimpa mesmo, saca? Depois você pode fechar a zona e passar suas DST's para quantas putas quiser. Se quiser comer cu de macho também não é da minha conta, Aborto, só não me enfia no meio desses seus rolos. Sabe que eu ainda quero me casar na igreja? - Mu esperava agora com mais paciência do que antes. Juca deu um esboço de sorriso pela primeira vez. - Você é um filhinho de uma putinha, cara. Eu ainda vou casar na igreja com uma mina firmeza, saca? Uma que tenha todos os dentes na boca e que vai parir o Juquinha. A gente não precisa ter essa vida de fodido, precisa? 
        - Não. - Sussurrou Mu com pensamentos irritadiços e distantes. Recordou-se da vida boa que tinha antes de mergulhar nos crimes, mas jamais voltaria. Os grandes assaltos eram uma espécie de talento natural. Se sou bom nesse ofício, eu preciso continuar, certo? Eu dou sentido para o emprego dos policiais filhos da puta. 
        - Que se foda, seu abortado. O Juquinha vai ter uma boa vida, cara. Vai estudar em colégio grão fino e vai fazer três refeições por dia. Vai até comer pão com... - Pensou e olhou para Mu. - Como chama aquele doce lá que todo mundo gosta? Aquele marrom.
        - Nutella. 
        - Isso. Vai até comer pão com nutella nos domingos, sacou? Isso eu garanto, cara. Chega desse papo. Ainda não tenho a morena então vamo ao que interessa. Vamos passar aí. - Tapou o fone e olhou para Mu. - Que horas vamos lá? 
        - Passamos em meia hora. Ele não precisa de nada. Estou com as armas, as máscaras e o plano. 
        - Meia hora, cu sujo. Passamos aí em meia hora. Não se atrase. Meu patrão preza pela excelência e não quero que ele tenha a sensação de que eu troquei um ladrão de merda por outro. Ok. Até já. 
        - Eu te espero lá no carro. Nove minutos, no máximo. Você tem certeza que esse Aborto é alguém em quem podemos confiar?
        - Relaxa, cara. O maluco estudou comigo na quarta-série. É mais burro que uma porta com os números, mas assalta desde os doze anos. Nunca foi pego pelos homem, tá ligado? Conheço a peça. Se o seu plano...        
        - Você sabe que eu não falho. - Cortou com aspereza. - Seis minutos. Mu deu mais uma olhada para Miguel ainda imóvel no sofá. - Se esse merda não morreu ainda, eu quero que você me lembre de matarmos ele na volta. Arrombado viciado de merda. Já não bastasse atrapalhar quase sempre, ainda entope a privada... - Resmungou e bateu a porta ao sair apressado rumo ao carro. Juca sorriu genuinamente e esfregou as mãos andando vagarosamente até o banheiro. 
        - Nunca falhou até hoje, burguês filho da puta. - Chegou perto de Miguel e o analisou. - Seu merda. Nunca entendi sua lealdade por esse porra do Ferraz. Viadinho chupador de cacete. - Disse e cuspiu no homem deitado. - Deu conta de se arrebentar sozinho, mas depois disso foi fácil te tornar completamente incapaz. Vou sair pra esse roubo, mas não volto. Boa morte, cara. Minhas últimas palavras pra você? Sua lealdade te ferrou, seu arrombado. Parabéns por ter nascido como gente e morrido como uma anta. A gente se vê no inferno. - Cuspiu de novo e seguiu para o banheiro lavar apenas os sovacos e o pau. Era da opinião que deveria estar cheirosinho quando encontrasse aquela que seria a mãe do Juquinha. 

120 dias ou algo assim...

Notei nos olhos dela
um brilhantismo esquecido

Esqueci-me então
do que em mim estava dolorido 
Dancei com os meus lábios
Um meio sorriso dado, pois
Eu nunca fui capaz de bailar 
Ao menos eu aprendi a beber
Saiba que beberia até o nascer
do sol ao te beijar
Abracei-a forte como se
não admitisse perde-la
Atirei uma pedra como se
pudesse derrubar uma estrela
Só para que ela se tornasse cadente
De repente o que se sente supera a razão
E ninguém entende os assuntos do coração
Se a estrela caísse eu então pediria 
Seu gosto, seu som, seus risos 
Na manhã de cada novo dia 
O rumo certo para um homem perdido
Então por que não
fica exatamente onde está?
Tenho duas garrafas de vinho
Podemos dormir aqui no sofá 
Embriagado por ilusões insensatas
Alegro-me com distâncias que me matam, pois
ainda não são impossíveis de serem alcançadas
Então eu corro, morro, retorno, 
Morno, esfrio, esquento, morro,
De novo retorno, reformo, percorro
Estradas que fazem algum sentido
Quero mesmo que você saiba
Ainda que tudo soe parecido 
Te tenho em estima alta
Eu sei que é brega, mas 
sou feliz por ter te conhecido 
Ontem mesmo senti sua falta...

Café e chuva na Paris do meu coração


     Anteontem choveu longamente na cidade qual moro. O resultado foi catastrófico. Tudo o que se vislumbrava, principalmente das ruas próximas ao extenso córrego, estava alagado. A água pode ser cruel, ainda que seja invariavelmente mais suave que o fogo. Os noticiários da televisão anunciavam prejuízos severos para a prefeitura municipal. Um homem exageradamente gordo, repleto de dobras e dono de um bigode espesso e grisalho, comunicou que o prefeito havia tomado medidas com caráter de urgência, pois sabia a necessidade de agir com rapidez. Observei o desenrolar da grande confusão e não pude deixar de rir, pois o funcionário do prefeito, instruído, simplesmente era proibido de atuar de outro jeito. Suas palavras haviam sido cuidadosamente escolhidas por terceiros. O fato era que todos estavam deixando a água rolar, o que suponho que não seja muito recomendável nos casos de enchentes. Por que deixar a água rolar quando ainda há maneiras de agir? Por que assistir estático quando pode fazer a diferença e interferir? A chuva continua hoje, mas os amantes das tempestades logo se decepcionarão. Eles ainda não sabem que no dia seguinte o sol enxotará as nuvens e brilhará esplêndido como no ápice do verão. O céu parece zangado e carregado, mas eu me tranco no porão. Não vai chover, exceto nas cidades repletas de excentricidades tão ricamente adornadas em meu coração.

     Acordei em minha cama no começo da tarde de ontem. Tive dois sonhos sexuais e suponho que tenha os sonhado por não ter feito sexo recentemente. O primeiro sexo soou adequado e o segundo foi excelente, mas as companheiras agora esquecidas, eram, de alguma forma indizível, apenas estranhas que não deveriam estar onde estavam. Ainda assim gostaria de lembrar dos rostos assim como jurei me recordar de seus gostos, antes que o paladar se perdesse no mundo de fora. Sonhos lúcidos de melhores horas! Levantei-me e tentei adivinhar o dia sem sair da escuridão. Claridade exagerada, pensei. O sol ardia forte fora da casa, mas ainda chovia dentro de mim. Olhe... Veja, eu jurava que tinha fechado todas as janelas, mas a sala está molhada. Eu tive a impressão errada de que ontem era um daqueles dias quais suamos ainda que estejamos parados. Será que a confusão se deu por ter me afogado? Agradeci quando o vento gelado invadiu a casa, mas resmunguei em desconforto por pisar com os pés quentes no chão frio. O choque é o que nos desperta e mantém alerta. Sigo a vida com boas e novas lembranças, mas é estranho me lembrar de tudo o que houve. Há arrependimentos, porém, eu sinto realmente tudo o que fiz. Estremeço. Será que imaginei aquelas ruas antigas? Será que aquelas paisagens espetaculares foram inventadas ou jazem esquecidas? Será que modelo a minha raiva, meu desespero, meu medo e saboto o meu jeito de ser feliz? Será que há alguém verdadeiramente lúcido que saiba o que diz? A luz solar esquenta tudo lá fora. Desafio-a sendo a invernia. Abro os olhos e observo o giro de alguns discos de vinis. Ainda estou escorado em um balcão aguardando o meu macchiato depois de ter tomado dois cafés italianos em uma tarde chuvosa em Paris.

     Enfim, o novo dia, tão inevitável quanto singular. O frio retornou. É melhor aproveitá-lo. Tudo se parece e nada se repete. É melhor aproveitá-lo. Vi em uma rua aqui perto de casa mendigos embriagados lutando pela guarda de um cachorro, mas não estou falando sobre batalhas em tribunais. Eles gritavam furiosamente. Dedos em riste, testas enrugadas, cuspideiras embutidas nas falas. Saio de perto, mas não sem antes sentir pena do cachorro. É melhor sentir algo. Faz um frio do caralho, mas eles não se importam. O clima é apenas uma minúscula rusga no meio de um mundo impreciso de detalhes sórdidos. Desço a escadaria após ter visitado a basílica de Sacré Coeur. Os vendedores idiotas chegam empurrando chaveiros e pedindo dez euros, mas empurro suas mãos com a mesma agressividade com que eles me empurram quinquilharias. Fitam-me com raiva e me xingam em francês. Eu bem que gostaria de saber como xingá-los em francês, mas só teço elogios em meu próprio idioma sobre as mães deles. Caminho sem parar e passeio pela Champs-Élysées, mas como estou ali sem estar ali, ela não me parece muito diferente da rua dos ricos que visitei em São Paulo. O desinteresse me choca. A minha sonolência em mim me assusta. As mulheres da cidade das luzes são bonitas, mas nesta visita não captam minha atenção. Volto para o hostel diretamente para o meu quarto. Agora novamente estou fora dos lugares que me trazem incômodo. Ausento-me e volto em um ou dez anos. Vou ao nordeste do Brasil, antes de seguir para os Estados Unidos. De lá sigo (de volta) para a Europa e não consigo pegar um avião para o Japão. Sinto uma raiva crescente no meu peito. Está ainda longe de mim este país que eu tanto aproveitaria. Lembro-me de que meu pai prometeu as passagens da lua de mel para o Japão, mas não há companheira e pela primeira vez não me deixo levar pelo desespero. Tudo bem, eu não tenho mais medo. Dane-se a lua e o mel. A minha prolongada ausência seguiu e não houve quem me procurasse. Puerilmente achei que estampariam meu rosto no jornal, mas o mundo seguiu exatamente igual. Neste momento tive a minha epifania e finalmente entendi. Eu quero mais é que os oportunistas e pessimistas e intrometidos se fodam. Sigam suas vidas. Como ainda é gratuito, por favor, não encham o meu saco. Peço ainda para que não tentem me alcançar, pois saí para jantar. Finalizo minha refeição sozinho e saio a esmo na cidade das luzes. Nas ruas certas sempre há iluminação. Ouço as batidas do meu coração. Ninguém nota este homem. Ninguém nota a camiseta com a grande ilustração de um demônio de fogo chamdo Cálcifer. Acreditam que a minha tatuagem solar é um símbolo maia da fertilidade. Não sei o que faço comigo, mas queria sacudi-los (às vezes). A conclusão é que a liberdade não traz necessariamente a felicidade, ainda que me permita fazer o que sempre quis. Fechei meu guarda-chuva e adentrei outra cafeteria numa noite nublada em Paris. Sentei-me solitário e esperei a minha bebida quente. Um gole de café é o que preciso para seguir em frente. Esqueci-me de como me apaixonar, mas fito a elegante porta de madeira com a ansiedade de um menino. Quem sabe aqui ou num bar lotado, na (no) Paraíba ou em Volgogrado, no trânsito fodido ou num flerte mal flertado, entre, enfim, alguém que mude o meu destino?

     O problema é que a maioria sabe o que procura. Sou vasto, mas não tenho tantas posses. Confesso hoje não segurar muito em minhas mãos. Se você quiser correr o risco e entrar, prometo que a única coisa que não vai faltar são as xícaras de cafés quentes nos dias de chuva, sejam eles de riso ou de tensão. Talvez você escolha ficar, pois é confortável este lar qual chamei de Paris do meu coração. As noites são excessivamente longas. Os sonhos são desnecessariamente interrompidos quando o corpo termina de descansar. É difícil, mas é assim que as coisas são. Até que mude as gotas d’água e a cafeína são minhas únicas companheiras neste antro de solidão. 

terça-feira, 7 de maio de 2019

Receita

     Ouvi dizer que a felicidade era uma receita pronta. Bastaria que existisse dinheiro sobrando na conta. Ri do que supus ser presunção, mas sou eu o tolo de me preocupar tanto com a sensibilidade quanto com a razão? O tempo segue e eu não consigo deixar de me preocupar. Arrogantemente faço uma ideia virar certeza. Transformo-a em convicção. Agora sei que estou no caminho certo. Sei que os meus sonhos estão mais perto. Sei que este é o tempo perfeito para que eu viva a minha vida. Tenho uma fé grande em alguma grande coisa, mas não sei lhe dar nome. Geralmente converso com o Criador, mas as respostas não chegam como eu espero ou desejo. Tenho uma fé grande, mas não sei se Nele ou em mim. Não sei, enfim, se somos partes tão diferentes da mesma coisa ou partes iguais de coisas diferentes. Somos arquitetos, certo? Todos. 

     Tenho visto a vida em mim e nos outros. Somos avessos e ainda assim parecidos. Planejamos os passos seguintes, como se fosse possível. Temos a ilusão do controle, mas olhamos para trás e notamos que a vida passou rapidamente. Os dias, meses e anos voaram. Há coisas que perdemos e não há como recuperá-las. Amigos que se foram e nunca voltaram. Antes de ontem era natal, ontem páscoa e hoje maio. Ontem a mãe não admitia a gata em casa e hoje assiste a novela da noite lado a lado com a Nami. Os irmãos que assistiam animes juntos quando novos na sala estão em outra sala vivendo outras vidas e assistindo outras coisas. Rimos outros risos, discorremos sobre assuntos mais sérios e outros ainda mais bobos. Estou orgulhoso. Eu mesmo na infância odiei futebol e posteriormente reconheci no mesmo esporte o meu primeiro amor. O cão segue bem. Perfeitamente igual sempre, ele corre atrás dos seus brinquedos e faz o que sabe fazer: brinca, late e ama. Ainda bem que algumas coisas permanecem no lugar. Matamos algumas saudades, mas sabemos que ainda falta um específico abraço. Às vezes puerilmente impelimos o corpo à frente como se a pele fosse feita de aço. Viver machuca. Esquecemos do que importa e deixamos de ver com clareza. Forçamos para que morra a criança interna e insistimos que é impossível viver com leveza. Será? Não creio. Após a descrença bate na porta a velha hesitação. Frequentemente falho. Sou soporífero na minha vez de montar guarda e cochilo nos momentos importantes. Fui surpreendido por um brilho solar em uma noite de carnaval e só queria ser capaz de dizer o que pensei ou pensar no que imaginei que disse. Tive medo de queimar minha mão, mas é o conselho da mão queimada que chega ao coração. Não deveria ter hesitado, certo? Não deveria valorizar quem acelera o tempo para fugir de mim. Não deveria menosprezar quem atrasa o relógio para passar mais tempo comigo. A hora não passa e eu conto os minutos para os finais de semana. Pelas novas manhãs, eu não tenho enrolado para sair da cama. Só vale a pena viver quando debruçado sobre as coisas que ama. Você ama sua vida ou vive para ser perfeito? Você é feliz assim ou força a felicidade de outro jeito?

     Eu costumava pensar que só seria feliz ao lado de alguém que pudesse ser legal comigo e que suprisse minha carência nos dias mais sombrios. Eu costumava pensar que nunca em minha vida eu seria capaz de ler mais que vinte livros. Também me enganei quando pensei que não poderia escrevê-los. Tentei imaginar um futuro pra mim, mas fui descobrindo minhas vontades e desbravando meu caminho à fórceps. Tive que me impor e lutar pelas minhas vontades. Eu me formei no curso errado e pensei que fosse a pessoa mais estúpida do universo, mas eu desconsiderei o quanto a experiência havia me lapidado. Eu melhorei. Passei a observar o mundo com meus melhores olhos, ainda que eles nunca tenham superado a miopia. Posso compreender o ódio. Já o senti. Posso compreender a tristeza. Certa época eu era a personificação da melancolia. Posso narrar a alegria. Sorri com a essência de minha alma para dezenas de desconhecidos em diversos aeroportos. A inveja não posso compreender. Nunca quis coisa que fosse dos outros e nem ser outro. Saber valorizar a vida que leva é um dos segredos que compõe o segredo maior. Às vezes acelero a vida e perco o que poderia ganhar, pois a pressa é inimiga da melhor visão. Quando a gente vive o dia atual com a lembrança de que este dia é especial e jamais se repetirá, bom, então o vivemos em plenitude. As árvores são mais verdes, os animais mais incríveis e até as refeições são mais saborosas.  Os sorrisos são mais largos, os abraços são mais longos e as brigas são mais curtas. Aproveitando como pode, você não deseja mais do que o que já acontece. E se você pudesse mesmo mudar algo na sua essência ou alterar algo que realmente fizesse a diferença?

     A novidade é que você pode. Tudo é a respeito da nossa jornada e sobre o quanto somos decididos sobre nós mesmos. Você pode se manter como está ou mudar e a mágica na simplicidade deste fato é que você pode fazer isso quando quiser. Eu escrevo livros e isso não me envergonha, embora muitos subestimem minha capacidade e superestimem a possibilidade de que eu passe fome futuramente. Punge-me apenas o fato de que ainda não fui analisado, mas é mais do que necessário ter esperança. Ainda chega a minha vez. Enquanto isso faço outras coisas também e tento ser prático e criativo e profissional, mas deveria mudar toda a minha vida apenas para me encaixar no que uma imensa quantidade de gente infeliz considera ideal? É claro que não! Deveria escutar música baixa e tentar aquietar meus instintos de dragão? Não! Deveria esconder os defeitos que me tornam mais humano? Não! Deveria esconder os enganos se foram justamente eles que me fizeram crescer? Não. Ultimamente você pensa mais que os grandes filósofos e faz mais cálculos que Pitágoras. Nas noites mais intensas seus dilemas são profundos e você se preocupa com o futuro da humanidade. Às vezes é mais sensível que todos, às vezes é mais insensato. Às vezes baseia sua vida em imaginação e às vezes prefere os fatos. Qual é a grande maldade em admitir que somos inconstantes e oscilamos? Qual é a dificuldade em reconhecer que há enganos? A felicidade está ao nosso alcance, por incrível que pareça. É possível tocá-la, senti-la, vê-la, se há um esforço razoável. Você, enfim, nota. Não precisa de minha ajuda para reconhecer que você apenas se limita ao que se sujeita. Nós todos temos mudado tanto e vivemos tão bem esses últimos anos que é fundamental ignorar a tal receita. Não escute o que todos falam. É preciso sentir para viver e também viver para sentir. Cada um descobre sozinho um jeito pessoal e exclusivo de ser realmente feliz. 

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Metáfora

     Muito bem, vou começar. Não, na verdade, nada bem aqui. Nada bem comigo. Como eu poderia falar dela e me sentir bem? Parece piada que eu tenha dito algo assim, mas vou tentar organizar as ideias na minha cabeça antes que elas pareçam mais ridículas do que em qualquer outra cabeça ou lugar. Esqueça isso também. É preciso me expor completamente e ser ridículo é só uma condição básica para o que acontecer a seguir se tornar crível, portanto, para que minhas palavras tenham a mínima credibilidade, eu vou dizê-las em voz alta diante do espelho. Prometi a metáfora, muito bem, mas não é como se eu fosse capaz de metaforizar alguém como ela. Alguém que sabe sorrir com os olhos e abrilhantar uma noite escura com apenas um sorriso. Sei, sei bem o quanto isso é brega, mas o que perco que já não perdi antes? Embaralho-me em mim. Juro que meus próprios pensamentos voam em círculos contrários e se chocam e se misturam e se confundem... Eu não sei o que acontece depois. Eu sei que algumas mulheres já roubaram a minha voz quando pretendi dizer algo agradável ou suficientemente inteligente. Meus pensamentos, de repente, eram mais vagos do que uma folha de papel inteiramente em branco. O que ocorre, porém, é que com ela, as palavras nunca me fugiram. Elas bailavam na minha frente como se eu estivesse dentro de um mundo perfeito. Entende? É claro que não. Como alguém entenderia?

      Vou supor que ela nunca leia este rascunho e me certificar, ao menos, mentalmente, que ela nunca escute isso quando eu falar. Engraçado que eu a vi apenas uma vez e foi quase uma década antes, mas não era como se eu me lembrasse. Será que foi desatenção minha ou será que a vi somente em sonhos e inventei tudo isso? Quando criança vivia absorto em mim, preocupado apenas com minhas fantasias. O tempo passou, mas eu não passei. Quando mulheres assim, olhavam-me, bem, eu corava e desviava os olhos. O irônico é que me tornei hoje alguém capaz de suster o olhar de volta e coincidentemente nos reconhecemos tantos anos depois. Naquele dia eu já havia concluído que ela era absolutamente incrível e sua presença era calorosa e expansiva, ao que, qualquer pessoa gelada, seja por analogia ou por nascença, pode presumir e antecipar o degelo das próprias emoções. Sei que neste instante soo absolutamente imbecil, mas é impossível fazer isso e transmitir a mensagem sendo racional. Eu nunca perdi meus pensamentos na presença dela e meu coração, por incrível que pareça, torna-se cada vez mais e mais feliz conforme nos encontramos. É como se a cada novo encontro, eu pudesse captar um novo detalhe. Guardo esse romantismo infantil para os tempos em que se fizer necessário em minha velhice senil, mas, por favor, digo a mim, nunca se esqueça de nunca dizer isso a ela. Você sabe que ela merece ouvir algo que nunca disseram, mas seria como tentar acariciar um gato de rua. Os felinos são, por natureza, fugidios e ariscos. É preciso saber como manter alguém como ela por perto. Eu que sou bastante tolo e inadequado nas minhas adequações, eu me aproximo dela só quando minha mente termina de formular complexas equações. Como não afastá-la? Ainda assim não há matemática que baste, mas isso deveria me impedir de tentar? As estrelas são, por natureza, inalcançáveis, mas será que ela vai rir se eu disser que a gente precisa lutar pelo que sente? Seria vexatório tentar derrubar uma estrela com uma pedra apenas para torná-la cadente? Desta forma garantiria meu pedido...

      Onde é que eu estava com a cabeça quando confessei
que você era como uma metáfora aos meus sentidos?

      O carnaval te vestiu bem. Não. Você vestiu bem o carnaval. Dentre todas aquelas pessoas, você parecia ser a única especial. Certamente brilhava de um jeito diferente. Cintilava de um jeito que fazia com que meus olhos não conseguissem permanecer completamente abertos. Você era o carnaval e o carnaval só era o que era por sua causa. Isso. Isso se aproxima um pouco do que eu gostaria de falar. Você realmente estava no carnaval naquela noite de lua? Talvez eu tenha apenas imaginado, mas me recordo do que preciso. Apoteose solar no tempo-espaço do seu sorriso. Eu me senti afundar em um oceano que sequer existia. Quais mistérios será que residem em seus beijos? Quais são as chances de que sumam de mim, sem que eu os mate, esses tantos desejos? E se eu te dissesse que diante da sua presença à época, ninguém se importaria com a fuga de Helena para Troia? E se eu dissesse que heróis e vilões não notaram a mais brilhante das joias? E se eu dissesse que o mestre Oscar Wilde se engana? E se eu dissesse que ele errou quando disse que a gente sempre destrói o que mais ama? E se eu forçasse o inglês nas minhas palavras e nós brincássemos de seek and hide? E se still in english fôssemos news Bonnie & Clyde? Tudo bem, não vou exagerar, não vou falar sobre Romeu ou Julieta, mas presumo que toda lagarta que a veja voar, em seguida, deseja logo se tornar uma incrível borboleta. Seria bom poder te acompanhar no seu mundo, voar junto, ainda que só de vez em quando. Duvido que... Não sei ainda se me faço entendido. Você entenderia se eu dissesse novamente que você é como o sol? Entenderia se dissesse que você seria minha Sophie se eu fosse o mago Howl? Vou tentar, enfim, pela última vez. Eis a situação... Você percorreu atalhos até o meu coração. Sempre que eu a vejo, indago se sou eu o meu próprio algoz. Poeta que perde a rima pelo desejo; homem falante que perde a voz. Noutra noite de carnaval me cedeu brilho, pois o sol não se preocupa em se dividir. Como um trem desgovernado descarrilho toda vez que a observo sorrir. Você é mais vasta que a imensidão do céu azul. Dona de si sempre se basta: it's all about you. Perdi a metáfora e a fala... Perdi meu rumo e tudo o que almejo. Quando a loucura sobe, a boca cala. Lamento que nunca com o gosto do seu beijo. Sei que novamente esmurro pontas de facas, mas o que posso fazer? É melhor ser ridículo e falar do que dormir sem ter dito o que pensei em dizer. L'amour est un chien du diable, mais c'est mieux être mordu! Acho que concordo com o trecho acima referido. O amor é um cão dos diabos, mas eu prefiro ser mordido. 

      Essa foi a loucura mais brega que eu já disse na minha vida,
Você me pediu a sua metáfora. Espero que não esteja arrependida. 

      
      Novamente surto. Sussurro que amo vultos, embora saiba que são apenas sombras pálidas de coisas inexistentes. Amo, na verdade, a palidez da alma de quem não tenta ser mais do que sente. Amo ainda que meu amor seja criação de minha própria mente. É duro vagar solitário em mundo que se faz quase sempre indiferente.