quinta-feira, 29 de agosto de 2019

O problema comigo

     Bom, eu sei que o tempo passa e alguma hora tudo muda... Mas o que é que há de errado comigo? Por que é que me soam tão errados todos os domingos? Sabe bem o que eu tenho imaginado? Acordar cedo no domingo e andar pelo apartamento sozinho. Neste cenário é como era em Dourados. Absurdamente silencioso. Estranhamente rural ou qualquer coisa selvagem. Ando pelo apartamento, faço o meu café e preparo ovos mexidos. Sento no sofá para comer os ovos e tomar o café. Lá vou eu na manhã de domingo. Talvez uma mulher bem intencionada apareça atrás de mim alegando sentir a minha falta. Não. Ninguém bem intencionado diria isso. Meu corpo retesa por um momento e meu instinto é violento, mas toda a paisagem que me cerca é da mais absoluta paz. Qual é o problema comigo? O que é que se faz? Fui tão rápido para frente que eu mesmo fiquei para trás? 

     36, 42, 31.03.1992. Algo importante aconteceu em julho. Alguém importante morreu em maio. Alguma parte minha fica e eu continuo. Lá vou eu de novo. Olha lá longe! Veja-me bem mais uma vez! 17, 15, 10... Dê-me um feriado. Suma com os números. Mal conheço aquela voz, mas tenho sonhado com o rosto. Algo grande acontecerá nos últimos dias de agosto?

     O vento é gelado, mas não estou usando casaco. Desafio o frio. Se eu ficar doente é bom para que eu aprenda. Se eu não ficar doente é bom para que o vento veja que é preciso ser mais gelado para esfriar alguém que já se sente frio. Penso nas pessoas que estão longe e voltarão. Penso nas pessoas que estão longe e não voltarão. Penso ainda em animais que possuem um valor presencial superior ao de tantas pessoas. Foco-me nas pessoas e as vejo com uma nitidez absoluta. Olho seus defeitos, qualidades e posso até dizer o que as torna especiais. Fecho meus olhos por um instante, mas preciso abri-los. Passo tantas horas por dia trabalhando, olhando para a tela dos computadores, fazendo ligações, montando a folha de pagamento, analisando documentos e fazendo operações financeiras. Ah! Benditas sejam as operações financeiras. Como me agradam! São meticulosas e exigem minha atenção total. São esses números malditos e abençoados que me acompanham o dia todo. Estão tão presentes que graças aos bons deuses, eles aparecem inoportunamente e afastam tudo por algum tempo. Substituem a felicidade, mas também a dor. Todos os números me são estranhamente mágicos aqui. Distraem-me das novidades terríveis que chegam de longe. Uma tempestade se anuncia e sinto gosto de morte. Garoa lá fora e logo a noite se antecipa. Não quero testar minha sorte, mas um pernilongo me pica. Um marimbondo tenta beber o meu energético. Zanza no ar e tenta manobras arriscadas. Admiro-o. Beber energético vale o risco de morrer. Por qual motivo eu morreria? Desistência por conta da dor latente? Abafo o choro. Fecho os olhos. Os números me salvarão, pois não vejo mais rostos. Não tenho mais memórias. Há apenas números.  

     17, 2.332,09, 09/01/2019. O sistema caiu. Aqui ou no Brasil todo? Ein? Alô? 2.332,08. Sim. É. Refaça tudo. É novo procedimento. Exigência. Teremos que demitir. 2,35, não pode corrigir assim. Um centavo faz a diferença no sistema. Ligue. 1.221,01. Não pode viajar nessa semana. Nem na outra, mas talvez no feriado possa chegar uma hora atrasado. Ok. 1, 2, 932.000,00. Novecentos e trinta e dois mil reais. Não era esse o valor. Bem inferior, é. 1, 2, 4. É a rotina, certo? O ano todo. 

     Espero honestamente que nunca fiquem entre dinheiro e felicidade. É preciso ganhar dinheiro e crescer e qualquer um que se negue a caminhar para frente neste sentido é um idiota. É preciso ser feliz. Qualquer um que trabalhe mais de 11 horas por dia e não tenha tempo para sorrir é alienado e insatisfeito. Eu precisei voltar aqui, mas me cresce uma vontade irrefreável de partir de novo. A vida? A vida é apenas um jogo e os alheios sempre irão te perguntar... O que é que te prende aqui? Nada, eu espero. Penso na cidade de São Paulo com seus prédios enormes e ruas sujas e metrôs lotados e fumantes em cada esquina e me sinto estranhamente atraído. Uma das minhas vistas favoritas na curta passagem pela Europa era a da janela do hotel no décimo quarto andar de um Íbis em Amsterdam. Quando digo isso sempre imaginam a cidade holandesa florida e colorida, mas o que contemplava era um céu tristemente cinza, aparentando ser tão satisfeito em ser monocrômico quanto um monogâmico demonstra seu orgulho pela exclusividade no relacionamento. Estava em um andar alto, mas ao longe se destacava uma fábrica de qualquer coisa. Soprava uma fumaça branca tão linda que nem parecia poluente, como se nuvens estivessem sendo fabricadas. Queria permanecer cinza. Já se sentiu assim? A exaustão pesa no meu corpo e minha mente nunca se aquieta. Não sei me explicar, embora possa sentir. Um amigo me disse que vejo sempre a característica singular de cada um no primeiro momento e admirou-se com a minha perspicácia. Eu me rio. Talvez ele não esteja errado, mas faço questão de apenas estar por perto. Há tanta gente precisando de tanta coisa que talvez eu pudesse ajudar. Minto. Disse-me exausto e admito minha condição física. 

     Acho que cansei mesmo. Oscilação de humor, cansaço de alma, chuva que nunca chega. No peito um eco de fim de mundo. Convicto apenas de minhas dúvidas. Onde é que está isso que eu tanto procuro e nunca sei o que é? Devo me arremeter por novos caminhos e redescobrir a minha fé? Para onde é que vou? O problema comigo é nunca deixar de acreditar nessa bobagem de amor. 

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

A partida do sr. Green

     Laura fitou o título daquela espécie diferente de carta. Reconhecia que havia utilizado muitas palavras para que fosse considerada apenas uma carta comum, mas o que haveria de ser senão isso? Recordou-se com um asco sem sentido da moda das cartas métricas. Mas talvez não fosse tão sem sentido assim. Admitiu sentir raiva por nunca haver recebido uma, ainda que não gostasse de ler.  

A partida do meu sr. Green

     Riscou o que havia escrito. Leu e se consternou. Releu o título e aquilo lhe soou absurdamente infantil e afetado. Era na melhor definição que encontrou inapropriado. Reconheceu que o fato que a incomodava era que Cristopher Green nunca fora qualquer coisa seu. Talvez essa ausência de si mesmo, esse ar de isolamento que ele sempre transmitia fosse a única real razão que a havia impelido, àquela época, a se aproximar do estranho. Ocasionalmente Laura sabia o que Cris pensava e a antecipação lhe conferia certo ar poderoso. Secretamente alimentava a vontade de ser autoritária, mas poderia ser assim? Inibia-se. Se Cristopher não se resguardasse, como sempre fazia, ela talvez criasse um pretexto para gritar com ele eventualmente. Não havia sentido, mas desejava isso tanto que era quase como uma espera. Ela conseguia imaginar o distante sr. Green estupefato com um surto repentino de ódio ou de amor de sua Laura. 
     - Não. Cristopher nunca me reivindicou. Cris sequer pediu por mim. Como me vejo dele?
     
     Honestamente Laura era incapaz de supor por Cristopher. Havia pessoas fáceis de antecipar, mas Cris era tão introspectivo quanto imprevisível. Não tinha olhos ardentes em chamas e não deu pistas de que viajaria para descobrir sabe-se-lá-o-que. Ele não era espetacular. Apenas era único e reduzir Cristopher Green até um estado de incapacidade era impossível. Realmente impossível. 

A partida do sr. Green

     Agora o início da carta parecia mais adequado. Laura não tinha a real intenção de enviá-la para Cris. Tentou imaginar o que alguém como ele estaria pensando, mas jamais acertaria que o rapaz estava em uma andança, perguntando-se então se a mulher gorda que dormira em seu ombro no avião já havia se encontrado com seu objetivo na Islândia. Laura se deteve na questão de escrever ao sr. Green e não ao tão próximo Cris. Talvez Cristopher fosse dois em um. Havia aquele seu lado rapaz desobrigado de tudo e havia seu lado homem, quando olhava para um ponto distante e se calava. Ela presumira que ele sempre fugia ao contato humano desde que o conhecera, porém, refletindo com calma ela não se lembrava de uma situação fática onde seu amigo realmente tivesse fugido de qualquer coisa. Ele apenas se mantinha suficientemente distante para que ninguém conseguisse se aproximar. Quando ela deixou os receios de lado e se aproximou com um bolo de três cores, comeram juntos e compartilharam o silêncio. Laura sabia ser eloquente. Falava pelo menos três vezes mais que ele, mas ele a olhava com certo afeto e qualquer outra coisa, mesmo na primeira vez. Ele havia gostado das cores dos cabelos dela, ela podia afirmar sem ter perguntado. Nem todo mundo via com bons olhos o cabelo tingido, mas Cris demonstrava ter bons olhos para tudo. Apenas agia em seu tempo e ela o considerava devagar demais. 

     O amor é ambivalente, Laura dizia a si mesma. Era aquele amor dos grandes filmes do cinema que almejava, pois ainda que tivesse os pés no chão, admitia em sussurros que queria poder contar com alguém que fosse presente e leal. Sorriu assim que admitiu a frivolidade de seus desejos. O amor que poderia torná-la sublime era igualmente capaz de assassiná-la. A tristeza profunda é vizinha da alegria inenarrável. Cristopher se fora havia quase um mês. Nesse período Laura criara o hábito de sair com suas três melhores amigas. Ela julgava que três fosse o número ideal de companhias que poderia haver sem que o grupo se dispersasse. Acompanhou suas amigas até quando não se sentira apta ou confortável. Acreditava que as amigas precisavam daquela espécie de parceria no crime, assim como havia e era comum entre os meninos. Laura tinha a impressão de que elas se usavam. Certamente havia um reconhecimento, até alguma notável simpatia, mas nenhuma parecia capaz de compreender a extensão da outra. Havia muitos Dorian Gray's e pouquíssimos Cristopher Green's e inexistia o meio termo entre os dois. Ela ignorou o desconforto e fez o que quis. Beijou alguns tantos rapazes e se deitou com outros três. Beijou algumas mulheres também. Deitou-se com uma. Meditava sobre a incapacidade de manter essas pessoas na memória. Eram inequivocamente irrelevantes e por isso Laura sentia uma raiva latente de si mesma por pensar em Cristopher Green. Tê-lo em mente enquanto dividia seu corpo e sua boca pelas ruas da velha cidade fazia com que ela desafiasse a influência que Cris exercia sobre ela ou que ela se tornasse ainda mais prisioneira do estranho rapaz? A injustiça da situação era que havia grandes chances de que Cris apenas estivesse procurando deuses na porra do fim do mundo. Laura se inflou em uma raiva cega e pensou em chocar Cristopher com suas experiências sexuais, mas voltou atrás. Sentiu lágrimas quentes escorrerem pela bochecha e não entendia o motivo da própria emoção. Esfregou os olhos com os dedos indicadores, secou o rosto e, enfim, iniciou a carta, mantendo a discrição de sua vida pessoal. Cris não precisava saber o que não precisava saber, ainda mais sem ter feito qualquer espécie de pedido. 

                                                          A partida do sr. Green

     Cris, eu estou escrevendo para dizer que sinto sua falta. Eu pretendia escrever algo realmente grande e significativo, mas honestamente não sei o que dizer. Não sou grande nem significativa. Tenho o seu e-mail ainda e sei que talvez essa carta nunca chegue, porém, imaginei que você fosse um homem dos clássicos... Diabos! Não quero dizer que te imagino, ok? Se isso lhe parece uma declaração de amor, esqueça-se dessa ideia idiota! Você não é burro (eu acho). Amores precisam de proximidade para funcionar e nem isso garante o bom funcionamento daquilo que foge ao nosso controle. Tive um amor de longe, Cris. Fui traída, perdoei e fui traída de novo. É por isso que traí depois. Será tolice esperar por honestidade num mundo repleto de vigaristas? Qualquer um que acredite no amor longínquo e no perdão é um tolo irremediável exatamente como um dia fui. Você pode amar de longe, Cris? Será que haveria de ser fiel de tão longe? Não digo a mim, eu digo... Dane-se. O que eu quero dizer é que todos os ciclos se repetem, exceto os daqueles que não se fazem ciclicamente. Sinto falta da sua estranheza, Cris. Eu sei que você é um dos poucos que se lembra do dia e do mês do meu aniversário e é isso. Não quero que você volte agora. Faça o que precisa, certo? Eu estou bem. A vida vai como vai. Não confie em quem não quer te amar por perto. Ser apunhalado duas vezes no mesmo lugar é praticamente uma sentença de morte. "A confiança é um prato que se come frio". Li essa frase em um livro de ficção fantástica qual detestei, mas tinha certo charme hipnótico. Enfim, Cris... Você parece um homem gentil, mas... Não sei mais o que dizer. Apenas mande notícias, ok? Escreva de volta ou nunca mais comeremos bolo. Quero dizer, pelo menos não juntos. 


     Com carinho e sem amor, pois você está longe dos limites do amor. Aí na Islândia com esse eterno frio de gelar os ossos qualquer amor vira gelo, eu aposto... 

Laura Fleury Wastowski.


     Ela acreditava piamente que o amor e os seus casos ocasionais poderiam coexistir separadamente. Estava aliviada de ter se confessado para o papel destinado a Cristopher, ainda que a confissão fosse puramente sentimental. Não se sentia culpada pelas ações do corpo, pelos atos e fatos do cotidiano. Banhou-se e chorou durante o banho, mas saiu parecendo uma pessoa completamente revigorada. Sentia-se quente. Colocou a roupa mais bonita e confortável que tinha e saiu de casa para um encontro num pub com um rapaz chamado Toddy. Riu do nome do sujeito e torceu para que a voz dele não fosse a voz de um Toddy comum. Laura foi além e conjecturou a ideia de que Laura e Toddy jamais formariam um casal. Saiu decidida de casa. Tinha a convicção de que poderia sentir a falta de Cristopher enquanto estivesse embriagada ou sozinha em sua casa na manhã seguinte, mas não nesta noite. Só tinha uma prece na cabeça e no coração. Rezava para que qualquer memória de Cris se mantivesse inalcançável enquanto estivesse com Toddy. Às vezes é necessário imaginar um pouco menos. As comparações matam possibilidades.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Erro

     Aproximo-me. Conto meus passos, reconheço-me. Tudo é tão desnecessário quanto essencial, mas alguém permanece por perto. Olhos postos em linha reta, evita o contato visual contínuo. Evade-se. Fujo-me para dentro. Meus olhos revolvem para mim por um ínfimo instante. Perco-me. Quebro o silêncio sem pensar. Assim parcialmente embriagado sou um desastre. Qualquer palavra que domino se apresenta desconhecida. Frases se perdem, completamente confusas, torno-me incapaz de flertar. Sorrio muito. Sorrio exageradamente. Entristeço-me. 

     Ajo no impulso ou não ajo. Derramo-me em simpatia. É um vício que tenho dificuldades em controlar desde que aprendi que posso ser simpático. Antes eu era legal, mas precisava de cinco encontros para começar a ser simpático. Irrito muita gente. Dou de ombros, mas não deixo de pensar. Penso no que pensam. Preocupo-me com quem soa triste. Tenho um ímpeto estranho que me impele a permanecer por perto de quem está triste ou se sente insuficiente. Não é pena. Reconheço-me em outros. Diminuo a distância. Alguns me amam. Alguns me odeiam. Todos possuem bons motivos para tudo ou julgam assim, ainda que não seja verdade. Dou de ombros. 

     O que se prenuncia é um erro, mas tudo bem. Eu não me importo em ser uma vítima da sua raiva ou do seu desdém. Mostre sua raiva e sua força. Esforce-se. Faça de mim o seu melhor erro. 

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Prolixidade de Domingo

     Prolixidade da manhã de domingo. Tenho mais medo de acertar do que de errar. Desacreditam-me sempre desde que eu era novo. Creio em mim, mesmo sabendo que a probabilidade do fracasso é maior que a do sucesso e que a ridicularização é inevitável. Quão ridículos são, porém, os que zombam sem a coragem para ser exatamente o que são? Cônscio do funcionamento mecânico das pessoas, respiro fundo e me permito ser apenas quem sou. Brinquei sozinho durante quase toda a minha vida, mas nunca me senti assim tão só. Orno bem com a solidão. Faço solilóquios, recito-me, escrevo-me, escrevo-os. Imagino casais de mãos dadas por aí. Imagino casais com a pia cheia de louça, mas deitados de qualquer jeito, assistindo qualquer seriado de suspense e terror com os pratos sujos da janta ainda por perto. Os animais da casa esperam por uma chance de tentar pegar algo. Imagino tudo, vejo tudo e então sigo em frente. Eu talvez trocasse seriado pelos animes novos da temporada, mas só talvez. Reconheço-me. Apenas me interrompo para olhar mais detidamente quem é capaz de me intrigar. Não há tanta gente que aprecie ser singular. 



     Qualquer coisa sorrateira está por perto, mas não corro. Morri tantas vezes, mas agora não morro. Qualquer perigo se anuncia. Firmo meus pés no chão. Qualquer tiro de canhão disfarçado de poesia alveja meu coração. É tempo de amadurecer. Crescer é perceber que sonhos morrem. 


     Estereotipadores se confundem na hora de me estereotipar. Desconstruo-me em minha própria construção. Mergulho a realidade na minha própria ficção. Surpreendo-me com tanta gente singular que nega a característica que mais a torna especial, apenas no intuito de não alardear. E se os que me cercam se incomodarem com meu brilho? Bom, então eles não serão seus amigos. Todos nascemos para brilhar, ainda que isso não signifique que cada pessoa seja assim barulhenta. Não devemos nos ofuscar, mesmo que exista tanta gente ciumenta. Odeio ver um potencial desperdiçado. Intrometo-me, mas não tanto. Aprendemos individualmente. O reconhecimento chega em uma epifania. A transição precisa ser sentida. Fui e voltei muitas vezes como alguém que acha que travessias não cobrariam um preço. Sempre cobram. Agora é tarde. Quando notamos algo não podemos deixar de notar. Não existe processo inverso. 

     "Não há vergonha nesta caçada. A cobra quando troca de pele jamais volta a vesti-la", disse Kaa para Mowgli. Crescer é perceber que sonhos morrem. Amores também. 

     Confesso que troquei de pele e mudei. Já havia alcançado o ponto de não retorno. Dei de ombros e avancei com coragem. Não havia mais engano. Prometi que não seria mais covarde no final do último ano. Cumpro minhas promessas. Sofri com a aspereza sólida e real. Machuquei-me com lembranças pontiagudas até que elas se tornassem irrelevantes. Descobri da maneira mais dura que a realidade pura é que nada volta a ser como antes. Os dias continuavam tendo os mesmos nomes, mas perderam a identidade. Os caminhos nunca mais foram os mesmos. 

     Acostumei-me em sair nas noites dos finais de semana. Vi seguirem a profecia do poeta e destruírem o que mais amam. Crescer é perceber que sonhos morrem. Amores também. A constância não existe . A vida é como é e continua. 

     Fazemos intercessões exageradas em nós mesmos, intervenções emocionais, medidas drásticas, quando tudo parece bom ou ruim demais para ser verdade. Se falta iniciativa reclamamos. Se falta amor suplicamos. Arrastamos-nos por quem não nos deseja. Qualquer momento de tristeza latente ou felicidade sublime não é tolerado por muito tempo consecutivo. A consideração própria é pífia ou inexistente. 

     A única conclusão real é a de que receamos tanto não sermos bons o bastante que nos consideramos indignos. Acostumamos facilmente a termos menos do que merecemos dentro de um esquecimento propositado de que a felicidade existe para todos. A tristeza parece mais simples. O fundo do poço chama, mas você não precisa pular. A vida é dinâmica e tudo troca de lugar. Amadureceu, não? Sente que, enfim, cresceu? Pois crescer é perceber que sonhos morrem. Amorem também. Ainda assim é preciso sonhar e amar. É preciso saber a hora certa e acreditar em recomeços. Hoje me parece um dia adequado. O que você pensa?

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Quem um dia vai se lembrar de mim?

     Aguardo a chuva há semanas. O céu permanece com tonalidades plúmbeas. Nuvens se movem, mas nada nunca muda ou realmente acontece. Muda? Acontece? Aconteço? Permaneço o mesmo. Tudo permanece irritantemente igual. Talvez eu esteja esperando algo que nunca venha. Talvez venha ainda. São muitas variáveis para alguém que gosta da eficácia numérica da exatidão. Veio o sono e dormi, mas não acordei em minha cama. Nem sabia qual quarto era ou qual dia da semana. Aqueles pôsteres certamente não eram meus. Nunca havia visto os artistas e nem assistido os filmes em referência. Senti-me incauto e inculto. Fechei os olhos. Era melhor fugir para outro sonho. Então estava eu ali em uma despedida. Pensei que choraria pela perda daqueles que partiam, mas me vi partindo. Partindo como quem se quebra em vários pedaços, mas principalmente como quem vai e nunca volta. Pessoas lúgubres circulavam. Aproximavam-se, abraçavam-me e saíam. Isso aconteceu por aproximadamente oito minutos. Imaginem quanta gente, bem lá no fundo, realmente se importava? Eu nem fazia ideia. Estarrecido para dizer o que pensava, eu me calei. Todos que ali observavam minha partida tinham sentimentos por mim. É estranho contar isso, pois como um sonho pode puxar tantas nuances da realidade? Para ser sincero eu nem sei se pode e se soubesse nem sei dizer se o meu conhecimento seria suficiente para embasar algo tornando-o concreto. Nós gostamos tanto da solidez e da segurança, mas depositamos a esperança em fantoches malditos que se preocupam sempre com o próprio rabo. Parece que a água que se faz cada vez mais difícil de cair do céu. Não há apelo para santos das chuvas ou deuses das tempestades. O vento venta. A brisa ululante balança seus cabelos no inacreditável escuro. Como se não bastasse o inferno singular e a prisão da mente, mergulhamos fundo, inacreditavelmente fundo, para concluir que morreremos antes por nossas tragédias pessoais do que pelas tragédias mundanas. O céu permanece cinza, cor de chumbo e talvez seja mais fácil despencar chumbo do céu do que água. Os finais não se apressam, mas querem nos proibir de recomeçar. Tudo se enche de poeira. O céu abraça a poluição e aumenta essa crise. Alguém realmente pode nos proibir?

     Euforia pressentida de um futuro incerto. Viver é apreciar a solidão em um deserto? 

     Por quantas metáforas devo caminhar até que meus olhos só vejam poesia? Quem é que dissipa a neblina e traz a luz do dia? Vemos o que podemos ver ou o que escolhemos ver? Vemos além da fumaça de tragédia e caos? Alguns pecados simples recebem longas sentenças e algumas atrocidades direcionadas são rapidamente perdoadas. Merecemos esse tipo de inconstância humana ou alegamos nossa humanidade como escudo necessário para nos defender quando nos sentimos demasiadamente agredidos e apavorados? É fácil alegar e não cumprir. É fácil pedir por simpatia sendo incapaz de sorrir. É fácil dizer e dar de ombros, como se tudo (ou nada), nunca fosse uma questão significativa para você. Não, eu não sou superficial assim e nem ninguém. As maldades impelem a fazer mais maldades. A bondade adoça a boca. Tudo é viciante, embora isso nunca signifique que os bons não possam ser perniciosos e nem que os maus não possam ser bons. Quando ando por aí, eu às vezes apenas ando por aí. Passo e outro passo e outro passo. Olho para as pessoas e olho para como me olham. Não me interesso inicialmente pelo carinho que me dedicam ou deixam de dedicar. Há os naturalmente amáveis e afáveis e os naturalmente desconfiados e distantes. Somos esses bichos irracionais que decidem com presunção não gostar de gente que nem se conhece. É preferível se isolar. Intimido alguns, em primeira impressão, mas decidi que não poderia e nem deveria me esconder para evitar o que não deveria querer evitar. Meu irmão mais novo raras vezes se faz claro, mas me aconselhou com sabedoria sobre calma e intimidação. Foi um conselho direto no coração. O meu problema é que não atuo e me aturo. Escolhe ser quem eu sou, cônscio da decisão, nocivo da responsabilidade que é carregar a obrigação de ser. Sou excessivamente severo comigo. Há erros que não me permito cometer. 

     Intervalo. 

     A constância não existe. A inconstância é a lei. Fazemos intercessões exageradas em nós mesmos, quando tudo parece bom ou ruim demais para ser verdade. Falta iniciativa. Reclamamos. Falta clareza. Reclamamos. Falta amor. Suplicamos. Arrastamos-nos por quem não nos deseja. Qualquer momento de tristeza latente ou felicidade sublime não é tolerada por muito tempo consecutivo. Acostumamos facilmente a ter menos do que merecemos. 

     Recordo-me novamente da minha despedida. Eu apenas me mudava de cidade ou dizia adeus à vida? Pessoas choraram e eu provavelmente também chorei, embora não seja muito das lágrimas. Talvez essa seja a ilusão na qual me encaixo. A ausência na vida de quem não se acostumaria com uma vida sem a minha presença. Sou todo barulho para os que me cercam, todo dragão. Já mandei melhores amigos para a puta que o pariu quando perderam a noção. Nunca deixei o coração de lado, mas agi com razão. Quem conquista minha amizade nunca a perde. Não deixo pessoas para trás, ainda que um dia tenha sido deixado. A sina de quem quer mudar o que não se muda é não revidar da mesma forma qual foi atacado. 

     Algumas madrugas me abraçaram e gelaram meus ossos. As lágrimas se recusaram a escorrer. Dirigi por ruas vazias. Saí despido em noites frias esperando sofrer. Um sopro fétido me tornou convicto sobre um inevitável mau agouro. Tudo se perde. Nada é duradouro. 

     Não tenho medo do escuro, mas deixei a televisão ligada por garantia. Encaro filmes de terror, mas nunca antes de dormir. Enfrento demônios por meus amigos, mas sinto que a qualquer dia vou cair. Já fui afagado por um fantasma no passado. Eu não tenho dúvidas de que eles realmente existem. Há existências além da Existência e há pensamentos que cruzam dimensões. Será que meu Amor ficou perdido no Reino dos Corações? Meus pelos se eriçam e me assusto. É noite lá fora, mas minha alma permanece no lusco-fusco. Qual é o custo para continuar assim? Se eu me esquecer, quem um dia vai se lembrar de mim? 

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Aguente firme

     Aguente firme

     A chama está acesa. A vela queima noite adentro e você se fecha em um silêncio, mas deveria mesmo se fechar? Talvez. Faz o que acha certo e tudo bem. Você odeia pessoas que nunca conheceu e nem faz questão de combater esse instinto de violência insensata. Você ama destruir quem te ama, mas odeia destruir o que te mata. Você simplesmente não está pronta para ser feliz, é o que diz. Bom, isso não passa de besteira, mas eu sei que é mesmo o que você fala por aí. Como se a felicidade fosse fruto de mero merecimento e certas pessoas não a merecessem, principalmente você. Esquece-se de que todo mundo hora ou outra sai do trilho, mas se alegra em apagar o brilho de quem gostaria de te fazer brilhar. Você não dá uma chance para ninguém novo, pois as novidades te desapontaram. Você também se condena de maneira excessivamente grave pelos erros que cometeu fazendo parecer que ninguém mais erra. As coisas que te amam permanecem ali, mas você não é capaz de aceitar que outras coisas bastantes específicas se quebraram e não possuem qualquer conserto. No fundo está consciente, mas refuta a sua convicção. Certas pessoas se foram e certos sentimentos jamais vão renascer. Eles se foram. Eles se foram para sempre, entendeu? E você não quer dica ou conselhos de ninguém mais. A gente aprende no tempo que precisa para aprender. A gente aprende quando está pronto para querer. Ontem mesmo você que se diz calma foi tão arrogante. Atacou em um surto de raiva intolerante exatamente como se você... Como se você fosse melhor do que o restante. Acha que pode atacar sempre, pois ninguém entende sua dor, mas desconsidera a dor alheia, pois a chama no seu peito ainda se incendeia e você odeia o escuro, mas a vela ainda está acesa. As coisas continuam enquanto o fogo queima. 

     Machuquei meus dedos no ônibus. Os ombros e os joelhos e o pescoço também. Sabe como a vida é estreita para as pessoas altas? Não havia como dormir. O desconforto não é só nas poltronas apertadas. Nós batemos muito a cabeça e quase derrubamos o teto do elevador, se decidimos nos espreguiçar descuidadamente, mas nós alcançamos a mala que jaz em cima do armário e o pote de mel no alto. Machuquei meus dedos no ônibus e estou cansado de escrever para desconhecidos que se ferem o tempo todo acreditando que na vida nunca há nada novo, mas aqui estou escrevendo e deixando doer. Se os dedos piorarem quer dizer que pioraram. A dor dói, mas e daí? Dói para todo mundo e é preciso seguir. Dói dói, mas e daí? Eu sei, eu sei, eu sei. Eu digo que me cansei, mas ouviria sua voz a noite inteira, ainda que ainda nem te conheça direito. Você é singular e tem um jeito só seu de fazer do seu jeito. Mesmo depois que me superei, às vezes, entrego-me às bebedeiras. Razões? Motivos? Se tudo o que há por aí é permitido, por que não aproveitar? E a dor continua doendo e as pessoas em volta vão se mudando e se desenvolvendo e você se sente parada, mas cresce, não? O quão alto preciso gritar para que minha voz alcance seu coração? Ser alto não basta. Andei tomando foras de pessoas quais nunca nem flertei e ri da inutilidade disso. Rejeições impossíveis! Andei conquistando corações quais nunca nem tentei. Segredos indizíveis! Andei vivendo de sonhos que nunca sonhei e num intervalo entre uma tristeza e outra, a gente se regozija com uma alegria repentina. Felicidade é a lufada de vento que dissipa a neblina. Mas você aí segue só e se martiriza. Escolheu não gostar de quem não gosta apenas pelo medo de se sentir vulnerável. Deseja se manter segura. Quem é que consegue algo dentro da própria zona de conforto? Quem é que está vivo sem o risco de ser morto? Quem é que evolui sem se sentir absolutamente exposto? Nem tudo o que é belo perdura e até o que perdura acaba. Vivemos a Vida, chamamos pessoas pelo Nome e um dia retornamos ao Nada. Não há divindade que nos proteja da morte. Não há ninguém, exceto você, que determine sua sorte, mas ainda dói, não é? 

     Você se recusa a dar chances e maximiza tudo o que dói. A chama continua acesa e você não quer saber. É perita em se esconder. Prefere sempre o que demora. Viveu três dias dentro de uma hora encarando os monstros terríveis e selvagens lá fora. O sofrimento te sufoca e o causador nem mesmo nota. Você se recolhe. Revolve-se para dentro como se fosse solução. Acha que pode esconder a dor que ensombrece o coração. Não há abrigo. Você não é mais rápida do que seus problemas. A noite surgiu na tarde e você não desvendou o dilema. O cinza brotou na manhã e você aí ainda mais poluída que essa crise toda. Tudo te alcança, mas nada impede que você corra ou tente correr, mas tropeça no chão e cai. Demora até sentir a dor da queda. A chama continua acesa, mas falha agora sua tão confiável destreza. Você fraqueja em reconhecer sutilezas. Ergue-se como um tipo raro de princesa. Não é nada frágil. Quem ousar testar sua ferocidade vai acabar ferido. Sua armadura é uma notável aspereza e você ataca tudo o que não pode suportar. E você também não se suporta. É o que uma voz te sussurra baixinho. Qualquer que seja o caminho há a possibilidade de falhar. 

     Você chora e sua alma agora é escura. A tristeza quando ataca é ininterrupta. Os finais ocorrem de maneira abrupta e você nunca mais encontrou o seu lugar. Mas se a vela ainda queima e a chama continua acesa quem é que pode dizer que acabou? Você não é um fracasso. Só bateu na sua porta esse pesado cansaço. É difícil matar velhos hábitos. Lembro-me de quando sempre preparava café para dois e subitamente só havia eu e mais ninguém. Por muito tempo olhei para a segunda xícara contemplativo, esperando um milagre. Não. Para dizer a verdade, eu esperei o impossível e sabia que não aconteceria. Essa é a tragédia de quem se acostuma com a poesia. Adiar finais inevitáveis... Notei depois que poderia beber os cafés das duas xícaras sozinho. Mais para frente percebi ainda que poderia servir toda aquela quantidade de café somente para mim. Se aguento tinta, como não aguentaria tomar dois litros de café? Sou forte, repito e espero que você aprenda esse mantra. Tudo bem essa sensação de abandono (agora). Entregue-se ao confortável sono apenas neste instante, porém, levante-se amanhã. Cedo ou tarde você notará que a sua própria companhia é muito valiosa. A vela continuará queimando. Queimará com ela o medo e o parte do passado que já não importa. Algo vai ficar, mas quando a noite se findar, a chama vai morrer e o sol vai nascer novamente... ainda que ele possa ter contornos esquisitos e cores novas e exageradamente vermelhas. Você vai perceber que se ateve de maneira imprudente, debruçando-se em coisas desnecessárias. Tenha um pouco mais de iniciativa. Há amanhãs por enquanto, mas não desperdice seu tempo. Tudo, enfim, recomeça. Este é o seu momento.

     Aguente firme.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Amizade incondicional

     A Isabela é o meu primeiro troféu de 2019. Ela jura por Deus que eu tentei flertar com ela quando nos conhecemos, mas se ela me respeitasse o suficiente saberia a diferença (e que sou muito melhor que isso no flerte, porém, não tanto). Perdido em um rolê desses no meio do nada, eu estava conversando com outros dois bons amigos. Acredito que reclamávamos da música tão estranha que tocava na casa cheia de árvores da Rua Laguna 26 qualquer coisa, quando ouvi alguém pronunciar a palavra troféus. Surpreso e feliz pelo acerto, eu me senti simpático, como quase nunca fui capaz de ser e ainda sem estar embriagado, virei-me e cumprimentei essa mulher desconhecida. Ela me olhou com desconfiança e seu olhar me perscrutava como quem desejava adivinhar meu próximo movimento. Certamente imaginava em uma péssima suposição que era só mais um desses caras que flerta com todo mundo, mas tudo bem, eu a perdoei. Não sorriu tanto, mas conseguiu ser simpática. Conheci um amigo dela nessa noite também que parecia pronto para jogar basquete. Ela conheceu dois dos meus. Eu não me lembro direito como termina o começo disso tudo, mas antes que o mês se encerrasse a Isabela já era parte da minha vida. Tivemos uma dessas conexões de filme. Não sei também como ela conseguiu, mas se fez importante e presente, como a gente aprende que nem todo amigo é capaz de ser e estar. Somos parecidos na maneira de pensar, ela milita muito mais que eu, mas nos damos bem. Escala por seus objetivos pessoais e entende suas responsabilidades. Admiro também a capacidade que ela possui de ser franca e fazer exatamente o que quer. Já batemos de frente e isso só fez crescer o respeito. Ela é uma pessoa tão livre e instintiva que de quando em quando nem parece ter inseguranças. A Isabela gosta de Senhor dos Anéis também e isso contribuiu para que eu a quisesse por perto imediatamente. Ocasionalmente ela me busca para lancharmos e quase sempre rimos muito. Ela nunca me deixa esquecer de quando abracei um velho por engano. No meu aniversário ela foi a primeira a me mandar mensagens entusiasmadas e alegres e eu sorri por ter conquistado uma amizade tão preciosa. A frase que ela mais me diz é... "AMIGO, VOCÊ É TUDO". Saímos algumas várias vezes, bebemos juntos poucas (ela geralmente carrega 21 garrafinhas de água no carro dela), mas conversamos rotineiramente, rimos sempre e solidificamos, dia após dia, uma amizade que parecia ter sido predestinada. Hoje sei que somos amigos até no esgoto. 

     Se há qualquer tipo de predestinação nesta vida, eu não tenho como supor que o meu encontro com o Luís tenha sido qualquer coisa menos que isso, obra pura do destino. Dias antes de nos conhecermos, eu fui alertado que ele era uma espécie de minha versão italiana, mas antes, voltamos à improbabilidade das hipóteses e encontros. Conheci por G uma pessoa I que se tornou minha amiga e em um futuro não muito distante, eu me afastaria definitivamente de G e I. I, porém, era parente de F e logo me tornei amigo de F que namorava X. Demorei a conhecer X, tendo em vista que a rotina na cidade de Dourados me dava três horas de fôlego por dia (sem contar o tempo que eu dormia), mas certa noite conseguimos nos encontrar e X era bem legal. Nos aproximamos e ele foi e voltou umas poucas vezes de Dourados comigo. E foi X quem acabou me convidando, mesmo sem me conhecer tanto assim, para integrar uma mesa de RPG. Nesta altura da narrativa, vocês já sabem quem é quem e no incrível dia da primeira sessão, eu conheci o Luís (Luigi), o Jorge, a Ana e o Vini. Os outros presentes eu já havia conhecido no final do ano anterior. Não marco o lapso temporal do primeiro para o segundo encontro, mas certamente foi durante o carnaval que a nossa relação de amizade se estreitou. Paizão e Luffy andando juntos por aí quase o tempo inteiro, rindo e se divertindo sem parar. O Luís (com S) escreve, assim como eu. O Luís dança e é muito mais carismático do que eu. Ele tenta ser a voz da razão e é um homem difícil (eu também queria, mas não agora). Eu e ele somos pessoas diferentes, partes diferentes de algo que às vezes parece ser uma coisa só. Foi com o Luís que tive a melhor briga da minha vida. Nunca antes um amigo foi tão honesto, direto e agressivo, exatamente como eu tenho o hábito de ser, sem jogos ou melindres. Ao término, eu me desculpei, pois reconheci que o ponto de partida da confusão era exclusivamente de minha responsabilidade. Ele se desculpou por ter desviado do assunto e ter evocado outro tema. Tudo se sucedeu subitamente! Fomos incrivelmente ríspidos e sinceros e em menos de dez minutos resolvemos um problema, um contratempo, que outras pessoas transformariam em novela ou nunca resolveriam. Luís é o cara mais genuíno que já apareceu na minha vida e está sempre a me elogiar e a elogiar todos. Ele faz parte dos amigos nerds e podemos falar de One Piece e outros animes também. Também se fez como um amigo para todas as horas, o cara com o qual posso desabafar e ser cem por cento quem eu sou, revelar minhas fraquezas sabendo que não há margem de risco para que ele as use contra mim. O Luís é um tipo raro de amigo que todo mundo deveria ter. Ele sempre está ali quando preciso e ele sabe que a recíproca é verdadeira.  

     Nós três somos diferentes sim e até já brigamos, mas nunca criamos novelas em cima de nós mesmos. Aqui nós prezamos um pelo outro e isso engrandece nosso valor humano e enobrece a caminhada. Eu sei reconhecer o valor dos meus grandes amigos e eles sabem reconhecer o meu, assim, confesso-lhes que raras vezes me senti tão tranquilo e feliz sobre amizades. Eles me entendem e eu os entendo. Achatamos os goombas nesta vida, pois também é preciso. Sabemos que podemos amparar um ao outro na queda. Sabemos que podemos incentivar o voo e alcance máximo alheio. Compreendemos os momentos de cada um e torcemos pelo sucesso individual, pelos sonhos, pelos amores, pelos grandes objetivos realizados, ainda que o êxito um dia possa nos distanciar. Tudo bem! A vida é como é e o futuro é incerto, mas no tempo presente receio que eu não tenha alternativa senão declarar meu amor por eles. Ansiamos por nos rever quando a ausência se faz demasiadamente longa. Usamos várias gírias de um dicionário próprio, repleto de expressões que a humanidade nunca viu e com alguns neologismos que me fazem rir. Somos amigos aqui neste momento, mas somos amigos em tempos passados quando ainda não havia sido inventado o conceito de amizade. Fomos amigos em outros países, outras dimensões, outras cronologias, mas nos reencontramos, enfim, numa simples cidade. Contra qualquer tipo de expectativa, aqui estamos e somos, apenas como podemos ser, sem vaidade. Consciente sobre quão é difícil achar no mundo quem seja capaz de nos achar, eu agradeço por vocês terem aparecido. Talvez eu tenha achado vocês, mas vocês me salvaram quando soube que poderia chamá-los de amigos. Vocês são meus tesouros de outras vidas e independentemente do que aconteça, vocês se fizeram presentes como ninguém mais. Cronologicamente adiantado, eu tive um vislumbre de tudo que acontece depois e só pude me achar com um sorriso no rosto. Talvez fosse apenas um sonho, mas acho que a Isabela e o Luís chegaram para ficar, mesmo que um dia decidam ir. Estarão comigo ainda que eu decida ir também. Não pensei que uma vez mais teria amigos quais amasse tanto. Nunca pensei que existia essa tal amizade incondicional e só desejo que ela dure...

     Nunca sou capaz de me resumir, mas todo esse texto enorme é para vocês. Meus tipos singulares de raposas, goombas e sei lá o que mais. Amo vocês! 


segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Poesia em trânsito #2 - Sina dos Sinais


Dirigi meu carro branco 
do modelo você sabe qual
Em um tempo você não sabe quando
Num universo nem eu sei onde 
As vias eram de mãos quádruplas, mas
os faróis amarelados de meu carro 
eram as únicas luzes na escuridão 
Onde estavam os motoristas e passageiros?
Onde estavam os determinados caminhoneiros?
Dirigi e escutei algumas novas e velhas músicas
Algumas você sabe quais, outras nunca conheceu
Você duvida, mas eu posso ser surpreendente 
Vá se ferrar, eu penso e
concluo que o pensamento é errado
Alimento-me com amendoins torrados 
e algumas memórias que me ferem 
Não deveria ter exagerado, pois
os dois alimentos irritam a minha pele
Coço o meu cabelo e continuo 
com meus olhos vidrados na pista
Você não vem hoje, meu bem
Você me fez ontem, refém, 
Desista, pare, faça o retorno, 
Os sinais estão todos espalhados 
Um relâmpago ilumina o céu 
Eu sempre quente me mantenho morno
Choro e gargalho, pois vejo além, 
Transformo ouro em frases no papel
Eu disse que vejo além, notou?
Não preciso das suas migalhas de amor
Não como um dia eu precisei
As coisas mudaram, exceto o meu carro
Quem sabe em outros tempos?
Soube que eu gostei de outras duas?
Você amou um, mas e daí? 
Sou ainda o seu rapaz da rua com o nome de motel?
As secretárias dos médicos fazem caretas 
E em voz alta entoam seus revezes 
Eu me mudei de casa sete vezes 
Aprendi o sotaque dos ingleses 
Troquei de pele até que a carne antes macia
fosse então dura como uma couraça
Tudo que antes existia: fumaça
Sou ainda o que fui um dia
Em algum tempo sei lá quando
Em algum lugar sei lá onde
Até o dia em que não serei mais 
Esse dia é hoje e foi ontem
Provavelmente agora 
Certamente nunca
Percebo-me e me sinto vazio
Quantas bocas preciso beijar 
até que passe esse frio?
Eu me tornei quem eu não era
A invernia com maquiagem de primavera 
O pacifista intelectual que sempre pondera
Quando deveria partir para a ação
Ainda assim sou a presença que ninguém espera
Quando atiçado me transformo em fera 
Bicho solto com instinto louco de destruição
Dirigi meu carro branco do modelo você sabe qual
Pisei no acelerador e me senti ágil, mas 
paguei caro no pedágio para voltar ao tempo
na velocidade estável de 122km/h 

Certas lembranças eram como aquaplanagem
para os pneus do meu carro 
Outras com gosto de esperança
Faziam com que eu me atolasse
Cada vez mais fundo no barro
Metáforas desmedidas e esforços tão tortos 
São necessárias as partidas para 
enterrarmos os espaços mortos
Você não veio ontem, meu bem
Não vem hoje também
E eu não peguei os sinais da pista, sabe?
É a sina de quem possui bons olhos 
Perde-se a ingenuidade e a candura
Perde-se o carinho e deforma-se a figura 
Perde-se coisas que nunca imaginou apenas para
poder ganhar o que poucos poderiam ousar
Olha, quem vem chegando ao fim da esquina
É o pedaço quebrado ao peito apontado 
Denomina-se sina 
Os sinais trocam as cores
Na letargia e cegueira da vida
Você ainda não trocou seus amores 
A felicidade está distante em outros países ou
você só finca os pés no chão como se fossem raízes? 
Talvez seja a sina de quem sabe ler os sinais
Dar de ombros em um falso tanto faz 
Sinalizar que ao final é tudo sobre sina 
E que as sinas não impedem sequer um sinal 
Tampouco nos impedem das mais trágicas rimas 
A noite caiu dentro de mim e não há lua
Dirigi meu carro branco por uma estrada escura
As estrelas refulgiam alegremente no céu ou 
seriam apenas postes disfarçando minha esperança?
Que se dane!
O que importa é a luminosidade 
Ao longe vejo luzes de apartamentos numa cidade
Temperança, repito, soturno 
Aos poucos perdia o meu medo da morte 
Na estrada (eu) desempenhava o meu papel 
O som do carro anunciava a minha sorte 
Dirigi meu carro branco enquanto apaguei
os últimos resquícios seus em minha memória 
Eu estou tão feliz, triste e aliviado, pois
com você ao lado jamais poderia iniciar outra história 
Sou mais do que as partes que me formaram
É tempo de novos inícios já, certo?
Dirigi meu carro branco por novos caminhos 
Assumindo completamente o risco de me perder (e tudo bem)
Ainda dirigia e pelo retrovisor me vi sorrir 
Lembrei do conselho do gato de Lewis Carrol 
Para quem não sabe para onde vai
Não importa qual direção seguir 
Desde que não volte, acrescentei baixinho 
Acelerei e cruzei a madrugada 
Divagando por inéditas estradas 
Pela primeira vez em muito tempo
Satisfeito completamente 
Completamente sozinho.

Poesia em trânsito #1 - Catador de restos


Dirigi pelas ruas na madrugada
procurando seu rosto
Minha alma embriagada 
sorvia o seu velho gosto
Irônico que agora eu esteja
melancólico como nunca antes
Seu cheiro ainda é uma lembrança 
Adocicada, insensata e incômoda 
Pulo as músicas no carro
Esperando achar graça de algo 
Não evito por não querer
E chamo de inevitável
Vago pelas esquinas e vejo rostos sem contorno
Respiro fundo e medito sobre o preço
de finalmente ter o que mereço
Este é o ponto de não retorno 
Será que perderei até a minha sombra?
Passo pela frente da sua vizinhança
Voo com a minha mente criativa
até uma realidade alternativa
Onde tudo que um dia foi
Ainda não havia se perdido
As luzes dos faróis se parecem com estrelas
Aceno tentando entretê-las
Antes que a escuridão nos engula
Notas de uma tragédia anunciada
A história era para ser para sempre
Deveríamos ser um filme clichê e morno
Passando uma sensação de conforto
E aqui estamos no ponto de não retorno
Quis esmurrar o vidro do meu próprio carro
Quebrar a televisão e mergulhar em outra vida
O olho direito vislumbra um futuro glorioso
Ainda assim com um sabor desconfiado 
É tão bom alcançar o que queremos 
se perdemos tanto no caminho?
O olho esquerdo ainda enxerga
Apenas o que não pode ser alterado
Completamente vidrado no passado
Esperando uma ligação 
que nunca veio no dia certo
Esperando uma palavra de 
carinho dita de perto, mas
 só houve o insulto doloroso
Esperando reações menos bruscas
Suavizadas por uma ternura mais justa 
Raramente permito me focar no presente 
Sou o morador de rua de coração partido
Catando qualquer coisa para tapar 
o buraco do estômago e da alma
Juntando pertences que 
não sei se me pertencem 
para não admitir o meu vazio 
Lembro-me de que tudo 
costumava ser tão quente 
Agora meu mundo é frio 
Cônscio de que sou mais do que 
as partes que me formam
Evito pensar no que não quero dizer 
Assim decido que vou aguentar um dia após o outro
Ainda que torça para acordar deste pesadelo 
Intervalo doloroso, suspiro longo, 
Será que ainda vou aprender?
Tento não me alimentar dos poucos restos de você
Não gosto de mendigar, mas preciso sobreviver.

Coisas que sei

     Sei que amanhã vou acordar cansado.

     Sei que não deveria acordar antes das seis da manhã e nem dormir depois das duas da madrugada. Sei que não deveria beber mais que dois litros de café por dia. Sei que muitas vezes me faço refém de um perigo que crio. Sei que então alimento este falso perigo até que ele se torne suficientemente real e me assombre por dias ou semanas. Sei que sou mais forte que o que inventei e posso imaginar sempre um novo jeito de interromper o que me freia ou me assusta. Sei que às vezes é preciso frear. Sei que os amores são exatamente como fantasmas: pouquíssimos viram, mas todos creem que podem falar sobre. Sei que estão certos sobre isso, ainda que estejam errados. Sei que há sofrimentos fugazes e eternos e que o tempo não existe. Sei que o tempo que foi inventado é relativo. Sei que algumas marcas desaparecem, mas algumas cicatrizes são para sempre. Sei que muitos se envergonham da pele marcada. Sei que ostento meus fracassos e tenho boa memória para não me esquecer. Sei que falo quando deveria calar, mas calo quando deveria dizer.

     Sei que minha família me faz bem, mas ainda preciso do meu espaço. Sei que sou expansivo e por isso não me limito. Sei que eu era o melhor jogador de Nintendo 64 quando criança. Sei que a solidão é importante e solidifica nossa essência e sei que somos responsáveis pelas nossas escolhas, ainda quando fatos externos e fora do nosso controle reduzem nossas opções. Sei que somos tantas vezes tão insensatos em nossas ações que agimos como verdadeiros deuses. Sei que temos essência divina em nossas partículas, ainda que divindades não existam. Sei o quanto é comum optar por uma versão inferior da sua melhor, apenas para que outros ao seu redor não se sintam inseguros. Sei da inutilidade em tentar preservar quem a gente ama da nossa verdadeira grandeza de coração e de espírito. Sei que não basta ser amigável e sei que é preciso ser amigo e nunca me esqueço que há um abismo de diferença entre uma coisa e outra. Sei que amar quem se ama faz com que o dia fique mais bonito. Sei rimar e entendo o quanto isso é brega. Sei que para enxergar o que é essencial a visão comum deve ser cega. Sei que saio melhor em fotos com flashes e que vão tentar me convencer a tirar fotos sem flash. Sei que sou da linha de frente, do sorriso no rosto, do barulho, do risco e do perigo. Sei que posso fracassar na tentativa de salvar um amigo.

     Sei que houve um tempo em que me sentia impossibilitado de derramar toda minha essência eloquente. Sei que muitos me levam a mal, pois sou um pouquinho diferente. Sei ainda que muitos fingem compreender minha necessidade de ser e estar só. Sei quase todas as falas do coelho do Star Fox. Sei como a insegurança própria leva a atitudes que buscam a inferiorização alheia para uma espécie de segurança emocional. Sei que esse tipo de segurança é frágil, lamentável e banal. Sei que odeio o curso no qual me formei, mas tenho tino para o Direito. Sei que a caminhada é longa, feita passo a passo. Sei que sou uma amálgama de vários minúsculos pedaços. Sei que se anuncia a profecia no presságio do Leão no Espaço. Sei sobre a dor. Sei que quando remendados esses cacos personificam o amor (próprio). Sei que um dia estarei morto e devo aproveitar agora. Sei que vou perguntar sobre "o que faria se um furacão" e devanear sobre melhores horas. Sei a diferença de quem interpreta personagens e de quem é naturalmente gentil. Sei me resguardar quando a minha vida está por um fio. Sei que não deveria confiar meu coração à algumas pessoas. Sei que confio mesmo assim. Sei que vou acordar antes do despertador e minha alergia vai atacar. Sei que amanhã será outro dia em que tudo parecerá vagamente fora do lugar. Sei hoje caminhar com o devido porte. Sei que escrevo livros e sei que pelo menos um deles vai cumprir sua função. Sei que o que não sei como dizer pelas minhas histórias entrará direto no coração. Sei que deixo se apoiarem em mim e sei que há inveja também. Não é preciso ser ou ter muito para ser alvejado e ser tratado com desdém. Sei o que me faz seguir em frente no fim do dia. Sei que os esforços são premiados àqueles que vivem com ousadia. Sei que a cobra quando troca de pele não volta a vesti-la. Sei que algumas das melhores ações são instintivas. Sei que as mudanças são eternas e sei que muitos tratam a vida como um jogo. Sei da letargia que me abate e sei que não sou de atalhos. Sei que tenho tentado ser bom, mas frequentemente também falho. Sei que vou acordar oito minutos antes do despertador. Sei que houve mais de uma vez que saí com a roupa do lado contrário. Sei que, na realidade, eu apenas estou exausto. Sei o que acho que sei, mas sei que devo estar absolutamente errado. A minha única certeza é a de estou atrasado para dormir e amanhã... 

     Sei que amanhã vou acordar cansado. 


quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Avesso

     Desde criança sou um apanhador de sonhos (longe dos campos de centeio). Pudera eu explicar como tive tal capacidade, mas acredito que era capaz de me estender e alcançar sonhos alheios apenas pelo simples fato de que vivia mergulhado nos meus próprios. O meu ritmo era o oposto da maioria; a minha tendência era ser a força contrária. A minha agressividade, quando se manifestava, era efêmera, mas os que me cercam aprenderam desde cedo sobre o meu valor e minha argúcia. Quase sempre estava bastante tranquilo, muitíssimo sossegado, não raramente calado. Dava de ombros para a impressão que eu passava, cônscio de que a maioria jamais ousaria conhecer a verdade oculta atrás da impressão. As primeiras impressões são quase sempre terríveis. Minha timidez me deixava nitidamente fora do lugar e não havia quem fosse gentil ou compreensivo quando o silêncio me dominava. Constrangi-me muitas vezes até, enfim, perceber que o silêncio poderia ser o meu melhor aliado. Dominei a minha angústia, mas não me tornei um falastrão. Venci-me, aprimorei-me, cresci. Antigamente eu era um jovem completamente reto, furioso, justiceiro, pronto para lutar por um mundo melhor. Em outras palavras, admito que entendia pouco do mundo. Eu era completamente ingênuo. 

     Acostumei a me olhar de um jeito severo. Ansiava por um futuro no qual eu pudesse provar que era capaz de não repetir os erros alheios que tanto me fizeram sofrer e que tanto me ajudaram a me tornar exatamente quem eu sou. Convenci-me de que era preciso buscar a verdade. Aprendi que era necessário agir corretamente. Entendi que a maioria jogaria trapaceando, mas que eu precisava provar meu ponto conseguindo sempre vitórias limpas. Acredito que é exatamente por isso que tantas vezes eu escolha o caminho mais longo. Isso justificaria meus atrasos? O céu é suficientemente espaçoso para todos nós, assim, nunca fiz questão de colocar meus adversários de joelhos. Tenho uma misericórdia estranha pelos sonhadores, pelos mestres do impossível, pelos cruamente corajosos. Sempre que tento me adiantar, eu me pego atrasado. Sou pontualmente fora de hora. Ninguém é perfeito e cometi lá minha boa cota de erros, mas tenho aprendido com eles. O mais importante sobre errar é que fui dono de meus erros e cumpri minhas promessas. Não repeti meus antecessores. 
     Sou um estranho e me sinto bem, extremamente confortável no desconforto. Por vezes, eu estive no lugar exato e na hora exata, mas me leram como se eu estivesse deslocado. Talvez até estivesse, mas nem sempre é ruim ser ou estar alheio. Por vezes, eu não estava ali, mas ria, participava, falava bobagens e cativava pessoas. Elas sempre gostaram muito de mim e eu delas. Os mundos quais habitava possuíam qualquer resquício de matéria real, mas, em grande parte eram compostos por monstros bondosos, humanos terríveis, antagonistas brilhantes, animais que falavam, vilões perfeitos e chances de redenção. Nestes mundos eu fui tudo e todos. Tudo foi feito comigo e fiz de tudo também. Às vezes sonho acordado e na minha pele vejo que ainda sou esse rei de um mundo utópico. Outrora mergulhei fundo para conhecer a minha própria extensão e notei que meus braços, na verdade, alongavam-se para salvar quem precisava de socorro. Fui imprudente. Tentei remendar corações quando o meu próprio estava machucado. Salvei animais da morte e arquei quase sozinho com os prejuízos do veterinário. Enraiveci-me, pois quando e onde poderia chegar se eu não deixasse de ser como sou? Era avesso também ao que era considerado racional. Fiquei quando tinha motivos para ir. Parti quando tive consistentes razões para ficar. Gostaria realmente de deixar de ser assim tão avesso? Eu ainda não tenho essa resposta. Mantenho minha essência. Talvez eu viva ligeiramente enfurecido. 

     Sempre soube dividir o palco, mas nas minhas histórias desempenhei ferrenhamente meu papel. Não me aceitei coadjuvante na peça da minha vida. Odiei e ainda odeio quando me fazem de bobo, mas já senti um orgulho protetivo pela minha ingenuidade. Infelizmente mataram a minha inocência. Nas histórias que narrei, eu já era a estrela principal, ainda que fosse antagonista ou protagonista. Vesti roupas que não tinham nada a ver com o meu rosto e tal qual Pessoa, eu fui reconhecido inúmeras vezes pela pessoa que eu não era e nem fiz questão de desmentir. Erraram na imposição dos estereótipos. Irritei meus amigos do futebol por ser nerd e irritei meus amigos nerds por ser também do futebol. Fui o que sou e ainda sou apenas o que posso ser. Desfrutando completamente da minha liberdade, hoje sei que não há meio termos em ser livre. A meia liberdade é uma ilusão e não passa apenas uma maneira de se enganar de uma maneira gentil. Mesmo quando mentimos em segredo, a mentira precisa ser boa para que exista segurança suficiente para que se possa sustentá-la. Respiro fundo e volto no tempo. Olho para mim nos anos que se passaram e consigo aprender novamente certas coisas. 
     O Daniel chorão da infância sabia ser alheio num estado sublime que beirava a perfeição. O Daniel sério do início da juventude aprendeu sobre o quanto dói a solidão forçada, quando mudou de colégio e ficou três meses sem trocar uma palavra com pessoa qualquer. O Daniel de 2009 era criativo e matava aula de toda maneira imaginável, incitava que os colegas matassem aula também, iniciou um período duradouro de guerras de papel higiênico molhado e hoje me pego rindo da minha infantilidade. O Daniel dos dois primeiros anos de faculdade tinha depressão profunda e pelo menos duas vezes por mês neste período, vomitava por aproximadamente 12 horas consecutivas. Àquela época, febril e triste, incompreendendo a razão das minhas fraquezas, admito que pensei que não sobreviveria e que nem valia a pena sobreviver. Houve sempre, porém, um instinto ferino em mim, como um animal que vocifera quando parece prestes a estar abatido. Foi meu ímpeto em proteger os mais fracos que me tornou fraco, mas quando deixei tudo isso para trás e resolvi o que havia para resolver, reergui-me como por mágica. É estranho o quanto a fase sombria me apetece e não por me provocar uma espécie de sensação de reviravolta heroica. Creio que nunca tenha aprendido tanto sobre o mundo do que sozinho no meu quarto. Acredito que nunca tenha entendido as pessoas quanto nos tempos em que minha mente parecia funcionar muito mais velozmente. Cheguei a ler o livro III da Crônica do Matador do Rei, mesmo que ele não tenha sido escrito naqueles dias e nem mesmo esteja pronto agora. 

     Nós, seres livres, somos capazes de escolher. Se optamos pela reclusão e reclamamos que estamos sós, é mero exercício de uma hipocrisia direcionada, extremamente pessoal. Construímos o que nos destrói. E tudo bem que seja assim, pois na realidade a maioria avassaladora não se preocupa como diz que se preocupa. Ver a casca basta. Se o externo está bem, todo o resto deve estar. Não vou criticar e darei de ombros se me criticarem excessivamente. Ouço até quando me importo. Refuto o que não me interessa. O interno não aguenta tinta. A história escrita não se reescreve, mas sempre continua. Ostento meus fracassos como se eles fossem mais importantes que os êxitos. É a minha tendência avessa agindo novamente. Os novos amores se findaram antes do início. Não houve deus que atendesse meus suplícios. Aprendi a rir disso. Tive bons motivos para desconfiar de todos, mas entreguei meu coração nas mãos de estranhos. Pude aprender que as noites são cheias de tesouros improváveis e maravilhosos. Conquistei-os. Nunca havia imaginado recomeços, mas recomecei. Nunca havia imaginado que me perdoaria pelas minhas falhas e nem que perdoaria os que falharam comigo, mas também perdoei. Meu orgulho é obstinado, mas não insensato. Sou consciente de meu valor e por isso sempre agradeço. Nos dias ruins, porém, eu me esqueço. Hoje tenho plena consciência de que não preciso buscar por saídas. Encontrei pelo menos cinco pessoas nas quais posso confiar a minha vida. Meu lado certo é o avesso e assim vai ser para sempre. 

     Olhos no alto, tênis no asfalto. Não há problema em ser diferente. Habilidoso em imaginar, eu vi ontem mesmo despencar, lá do alto uma estrela cadente. Eu a segurei e fui preenchido por uma sensação quente. Meus olhos direcionados para o céu, eu desejei apenas saltar e nunca mais tocar o chão. Se eu pudesse voar, eu sinto que se dissiparia de minha alma essa implacável solidão. 

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Estrelas fixas

     Fui até a farmácia andando. Eu precisava comprar dois remédios e gosto de caminhadas, assim, não vi problema qualquer em me exercitar um pouco, quebrando essa espécie de morbidez que me tornou letárgico no dia de hoje. Pensei em não levar o celular, pois eu me lembrava do nome dos remédios e acaso fosse assaltado, bom, eu não perderia meu aparelho. Mudei de ideia instantes antes de deixar o apartamento e parti. Era bom correr algum risco, fingir-me preocupado com algo improvável, supor que alguém tentaria me machucar ou me roubar. Recordei-me da única ocasião qual caminharam estranhamente na minha direção com uma faca, mas era uma moradora de rua idosa e ela nunca me alcançou. Surge em meu semblante um sorriso discreto, como se essa fosse uma espécie de recordação doce, mas é puramente um reflexo ocasionado por palavras. Quando alguém caminha mal intencionado na sua direção com uma faca, você teme. Ri da memória e posteriormente ri do passado. Tudo soa como uma piada amarga. Foi em uma noite num bairro rico, depois do shopping, onde havia árvores altíssimas. Provavelmente elas ainda estão por lá. Aos domingos várias famílias levavam seus cães para uma volta ou duas, mas numa dessas improváveis noites de sábado onde nada acontece, eu poderia ter morrido. Segredei ao meu irmão mais novo o lugar qual guardo todos os meus projetos e fiz com que ele me prometesse que publicaria ao menos um de meus livros. Sobrevivi e me senti com sorte. Quão devaneante posso ser quando não faço questão de me manter neste mundo? Quão distante posso ir sem correr o risco de mergulhar fundo?

     Ando com passos rápidos, pois é assim que me acostumei ao longo da vida. Respirei esta noite de terça-feira, mas ela só tinha cheiro de fumaça da sobaria que fica aqui na região. Talvez não fosse uma má ideia comer sobá, mas desanuvio a minha mente para focar em coisas práticas. Sem nuvens nos pensamentos, sem nuvens no céu. O vento é gelado e quando noto as estrelas, desacelero-me, vou devagar. Um poema do Leminski recém decorado me ocorre, chama-se Estrelas Fixas, pego-me quase sem perceber, recitando-o baixinho...



Aqui sentiram centenas
As penas que lhes convêm.

Sentindo cena por cena,
alguém lembrou de um poema
que lhe lembrava de alguém.

Rimas mil girem vertigens
sinto medos de existir. 
Estes versos existirem,
já não preciso sentir. 

     Nunca cansei de me surpreender com as pequenas mágicas, tal qual nunca me importei em desvendar grandes tramas. A minha alma quando calma, quase nunca se agita na mesma semana. Olhei para o firmamento e desisti de entender. Senti o passar do tempo e me senti envelhecer. O meu rosto mudou um pouco e meu tom de voz parece mais rouco. Ainda nunca fumei um cigarro comum, mas dou de ombros. Vou encontrar a libertação no gesto do primeiro cigarro no momento certo. É certo de que minha face outrora foi mais bela. Recordo-me dos vinte anos e de como não usei a minha beleza em meu favor. Matei o que costumam chamar de aventura, pois acreditava viver a maior das aventuras. Amor também acaba, sim, senhor! Quando chegar ao fim desta estrada, será preciso iniciar uma nova jornada, não fique estagnada, peço, por favor. Andei atrasando o relógio para ver se tudo voltava a parecer certo. Andei me sabotando para sentir que certas coisas ainda jaziam perto. Cheguei na farmácia, peguei os remédios e saí. Segurei a sacola como quem segura a vida. Forçando um falso temor de perdê-la, apliquei mais força do que precisava. Senti minha mão se tencionando e meus músculos todos reagindo ao emprego exagerado de força. Suspirei e aliviei a pressão. Quase rasguei a sacola plástica e não sei explicar a razão. É assim que é, pois é assim que é. Viver é abstenção em si mesmo? Sofri minhas dores e perdas em loops que pareciam infinitos. Demorei a encerrar um antigo amor, pois um dia se apresentou como o mais bonito. Até que entendi meu papel. Somos quem somos, mas ainda somos quem temos a expectativa de ser simultaneamente com a nossa ideia de nós mesmos nos outros. 
     Interrompo a minha caminhada e me apoio em uma árvore notável. Deve estar aqui há pelo menos vinte anos. Viverá até muito depois de minha morte, se não a forçarem para baixo. Observo a cidade e suas luzes. Um prédio próximo têm mais de suas janelas iluminadas. Olho-o por dois ou três minutos, mas ninguém se esgueira na janela para ver a noite enluarada. Anoiteço também, pois meu corpo lumia e vira breu em horários distintos. Sou tomado de ímpetos maus, vorazes e famintos. Força-se em mim uma vontade que posso derrotar: ataque, fira, machuque! Respiro fundo e posso me acalmar, essa agressividade não é nada que eu não eduque. Estava escrito hoje mesmo no livro qual ainda não encerrei a leitura "A bondade vem de dentro, 6655321. Bondade é algo que se escolhe. Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser um homem". Reflito, repenso-me, olho e enxergo. A vida é como é. Carros passam e eu fico. Lado a lado com fantasmas, eu finalmente me fixo. Talvez exista um lugar confortável para cada um de nós. Talvez um dia ouçam minha tão incompreendida voz. Apesar dos pesares e das dúvidas que pairam, eu agradeço por ter a opção de escolher. 

     Interlúdio. O criador de universos observa. A invernia se espalha pelos quatro cantos. O lobo uiva celebrando a sua solidão. É solitário, mas não se preocupa. Os fantasmas aparecem e somem. A confiança é um prato que se come frio. 

     Uma mulher se esconde bem, mas eu a enxergo. Enrolo-me com as palavras e ela também. Parece simpática aqui diante de mim. Capturo-a em memória. Pelo menos nesta lembrança, ela não pode atuar de maneira diferente. Não me aproximo mais, pois ela parece querer distância. Conheço esse jeito fugaz e felino. Arisca, ela permanece sozinha e acredita que esse é seu destino. Não se perdoa pelos erros que cometeu e nem percebe que a vida já engoliu tudo. Fui engolido também. A gente se levanta, vê? Tudo bem, tudo bem... Ela não sabe, mas eu já a vi outras vezes. Talvez ela nem se indague, porém, sou uma espécie de príncipe dos reveses, embora ninguém se reveze nunca comigo. Nunca deixo meu trono assim sou alvo fácil para ser atingido, mas não caio. Eu olho e vejo, mas desaprendi a agir. Talvez o único interesse cultivado seja o jamais tocado. Da primeira vez que a vi, completamente alheia ao mundo, certamente alguns nem a notaram. Contraponto dos brilhos mais brilhantes, discreta ela captou meus olhos ligeiros. Rio de mim. Sou uma espécie de piada sem fim. Derrotado em campos de batalha sem fim, eu fui o último da linha de frente a cair. Fracasso e não me esqueço. Humilde, eu agradeço pelas minhas lições. Foi assim que aprendi a tocar diversos corações. 

     Volto a caminhar. Chego em casa alguns minutos depois. O dia foi pesado. A raiva qual havia sentido mais cedo é agora mais fraca. Cônscio de mim, eu sei que preciso descansar. A fúria que me acometeu foi justa, mas a tristeza que fica depois do tumulto me pertence. Certos desgastes são inequivocamente individuais. Cumprimento meu cachorro tão cheio de energia ao me encontrar mais uma vez. Minha gata também me saúda. Volto até a janela. As estrelas não saíram do lugar. Estão fixas no céu como se pregadas em um mural. As pessoas não mudaram. Não estou surpreso. Todos valem meu tempo? As pessoas merecem tanta dedicação? Valem mesmo a pena? Eu ainda quero mudar o mundo agora. Será que ainda vou querer coisas melhores quando amanhecer amanhã?