sexta-feira, 22 de março de 2019

Assunto perdido

   Certa vez, pediram-me para que me afastasse. Bom, você sabe, um clichê, um clássico... “São dois mundos diferentes e há, obviamente, líquidos que não foram feitos para se misturar”. Ainda que eu soubesse de nossa solidez, preferi me calar. Gosto disso, confesso, pueril como sou e continuo sendo, pois é só como posso ou quero ser. Falem comigo utilizando poesia, por favor. Ataque com maestria exatamente onde me deixaram ferido em nome do amor. Diga que eu poderia chorar oceanos ou uivar para a lua cheia e diga que nada disso adianta. Diga que nas noites de frio quando me pune o vazio, você não me ofereceria nem uma manta. Diga que eu escureci sua alma e me torne responsável por aquilo que nunca cativei. Toda dor é egoísta e todo sofrimento é singular, eu sei. Quem se interessa em se interessar? Eu me preocupo e por tal fato sou ridículo. Sou bom leitor, pesa-me esta maldição, pois leio sempre as entrelinhas, mesmo na escuridão. O que te assusta cabe em meu coração. 

   Um olhar certeiro e um sorriso de canto de boca. Uma prece muda quando se vão todas as roupas. Um iminente perigo e um assunto perdido. O que acontece com a gente quando a gente não deixa nada acontecer?

   Outro dia falei sobre o meu cansaço ósseo, recorda-se? Aquela exaustão profunda, mas perfeita. A sensação que me retesa, mas que é estranhamente profícua. Ainda está me acompanhando? Espero que não, mas torço para que sim. Não sei direito aonde vou, mas eu me sentiria melhor se fosse bem acompanhado. Você vê quão rápida é a vida de um inseto? A morte não faz distinção entre santos e abjetos. Nota como o mundo rasga sonhos como um escritor rasga um pedaço de papel? Ninguém por aqui pensa nas árvores e ninguém pensa no mundo. Honestamente seria capaz de odiar a todos, acaso pensassem em trivialidades nestes raros momentos de importância identificável. Qual é o problema?

   O meu problema é que sou horrível em querer o que quero querer. Quando devo falar o meu silêncio pesa indizível. Quando falo, eu sinto que era melhor me abster.

   Canso-me das opiniões alheias tão sem fundamentos e tão repletas de preconceitos. Sinto-me em lassidão e não sei se estou despencando ou se meu corpo jaz colado ao chão. O que sei não interessa a quem sabe significar o que vale a pena interessar. Todos opinam tanto que sinto um profundo vazio existencial. Um arrepio atravessa minha espinha e repouso a mão na ponta do coração, bem no impulso apical. Chame-me de Ictus Cordis ou de qualquer outra coisa, mas quando decidir meu nome, por favor, nunca se esqueça. O clima é propício e todos os tolos, inclusive eu, tentam dizer ou calar coisas. A inversão é desastrosamente comum. Geralmente falamos muito quando a situação pede silêncio e silenciamos quando devemos nos mostrar. Como falar da maneira correta se nada jamais permanece no lugar? Como dar conforto a quem nunca conheceu um lar? Como se manter sensato e saudável com tantas coisas ruins sendo feitas? Como afastar os monstros tão temíveis que jazem à espreita?

   Diálogos díspares. Um discursa sobre o universo enquanto o outro resume a vida na apoteose brega de um verso. Um fala muito e outro escuta tanto. Este acha que o primeiro quer ser temido, mas é crescente o encanto. 
- Quando foi que mudamos de assunto? Falávamos sobre o que mesmo?

   É sobre tudo e é sobre nada também. É sobre praticidade e sobre qualquer outra coisa com qualquer outro nome. É sobre um cansaço inexplicável que me atinge quando deveria estar repleto de energia e sobre a energia inexplicável que sinto quando deveria estar exausto e faço poesia. É sobre crer (quase) sozinho em coisas frágeis. É sobre um herói sem poder que salva mais vidas do que você jamais imaginaria. É sobre acreditar no que te faz ser quem você é e ser exatamente isso com a convicção de que isso leve além. É sobre fazer cursos improváveis que valorizem suas singularidades e sobre sonhos impossíveis que talvez nem devessem existir. É sobre quartos bagunçados e corações arrumados. Sobre existencialismo, excentricidades e histórias. É sobre conquistar o mundo e sobre fracassar. É sobre amálgamas discretas e poderosíssimas retidas em contos desacreditados e também sobre lágrimas que abrangem Tudo. É sobre o rosto que eu tinha antes da criação do Universo e ainda sobre o resumo que faço da vida na apoteose absurda de um verso. É, enfim, sobre fragmentos de memórias, essências e almas. É sobre amizades novas de outros continentes e outras vidas. Acima de tudo é sobre bons momentos, amor e felicidade. É sobre não ser ilha isolada, sobre as partes que nos formam. É sobre aprimoramento, construção e alegria. Perco-me novamente no que gostaria de dizer, mas entre tantos embaraços, eu tropeço, entretanto, sou duro como o aço e naturalmente formo laços: sei o que fazer. Sei que nem toda palavra rima, mas cri que minha esquecida sina é o que me traz prazer. Perdi-me noutra esquina vagando na madrugada. Cuidado por onde vira, pois essa é a hora dos fantasmas. Peguei-me rindo com a lembrança da frase: a rua é cheia de perigos. Preocupe-se quem quiser ou quem não sabe o que quer. Eu dirijo para achar o assunto perdido. 

domingo, 10 de março de 2019

Atrasos do acaso

     Pesa-me a alma um cansaço sobrecarregado de outras vidas, pairando em meus ossos como se fluísse junto com meu próprio sangue ou o integrasse. Levanto-me apenas para ações mecânicas e necessárias, mas ao que noto quando me observo fora de mim, aparento como alguém que tivesse disputado e vencido diversas corridas por uma diferença de centímetros. Encontro a minha presença física ao fitar minha imagem refletida diante do espelho. Procuro embelezar meus defeitos e vilipendiar minhas qualidades. É este cansaço que me pesa e que me faz ser como os bichos de rua. Tal como eles quase sempre me falta o afago certo, mas é comum a palavra ríspida dita de perto, até daqueles que possuem boas intenções. 

     O fantasma anda pela praia. Tenta recolher conchas, mas não é capaz de erguer nada. De que vale existir quando não se pode tocar?

     Pesa-me na existência uma fraqueza com cheiro de morte, porém, basto-me em essência e confio na sorte. Ultimamente, eu devo confessar, olhei para tantas coisas da maneira errada. Só queria que o meu convencimento bastasse, mas todos sabem o que dizem sobre a emoção: é melhor contê-la. Eu e você, impossível? Não é motivo para não querê-la. Pesa-me a pungência de cada pensamento singular, de cada coisa fora do lugar, de cada roupa que esqueci de lavar. Resmungo, mas não admito por birra e apego: sou feliz agora, pois tenho superado o medo. Fiz alguns amigos e eles não sabem o quanto me ajudaram. Torna-me leve esta lembrança e o peito estufado solta um suspiro cheio de esperança, mas sei que é ainda cedo para acompanhá-los nas danças. 

     O fantasma vê uma figura ao longe e acelera seus passos translúcidos. Cada onda se assemelha com uma tsunami, mas a água atravessa seu corpo sem arrastá-lo. Ele precisa alcançar aquela imagem. 

     Atraso por razões quais desconheço. É muito cedo, portanto, não faço alarde. Derramo-me em mim e sinto meu cansaço novamente. Minha alma busca por voz e espaço, porém, quando checo o relógio já é tarde. Levo broncas bem humoradas, mas minhas melhores companhias já estão ficando acostumadas. Sorrio e evito provocações. Sou autêntico em existir e todos conhecem meus pontos fracos, mas faço das minhas vulnerabilidades o meu maior escudo, quando me atacam, eles sempre mostram tudo, mas dificilmente me levam ao chão. Quando caio, é óbvio, eu preciso de um tempo para me recuperar da dor da queda, mas minha teimosia anda lado a lado com a valentia. Cônscio de mim, mas sem entender de onde tirei novas energias, agora estou de pé e com os punhos cerrados. Sorrio presunçoso, pois ainda que não saia vitorioso, o adversário se assusta com o fato de eu ter levantado. É assim que deve ser. Somos mais do que a história de escória narrada sobre nós. 

     O fantasma alcança a imagem, desfaz-se diante de seus olhos opacos a miragem, tudo o que há é o mais novo do que há de velho. Diante da imagem refletida, ele reconhece que pode ler a mensagem dolorida, o que revela o espelho é seu próprio reflexo. Um fantasma precisa de nexo? Ele se vira e parte em outra direção. Até mesmo os invisíveis querem sentir bater o próprio coração. 

     A vulgaridade de querer saber tudo quando nada se sabe é o que nos define. Se a sua intenção for crua e má, tome cuidado para não se machucar, nem tudo o que eleva te torna sublime. Aos olhos de quem não sabe ou não quer ver como se deve, um floco de neve é mero grão de poluição. Atente-se. Da perspectiva dos amargurados toda festa é uma oportunidade equivocada de reunião, toda demonstração de afeto não passa de expressão falsa de ternura dos abjetos, só pelo fato de que a amargura cega a sensação. Não acredita no amor, mas acredita na zombaria traiçoeira. Por onde é que andou sua cabeça enquanto seu corpo se movimentava sem que você pudesse comandá-lo? Reúna suas partes e não se esqueça daquilo que te fez ser quem é hoje. 

     O fantasma encontra outras formas quase tão invisíveis quanto ele. Decide tocá-las, por instinto, pois se recorda de que não consegue sentir. É quando se surpreende e cada contorno começa a ganhar forma. Essas novas sombras se revelam e o fantasma sente que fez tudo o que era possível e tudo o que era preciso. Sente brotar no seu rosto o lumiar de um esquecido sorriso. 

     Não podemos tocar o que nem está ao nosso alcance. Qualquer vislumbre de algo assim é apenas outro devaneio distante. Qualquer sonho vívido é uma lembrança perdida nos campos de centeio. Qualquer sonho acordado é cheio de significado alheio. Pare. Veja o que acontece ao seu redor e esqueça tudo o que se esqueceu de você. Seu valor é imensurável! Não se trate com menos amor do que deve, mantenha a compostura, seja forte e corajoso. São estes impulsos básicos que me lembram de que é a singularidade que me torna poderoso. Os ponteiros se movimentam e noto que o relógio da minha vida voltou a funcionar. Os românticos são mais lentos no começo e no fim, mas quem é que pensa que algum dia vai me tirar de mim? Estão errados. A vida é uma só e é fugaz, pois que todo descanso seja breve e que sua vida agora seja leve e repleta de paz. 

     O fantasma não se parece mais como antes. Retirou a máscara encarando o espelho diante de si e outros imitaram seu gesto. Ele não parou para contar, pois nunca havia desejado aquilo. Outra parte sua admitia: "é o que sempre quis". Todos se olhavam nos olhos, livres do tom tipicamente acusatório, olhos dançantes, línguas vibrantes, gente realmente feliz. 

     Atraso outra vez, mas nunca perco o tempo das coisas importantes. Há tanta gente que não se responsabilize pelo que fez e acha que tudo um dia volta a ser como antes. Estão errados. A certeza é um impulso grosseiro e arrogante. Sinto falta de coisas que nem cheguei propriamente a ganhar ou a perder. Sei de coisas que não sei, mesmo antes de nascer? Não. Ainda assim sou certo nas horas de incertezas. Exige-me o excesso, mas sou o andarilho discreto, colecionador de sutilezas. O que me deixa em letargia? Qual o nome do monstro que transformou minhas ofensas em poesia? Canso-me e meu cansaço pesa a alma. Sorrio aliviado e a única certeza que preciso ter antes de dormir é de que a vida é fugaz e que a madrugada me acalma. Abandono-me, enfim, pelo meu merecido sono. O que está feito nunca se desfaz. Às vezes é necessário chegar na hora certa. 

Atrasos do acaso
Cuidados
que não quero mais
O que era pra vir
veio tarde
E essa tarde não sabe
do que o acaso é capaz. 

Paulo Leminski.



quarta-feira, 6 de março de 2019

Chave e porta

     É difícil, tudo bem? Evite ficar por perto, pois eu... Eu...

     Sou cauteloso e simultaneamente descuidado. Ainda há certas iscas que deixam em meu caminho, pois sempre acham que vou morder. A culpa é minha, pois escolho ser o que sou e só sei ser de maneira espontânea. É fácil que me vejam e não é tão difícil que me enxerguem, acaso realmente prestem atenção. Quando tudo é simples, eu pareço complicar. Quando tudo é complicado, eu pareço simplificar. Quem é tolo, afinal, para entrar em uma armadilha cônscio de que vai se machucar? 

     É que às vezes a gente quer sentir machucar para saber que ainda vive. É que às vezes a gente prefere inventar pelo puro prazer de dizer: eu já tive! É que às vezes a gente não gosta mais, mas se acha no direito de continuar possuindo. É melhor ter alguém pra abraçar do que admitir que não está mais sentindo... 

     Tenho respondido de maneira invertida. Bagunçaram a minha cabeça. Ela que costumava ser tão cética, precisa e racional. Agora vivo como se não existisse necessidade de sentir medo. Existe? Qualquer dia desses vou acordar e não vai restar nem a sombra do que há. Qualquer dia desses tudo fica ainda mais fora do lugar. A qualquer momento nem acordar vou. O que tenho dito mesmo? Só vale a pena viver em nome do amor? Sou, em regra, muito humano para ser exato, mas por vezes sinto que sou demasiadamente exato para ser humano. Toda alma clama por libertação e por exterioridade. É que lá no fundinho todo mundo só deseja ser exatamente aquilo que é. Soa fútil? Dói tanto assim?

     Acumulei tantos fracassos, que tinha meu rosto, mas não meus passos, aquela aparição. Não havia tempo e sequer espaço, apenas face, sem cansaço, desprovido das marcas velhas de tantas centelhas de toda minha preocupação. Só faltava o nariz de palhaço para combinar com meus andrajos circenses. Assim, eu me desfaço. Desfaleço e sinto o corpo bater contra o chão, mas nem sei se a dor me pertence. Sou um inteiro em mil pedaços, recolher é colocar a mão em afiados cacos, arriscando o corte profundo, sangue escuro, destruição. 

     Você deve ser prático. A jornada é sempre repetida. Alguns sofreram mais e outros sofreram menos. Alguns sofrerão mais e outros sofrerão menos. Você espera palavras de conforto, mas no íntimo você admite aqueles antigos impulsos egoístas e repete baixinho, quase de maneira inaudível, um sussurro manso...

     
Que é que sou eu que tanto mereço, que de memória perfeita ainda me esqueço e, fatalmente, deleito-me em sonhos lúcidos no trono da solidão? A ação é o instinto da fé? Sozinho vou por onde quiser? Que é que sou, que mesmo sendo, ainda não sei exatamente o que ser? Existe quem sofra como eu devaneando em planos distantes sobre o dia em que vai vencer? Eles não sabem. É que ninguém sofre como eu. 

     E é claro que você está com a razão. Ainda que seja mudo alguém dará um jeito de promover a sua vituperação. Na vastidão deste mundo pirado e repleto de insanidades, você se questiona se é único ao ser verdadeiro. Na solidão que me punge à realidade, você identifica cada lobo em pele de cordeiro. Desejam descaradamente o oposto do que pedem. Querem sentir de tudo o gosto, mas o peso das ações jamais medem. Algumas roupas deixam de servir no corpo com o passar do tempo. Azar é de quem não olha nos olhos. Sorte é de quem sabe reconhecer o oportunista. Às vezes o rosto bondoso e o sorriso pomposo é a melhor máscara do vigarista. Tenho me especializado nisso, mais por instinto do que por estudos, mas temo, às vezes, ter me distanciado do mundo. Construo muros e os derrubo. Quero amar e ser amado também. Sinto-me estático, mas tenho tentado ser simpático apenas para evitar o desdém. Se tiver paciência então poderá ver minha essência e... É melhor deixar esse assunto todo de lado. Quem é que quer ser certo quando se consagra sempre o errado? Chegam-me frases absurdas de pensamentos tolos, pungentes, mas impossivelmente reais. Meditações inconsequentes de irrealidades possíveis. Tudo o que importa está atrás daquela porta, que por todas as razões certas e erradas você nunca quis abrir. Seu segredo é que foi dominado pelo medo e não quer deixar de existir. Se apega, pois não quer ser ferido. É estranho, mas hoje você sente o tanto que tem envelhecido. A empatia quase sempre é uma farsa. Sofremos quase sempre somente com as nossas próprias dores. Evitamos decisões, nunca estamos convictos, apontamos o dedo e às vezes não estamos dispostos a fazer o nosso melhor. É o vil que nos desperta. Conheço-me e desconheço ainda mais os meus sentidos. 

     Assim me equiparo aos loucos e grito até ficar rouco, pois é preciso acordar para ver além desta grande miragem. À margem da existência nós todos somos muito poucos, mas notável é nossa resistência. Para lutar basta fibra e coragem. O dia hoje soa perfeito para um novo começo. Você segura a chave. Quer abrir a porta?