Entro na casa e antes de tudo sinto o cheiro diferente de
lá. É um cheiro no qual estou prestando atenção sem perceber. Um cheiro que não
se alterará com o tempo, e que minha memória é incapaz de esquecer. Sou
recebido com muita alegria e meus irmãos e meus pais também. O sorriso largo de
minha avó Malvina me diz que estou em casa, e seus olhos escuros e alegres
dançam. Eu não sabia que futuramente só me lembraria dela sorrindo, e por isso
não presto tanta atenção. Vou ao banheiro e estou apertado para fazer xixi, mas
a privada é mais alta que eu de uma maneira que não sou capaz de urinar em pé.
O jeito é escalar o vaso sanitário, e fazer xixi sentado. O que parece uma
missão fácil não é tão fácil assim, pois o buraco do vaso é feito pra gente
grande e eu tenho que usar meus pequenos bracinhos para não cair. Com muito esforço
a minha urinada é um sucesso, mas o desafio não acabou. A pia para lavar as
mãos é duas vezes mais alta que a privada. Tento esticar meus braços e abrir a
torneira, mas falho. Achei que conseguiria porque sou o segundo mais alto da
turma do colégio, mas acabo de perceber que não sou grande o bastante. Fecho a
tampa do vaso, e me debruço na pia. Agora que consegui lavar as mãos, saio do
banheiro e sigo para a sala. O resto do pessoal já se cumprimentou, e só eu
preciso dar oi pra todo mundo ainda. Entro na sala e vou à direção do meu avô
Damião. Ele me recebe com um abraço forte, e me chama de baiano, e eu não faço
a mínima ideia do por que, mas me sinto muito feliz. Toda vez que chegamos
somos recebidos com uma espécie de festa onde todos estão se divertindo, pois
todos sempre sorriem. Falo oi para o Thalis e pro Francis, e não muito depois
vou jogar vídeo game. Minha avó que me conhece muito bem pergunta se eu quero comer
tomate com sal, e eu me empolgo muito e aceito. Geralmente peço antes que ela
me ofereça, mas hoje não foi assim. O tomate com sal foi maravilhoso e foi
muito legar jogar vídeo game. Depois de algumas horas nós estamos prontos para
ir embora. Hoje não dormirei aqui, mas quem sabe da próxima? Não tem problema.
Nós nos despedimos e eu me sinto cansado. Durmo no banco de trás da caminhonete
enquanto algum CD de sertanejo toca e só acordo quando estamos entrando na
garagem de minha casa. Na minha perspectiva inocente de criança sei que vou
dormir pesado, e agradeço a Deus porque meu dia foi perfeito.
Entro em baixo
das cobertas. É o segundo dia de viagem na fazenda do meu amigo Carlos Alberto.
A mãe dele acaba de me dar à notícia de que minha avó Malvina teve um AVC e foi
para o hospital. Eu não sei o que é AVC, mas sei que ir para o hospital não é
uma coisa boa. Já é hora de dormir, e é sabido que sou um dos meninos mais
chorões da minha idade, mas não assimilo a notícia imediatamente. Espero até
que o Carlos Alberto e o outro Daniel durmam. Quando acho que eles estão
dormindo começo a chorar. É engraçado o quanto acredito em Deus, pois peço para
ele fazer com que minha avó melhore enquanto as lágrimas continuam a escorrer.
Choro por algumas horas, mas na verdade só se passaram alguns minutos. Continuo
chorando até meus olhos pesarem e adormeço.
Acordo e tomo
café da manhã. Acho que quinze dias se passaram desde o dia que voltei da
fazendo do Carlos. A fazenda dele era muito legal, e tinha até uma coruja na
entrada, mas tenho mais o que fazer do que me lembrar disso. Assisto Digimon e
subo as escadas. Sento na cadeirinha de madeira, e agora estou jogando vídeo
game. Sempre me divirto com esses jogos, e sou o melhor jogador de vídeo game
da minha turma na escola. Não é fácil vencer o Victor Hugo e o Jorge no Super
Smash Bros, mas sempre venço. Acho que são dez horas da manhã, e minha mãe sobe
a escada sorrindo dizendo que tem uma surpresa, e minha avó aparece atrás dela.
Sorrindo ela abre os abraços e espera ser abraçada, e é exatamente isso o que
acontece. Não sei se pausei o vídeo game, mas não importa. Ela superou o AVC e
foi liberada e não precisa mais ficar no hospital. Tudo vai ficar bem agora.
Tudo vai ficar bem...
Acordo e existe um
clima estranho pairando no ar. Há visitas em excesso na casa. Eles são família,
mas sempre avisam antes de aparecer e não costumam aparecer tão cedo. Minha mãe
chora muito, mas ninguém chega perto de mim para me dizer o que acontece. Meu
primo Francis está sentado na escada, e ele enterra sua cabeça nas palmas de
suas mãos. Passo por ele, pois ele certamente não quer conversar. Vi o Thalis
passando, e tive a certeza de que ele tinha chorado muito. Agora fico
preocupado porque meu primo Thalis é sempre sorridente e alegre. Passo por mais
pessoas, mas todos escondem seus rostos e não consigo identificá-los. Encontro
meu tio Etiene, e ele tem um comportamento diferente dos outros. Se alguém já
me deu a notícia do dia sinceramente não me lembro, mas sei que ele vai falar
comigo e que eu não vou esquecer. Os olhos do meu tio Etiene estão carregados
de lágrimas, e parece que ao menor sopro ele vai desabar, mas de algum jeito
ele se segura. Ele está tentando ser o homem naquela situação. Um dia nós dois
saberemos que todo homem também chora, e que não existe vergonha em chorar em
uma situação como aquelas. O dia demora a passar, e ele parece inteiro cinza.
Não argumento com Deus, mas não entendo também. Nunca mais vou ver minha avó?
Ela nunca mais vai me preparar tomate com sal? Isso não faz sentido. Já não sei
se tudo vai ficar bem agora. Acho melhor perguntar para o meu pai, pois ele é
sempre o homem certo e vai saber o que dizer. Quando vejo que meu pai também
chorou hoje percebo que desta vez nada vai ficar bem. Nunca mais vou ver a
minha avó? Isso não deve ser verdade. A qualquer momento ela vai subir a escada
e interromper meu vídeo game, e vai sorrir de novo, e tudo vai ficar bem outra
vez. Vai sim. Eu sei que vai.
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Quase uma década e meia se passou, e tudo mudou tanto. Volto
ao lugar sagrado da casa dos meus avós, e desta vez a primeira coisa que faço é
cumprimentar meu tio Etiene, a esposa dele Kácia, e meu primo Francis. O tempo
passou tão rápido que o Francis já se tornou pai, e o Thalis não mora mais
aqui. O que eu sei é que a casa tem o mesmo cheiro, mas nunca mais vai ser a
mesma. Talvez a casa esteja igual e eu tenha mudado drasticamente. Minhas constantes
reflexões me fazem crer que são as duas situações simultaneamente. Vou ao
banheiro e agora consigo urinar em pé tranquilamente. Curvo meu corpo para
lavar minhas mãos, pois a pia agora é muito baixa. Tenho 1,87m de altura e
minha cabeça ultrapassa a altura do espelho. A privada já não é capaz de me
engolir, e o banheiro não me parece mais gigante. Na realidade agora ele me
parece muito pequeno, mas eu sei que o homem que vejo no espelho era um menino
se esforçando para alcançar a pia não muito antes. Aqui o passado, o presente e
o futuro se encontram. Molho o rosto para desanuviar meus pensamentos, e sigo
para o quarto do meu avô Damião. Ele está deitado, e sofrendo. Usa fraldas, e
sondas no corpo. Ele não se alimenta sozinho e não é capaz de se mover e nem de
falar. Já não faz nada sozinho e está assim há alguns anos, e é difícil de ver,
mas toda vez que o vejo tenho certeza de que é o homem mais forte que conheço. Por
mais que não faça nada sozinho, seu cérebro funciona perfeitamente. Imagino o
quão ruim deve ser estar preso no próprio corpo, mas um vislumbre é o
suficiente para me deixar mal. Quando ele crava seu olhar no meu, encaro-o de
volta fixamente.Tenho um arrepio, mas não desvio os olhos. Ele tenta me dizer
algo com o olhar, e acho que estou perto de entender, mas ainda não entendo. Por
isso peço desculpas ao meu avô Damião. Perdão, vô, pois queria te entender de
verdade e não consigo. Queria te ouvir me chamar de baiano mais uma vez, e
ouvir seu riso. Depois que a vó foi embora às coisas ficaram mais difíceis para
todo mundo, mas eu juro que toda vez que fraquejei fui capaz de levantar. Vou
tentar para o resto de minha vida ser um homem duro na queda como você é vô
Damião. Vou te dizer isso na próxima visita. Estou crescendo ainda, vó. Já ouvi
do meu irmão mais velho que estou me tornando um homem maravilhoso, e receber
um elogio de um cara como o Caio é algo muito especial. Lembra o quanto nós dois brigávamos? Talvez seja difícil de
acreditar, mas nos tornamos melhores amigos. Tive alguns espelhos no meu
crescimento, e eventualmente alguns exemplos bons se tornaram ruins. Espelhos
quebrados não dão azar, mas espalham-se em milhares de cacos. Mesmo se você
conseguir colar quase todos os pedaços não vai ver a imagem refletida da mesma forma.
Percebi depois de tentar um pouco que juntar os cacos não valia a pena. Eu
estava olhando no momento em que todos os espelhos quebraram, e sei como fazer
para não me deixar quebrar no futuro. Fiz uma coisa fantástica para que fique
gravado: parei de chorar. Choro muito raramente (não chorei em Marley & Eu e nem em Sempre Ao Seu Lado), mas hoje sou conhecido
de uma maneira diferente da de antigamente. Perdi algumas pessoas da minha vida
por ser muito sincero, e fiz algumas escolhas boas e outras ruins, mas o
importante é que raramente repito meus erros e por isso amadureço rápido. Ser
diferente nesse mundo é penoso. Muitas vezes ser diferente significa que você vai ser posto a prova,
mas nenhuma prova foi capaz de me derrotar. Espero que esteja orgulhosa de mim,
vó. Não me sinto bobo de escrever um texto para minha avó falecida, pois sou o
que sinto, e senti vontade de escrever. Não tenho ido tanto à igreja como
quando pequeno, mas se não estou tanto com Deus, Ele nunca esteve tanto comigo.
O meu caminho é uma linha reta, e sou leal aos princípios que aprendi com minha
família (inteira) e com as minhas experiências. Coragem, lealdade,
perseverança, humildade. A família por parte de pai era considerada rica, e a
de mãe considerada pobre, em termos financeiros, e viver em dois mundos me
ajudou a crescer entendendo um pouco do que é a realidade. Tenho orgulho do meu
avô pedreiro e do meu avô empresário, e tenho orgulho da minha avó concursada e
da minha avó dona de casa. Muito orgulho. Estou começando a me tornar o homem
que quero ser para o resto de minha vida! Vó, o Matheus é um dos caras mais
inteligentes que já conheci, e entrou para o livro dos recordes como o homem
com o maior dedão do pé aqui do Brasil. Talvez ele acabe dominando o mundo
eventualmente, pois é sociável e tem um coração enorme, mas ao mesmo tempo é um folgado de primeira categoria. Sou um sujeito legal, vó, mas não sou fácil. Tento pensar primeiro no bem dos
outros, e sei que isso é meio suicida, mas é assim que sou. O mundo anda tão
mal que seria impossível descrever de uma maneira simples, mas eu sou desses
que sonham com um lugar melhor para se viver. Sonho que as pessoas se entendam
e parem de brigar tanto, e que sejamos capazes de novas realizações através do
amor e de tudo que advém dele. Quero colocar no coração das pessoas mais força de vontade e mais amor... Alguns me chamam de moralista. Alguns me chamam
de altruísta. Eu não me chamo de nada. Sou só o Daniel. E vou sendo o Daniel
enquanto puder ser. Fui Daniel ontem, sou hoje e vou ser amanhã. Procuro exercitar a empatia e me colocar no lugar dos outros para não ser tão duro ou injusto. Falo com a voz
fininha com meu cachorro Link (que um dia vai ganhar um textão também), e
procuro tratar bem todos que conheço. Espero que estejam orgulhosos de mim
hoje, mas garanto que vou buscar meus sonhos e um dia terão muito mais motivos
para ter orgulho. Sinto sua falta, vó. Escrevi isso tudo para você que está longe, mas nunca longe o bastante para ser esquecida. Amo você muito, vó Malvina. Amo você muito, vô Damião. Obrigado por tudo!
Obs: Minha mãe está bem, vó. Fez um trabalho Nota 1000 nos
criando. A mulher é a mistura perfeita entre você e o vô. Hoje ela se revoltou
porque queimou uma fornada de pães de queijo, mas faz um café divino todos
os dias e têm moral comigo. Também vive dizendo que já sou um grande homem e
que tem muito orgulho de mim. Estou fazendo as coisas certas. Continue olhando
por mim. Se eu tiver longevidade sei que farei grandes coisas por aqui. Fique
bem!
Desejo uma boa semana para quem leu meu texto (e pra quem não leu também).
Não é um texto muito no meu estilo, mas senti vontade de escrever diferente e para minha avó.
Não farei quaisquer correções ou revisões, pois estou cansado e desta vez não
estou preocupado com a gramática. Então fiquem bem e sejam gentis e amáveis! Beijos!
"Mera mudança não é crescimento. Crescimento é a síntese de mudança e continuidade, e onde não há continuidade não há crescimento". C.S Lewis.
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