domingo, 10 de março de 2019

Atrasos do acaso

     Pesa-me a alma um cansaço sobrecarregado de outras vidas, pairando em meus ossos como se fluísse junto com meu próprio sangue ou o integrasse. Levanto-me apenas para ações mecânicas e necessárias, mas ao que noto quando me observo fora de mim, aparento como alguém que tivesse disputado e vencido diversas corridas por uma diferença de centímetros. Encontro a minha presença física ao fitar minha imagem refletida diante do espelho. Procuro embelezar meus defeitos e vilipendiar minhas qualidades. É este cansaço que me pesa e que me faz ser como os bichos de rua. Tal como eles quase sempre me falta o afago certo, mas é comum a palavra ríspida dita de perto, até daqueles que possuem boas intenções. 

     O fantasma anda pela praia. Tenta recolher conchas, mas não é capaz de erguer nada. De que vale existir quando não se pode tocar?

     Pesa-me na existência uma fraqueza com cheiro de morte, porém, basto-me em essência e confio na sorte. Ultimamente, eu devo confessar, olhei para tantas coisas da maneira errada. Só queria que o meu convencimento bastasse, mas todos sabem o que dizem sobre a emoção: é melhor contê-la. Eu e você, impossível? Não é motivo para não querê-la. Pesa-me a pungência de cada pensamento singular, de cada coisa fora do lugar, de cada roupa que esqueci de lavar. Resmungo, mas não admito por birra e apego: sou feliz agora, pois tenho superado o medo. Fiz alguns amigos e eles não sabem o quanto me ajudaram. Torna-me leve esta lembrança e o peito estufado solta um suspiro cheio de esperança, mas sei que é ainda cedo para acompanhá-los nas danças. 

     O fantasma vê uma figura ao longe e acelera seus passos translúcidos. Cada onda se assemelha com uma tsunami, mas a água atravessa seu corpo sem arrastá-lo. Ele precisa alcançar aquela imagem. 

     Atraso por razões quais desconheço. É muito cedo, portanto, não faço alarde. Derramo-me em mim e sinto meu cansaço novamente. Minha alma busca por voz e espaço, porém, quando checo o relógio já é tarde. Levo broncas bem humoradas, mas minhas melhores companhias já estão ficando acostumadas. Sorrio e evito provocações. Sou autêntico em existir e todos conhecem meus pontos fracos, mas faço das minhas vulnerabilidades o meu maior escudo, quando me atacam, eles sempre mostram tudo, mas dificilmente me levam ao chão. Quando caio, é óbvio, eu preciso de um tempo para me recuperar da dor da queda, mas minha teimosia anda lado a lado com a valentia. Cônscio de mim, mas sem entender de onde tirei novas energias, agora estou de pé e com os punhos cerrados. Sorrio presunçoso, pois ainda que não saia vitorioso, o adversário se assusta com o fato de eu ter levantado. É assim que deve ser. Somos mais do que a história de escória narrada sobre nós. 

     O fantasma alcança a imagem, desfaz-se diante de seus olhos opacos a miragem, tudo o que há é o mais novo do que há de velho. Diante da imagem refletida, ele reconhece que pode ler a mensagem dolorida, o que revela o espelho é seu próprio reflexo. Um fantasma precisa de nexo? Ele se vira e parte em outra direção. Até mesmo os invisíveis querem sentir bater o próprio coração. 

     A vulgaridade de querer saber tudo quando nada se sabe é o que nos define. Se a sua intenção for crua e má, tome cuidado para não se machucar, nem tudo o que eleva te torna sublime. Aos olhos de quem não sabe ou não quer ver como se deve, um floco de neve é mero grão de poluição. Atente-se. Da perspectiva dos amargurados toda festa é uma oportunidade equivocada de reunião, toda demonstração de afeto não passa de expressão falsa de ternura dos abjetos, só pelo fato de que a amargura cega a sensação. Não acredita no amor, mas acredita na zombaria traiçoeira. Por onde é que andou sua cabeça enquanto seu corpo se movimentava sem que você pudesse comandá-lo? Reúna suas partes e não se esqueça daquilo que te fez ser quem é hoje. 

     O fantasma encontra outras formas quase tão invisíveis quanto ele. Decide tocá-las, por instinto, pois se recorda de que não consegue sentir. É quando se surpreende e cada contorno começa a ganhar forma. Essas novas sombras se revelam e o fantasma sente que fez tudo o que era possível e tudo o que era preciso. Sente brotar no seu rosto o lumiar de um esquecido sorriso. 

     Não podemos tocar o que nem está ao nosso alcance. Qualquer vislumbre de algo assim é apenas outro devaneio distante. Qualquer sonho vívido é uma lembrança perdida nos campos de centeio. Qualquer sonho acordado é cheio de significado alheio. Pare. Veja o que acontece ao seu redor e esqueça tudo o que se esqueceu de você. Seu valor é imensurável! Não se trate com menos amor do que deve, mantenha a compostura, seja forte e corajoso. São estes impulsos básicos que me lembram de que é a singularidade que me torna poderoso. Os ponteiros se movimentam e noto que o relógio da minha vida voltou a funcionar. Os românticos são mais lentos no começo e no fim, mas quem é que pensa que algum dia vai me tirar de mim? Estão errados. A vida é uma só e é fugaz, pois que todo descanso seja breve e que sua vida agora seja leve e repleta de paz. 

     O fantasma não se parece mais como antes. Retirou a máscara encarando o espelho diante de si e outros imitaram seu gesto. Ele não parou para contar, pois nunca havia desejado aquilo. Outra parte sua admitia: "é o que sempre quis". Todos se olhavam nos olhos, livres do tom tipicamente acusatório, olhos dançantes, línguas vibrantes, gente realmente feliz. 

     Atraso outra vez, mas nunca perco o tempo das coisas importantes. Há tanta gente que não se responsabilize pelo que fez e acha que tudo um dia volta a ser como antes. Estão errados. A certeza é um impulso grosseiro e arrogante. Sinto falta de coisas que nem cheguei propriamente a ganhar ou a perder. Sei de coisas que não sei, mesmo antes de nascer? Não. Ainda assim sou certo nas horas de incertezas. Exige-me o excesso, mas sou o andarilho discreto, colecionador de sutilezas. O que me deixa em letargia? Qual o nome do monstro que transformou minhas ofensas em poesia? Canso-me e meu cansaço pesa a alma. Sorrio aliviado e a única certeza que preciso ter antes de dormir é de que a vida é fugaz e que a madrugada me acalma. Abandono-me, enfim, pelo meu merecido sono. O que está feito nunca se desfaz. Às vezes é necessário chegar na hora certa. 

Atrasos do acaso
Cuidados
que não quero mais
O que era pra vir
veio tarde
E essa tarde não sabe
do que o acaso é capaz. 

Paulo Leminski.



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