quarta-feira, 6 de março de 2019

Chave e porta

     É difícil, tudo bem? Evite ficar por perto, pois eu... Eu...

     Sou cauteloso e simultaneamente descuidado. Ainda há certas iscas que deixam em meu caminho, pois sempre acham que vou morder. A culpa é minha, pois escolho ser o que sou e só sei ser de maneira espontânea. É fácil que me vejam e não é tão difícil que me enxerguem, acaso realmente prestem atenção. Quando tudo é simples, eu pareço complicar. Quando tudo é complicado, eu pareço simplificar. Quem é tolo, afinal, para entrar em uma armadilha cônscio de que vai se machucar? 

     É que às vezes a gente quer sentir machucar para saber que ainda vive. É que às vezes a gente prefere inventar pelo puro prazer de dizer: eu já tive! É que às vezes a gente não gosta mais, mas se acha no direito de continuar possuindo. É melhor ter alguém pra abraçar do que admitir que não está mais sentindo... 

     Tenho respondido de maneira invertida. Bagunçaram a minha cabeça. Ela que costumava ser tão cética, precisa e racional. Agora vivo como se não existisse necessidade de sentir medo. Existe? Qualquer dia desses vou acordar e não vai restar nem a sombra do que há. Qualquer dia desses tudo fica ainda mais fora do lugar. A qualquer momento nem acordar vou. O que tenho dito mesmo? Só vale a pena viver em nome do amor? Sou, em regra, muito humano para ser exato, mas por vezes sinto que sou demasiadamente exato para ser humano. Toda alma clama por libertação e por exterioridade. É que lá no fundinho todo mundo só deseja ser exatamente aquilo que é. Soa fútil? Dói tanto assim?

     Acumulei tantos fracassos, que tinha meu rosto, mas não meus passos, aquela aparição. Não havia tempo e sequer espaço, apenas face, sem cansaço, desprovido das marcas velhas de tantas centelhas de toda minha preocupação. Só faltava o nariz de palhaço para combinar com meus andrajos circenses. Assim, eu me desfaço. Desfaleço e sinto o corpo bater contra o chão, mas nem sei se a dor me pertence. Sou um inteiro em mil pedaços, recolher é colocar a mão em afiados cacos, arriscando o corte profundo, sangue escuro, destruição. 

     Você deve ser prático. A jornada é sempre repetida. Alguns sofreram mais e outros sofreram menos. Alguns sofrerão mais e outros sofrerão menos. Você espera palavras de conforto, mas no íntimo você admite aqueles antigos impulsos egoístas e repete baixinho, quase de maneira inaudível, um sussurro manso...

     
Que é que sou eu que tanto mereço, que de memória perfeita ainda me esqueço e, fatalmente, deleito-me em sonhos lúcidos no trono da solidão? A ação é o instinto da fé? Sozinho vou por onde quiser? Que é que sou, que mesmo sendo, ainda não sei exatamente o que ser? Existe quem sofra como eu devaneando em planos distantes sobre o dia em que vai vencer? Eles não sabem. É que ninguém sofre como eu. 

     E é claro que você está com a razão. Ainda que seja mudo alguém dará um jeito de promover a sua vituperação. Na vastidão deste mundo pirado e repleto de insanidades, você se questiona se é único ao ser verdadeiro. Na solidão que me punge à realidade, você identifica cada lobo em pele de cordeiro. Desejam descaradamente o oposto do que pedem. Querem sentir de tudo o gosto, mas o peso das ações jamais medem. Algumas roupas deixam de servir no corpo com o passar do tempo. Azar é de quem não olha nos olhos. Sorte é de quem sabe reconhecer o oportunista. Às vezes o rosto bondoso e o sorriso pomposo é a melhor máscara do vigarista. Tenho me especializado nisso, mais por instinto do que por estudos, mas temo, às vezes, ter me distanciado do mundo. Construo muros e os derrubo. Quero amar e ser amado também. Sinto-me estático, mas tenho tentado ser simpático apenas para evitar o desdém. Se tiver paciência então poderá ver minha essência e... É melhor deixar esse assunto todo de lado. Quem é que quer ser certo quando se consagra sempre o errado? Chegam-me frases absurdas de pensamentos tolos, pungentes, mas impossivelmente reais. Meditações inconsequentes de irrealidades possíveis. Tudo o que importa está atrás daquela porta, que por todas as razões certas e erradas você nunca quis abrir. Seu segredo é que foi dominado pelo medo e não quer deixar de existir. Se apega, pois não quer ser ferido. É estranho, mas hoje você sente o tanto que tem envelhecido. A empatia quase sempre é uma farsa. Sofremos quase sempre somente com as nossas próprias dores. Evitamos decisões, nunca estamos convictos, apontamos o dedo e às vezes não estamos dispostos a fazer o nosso melhor. É o vil que nos desperta. Conheço-me e desconheço ainda mais os meus sentidos. 

     Assim me equiparo aos loucos e grito até ficar rouco, pois é preciso acordar para ver além desta grande miragem. À margem da existência nós todos somos muito poucos, mas notável é nossa resistência. Para lutar basta fibra e coragem. O dia hoje soa perfeito para um novo começo. Você segura a chave. Quer abrir a porta?

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