terça-feira, 16 de maio de 2017

Dúvidas de Morte

O doutor havia ratificado a opinião do outro médico: eu morreria em breve. Cogitei que estivessem fazendo alguma piada dotada de um senso de humor perverso, que só os ascetas entenderiam, porém, parte de mim acreditava no que os homens contaram. Embora, de fato, seja crível ouvir que sua morte vem em breve, as palavras saem da boca de um desconhecido a quem você paga para preservar a sua saúde, e a ideia de saber da iminência da coisa sem a capacidade de alterá-la, só faz com que o crescente sentimento de impotência te mate antes de que você esteja morto. A inebriante sensação do vento no rosto já não tem o mesmo gosto. Era mais divertido quando por impulso tentava cortar os próprios pulsos e sentia o recente receio que consternava todos os alheios. Mas naquela época sempre havia um hospital. Sempre havia um anjo pecador qual evitava o mal final, e assim, brincando com a sorte, escapava da morte. A resposta e os olhares preocupados e hostis não eram mesmo assim capazes de extinguir o meu senso infantil. Embora ninguém pudesse me entender, eu sempre gostei do meu jeito de viver. 

Demonstrei o meu asco para com todos os réprobos; transformei objetos de todas as espécies em pequenas orbiculares só para cumprir com a obsessão da sensação de colocar o mundo inteiro em minhas mãos. Não queria todos aos meus pés, como muitos entenderam posteriormente. Queria colocar em pé todos os que muito sofreram. Mas é frequente nos tempos modernos a zombaria. Ridículo é se não quer o que todos queiram. Seu nome antes puro foi vituperado. Seu corpo ágil está todo machucado. O solecismo do mundo não te incomoda como antes. Os ímpios são a personificação da ironia dominante. Começamos seguindo os deuses e Deus, e veja no que isso deu. O velho arreliento lança pragas e desafios para os mais novos e deseja que morram lentamente. Os jovens não se vergonham de seu estado opróbrio. Riem do velho e lhe arremessam frutas podres. Meus olhos se prendem nesta cena por quase mil anos, e ainda não a compreendo. O mundo vai e vem, e gira sem parar, e mesmo com tantas voltas, ninguém sai do lugar. A maldita crença de que podemos fazer a diferença foi espalhada por infames professores. Taciturnos e bem vestidos, com incontáveis silogismos, querem falar sobre amores. Qual o epíteto que melhor descreveria os desgraçados? Os imbecis que fazem tudo querendo ajudar e nem são capazes de fornecer a si mesmos qualquer ajuda digna? É a incúria o mal da sociedade ou o caminho errado mais correto? Devemos abandonar aqueles que não fazem o que é certo? Não praticamos a misantropia sem saber? Fazemos o que determinam, brincamos com a nossa única vida (há controvérsias), e deixamos de fazer tudo o que deveríamos fazer por medo? O homem de preto sobe no palanque para mais uma cavilação, e mais uma vez ele será capaz de enganar toda uma nação. Aquele que erra encontra redenção? Tantas questões banais para se pensar antes de partir, e pela primeira vez simultaneamente invejei alguém e fiquei sorrindo. A única criatura de sorte é aquela que encontra a morte enquanto estava dormindo.  


Escrevi "Dúvidas de morte" há alguns meses, mas não houve interesse meu em partilhar antes. Este foi outro texto teste para que eu avaliasse se era capaz de utilizar palavras que não fazem parte do meu cotidiano. Ainda assim, espero sinceramente que vocês tenham aprovado o texto. Fiquem bem! 

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