terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Interlúdio

     Agradeci pelo dia antes que ele começasse. Foi um erro. Estou cônscio de que tudo foi péssimo: sem graça, desgraçado ou simplesmente exaustivo. Há apenas uma, preste atenção, uma partícula frágil e minúscula misturada na existência do Universo que faz com que algo tenha valido a pena no dia de hoje. Minto. Não há nada pelo qual queira agradecer. Alimentei minhas gatas como quem não esquece de regar as plantas, mas sequer me preocupei em lhes oferecer o carinho que tanto pedem. Esqueci-me de que elas não eram plantas. Qual valor tenho eu se não demonstro amor quando o tempo se fecha? Lembre-se das tão preciosas palavras e nomes e rostos e contornos. Não desista da vida, rapaz. Mantenha a cabeça erguida, pois você é capaz, mas de que adianta ter essa capacidade?

     Gente igual nunca se viu (por aí), mas meu instinto vil produz uma espécie de comoção. Emociono-me em mim. Eu mesmo sou digno de gotículas salgadas de água. Derramo lágrimas pela minha pessoa, pois sinto orgulho, pena, raiva e alegria por ser quem eu sou. Ora, você entende, mesmo quando faz questão de não querer entender, certo? Para quem perdeu o mundo inteiro ainda jovem é difícil se manter sempre desperto. Se pessoas assim se valem do sono, por que eu não posso desfrutar do meu próprio abandono? Há tanta autocomiseração ou tenho mesmo feito tudo de errado? Questionamentos inúteis e fugazes. Pessoas fúteis e afáveis. Por que é que me sinto compelido a procurar por alguém? Não posso ser feliz sozinho. Essa é a única conclusão que se mantém.

     Concluo que minha única conclusão não poderia estar mais errada e que a única coisa em que me embasei era amplamente vaga. Não, eu não preciso de pessoa alguma. Se todas as velhas presenças em minha vida desaparecerem, é preciso respirar fundo e começar de novo, certo? É preciso dar novas chances ao amor ou aos astros ou às capacidades novas sistêmicas de sistemas nem tão novos assim. É necessário acreditar que o coração, mesmo tão frágil, é o mais forte de todos os músculos e o meu é feito de material mais resistente que o vidro. Se me despedaçarem, tudo bem, eu me sinto quase exausto, mas nunca fui de me render. Levanto sem pressa, pois a morte é o único caminho para todos. Saio de casa numa noite em que pretendia ficar recostado em um canto e para meu espanto deixo que me descubram. Uma. Duas. Três. Dez pessoas me enxergam de verdade. Ofereço um cumprimento ao ouvir uma até então desconhecida dizer troféus, pois é preciso apertar a mão de gente assim. Escuto sobre O Senhor dos Anéis e há até quem fale sobre jutsus. Faço amizades ou pelo menos contato. Não é fácil. Cada demonstração de simpatia me leva à exaustão. Cada qual é tão diferente e eu não sei quem ninguém é, mas de repente ficaram mais interessantes até as músicas do Zezé. Pausa. 

     Não é necessário exagerar. Olhos nos olhos. Mãos nas mãos. Corações que foram afastados e estão distantes ou até os que nunca se encontraram podem encontrar alegria quando se (re) unem. De que raios estou falando? Não faço sentido, mas já nem sei se quero ou preciso fazer. Devaneio no passado, vivo dormindo e mal existo quando acordado. Sou ou estou errado? Deixe de lado o passado, os intrometidos vão dizer, mas que diabos eles sabem dos caminhos que levam até você? Mãos nos olhos, olhos nas bocas, corações no céu. Tremi ao fitar a nova mulher e nem pude desempenhar meu papel. Estava cheio de emoção e paráfrases prontas, mas quando chegou a hora de falar me senti uma barata tonta. Pausa. 


     Não é exagero exagerar. Tudo precisava ser mesmo assim? Se não faço interlúdios em minhas canções mudas, eu me perco de mim. Como sou saudosista! Emudeço diante da música nova e me deixo transportar para trás. Uma garota escreve anotações distraídas em seu caderno. Fito-a. Talvez seja a única brecha que ela jamais me deu. O tempo é distinto e distante. A mulher? É a que nunca conquistei. Nenhum alento foi o bastante, quem dera soubesse antes, tudo o que agora eu sei. Pausa. 


      Interlúdio. 

      Intervalo.
      Intercessão. 


      Respiro fundo após constatar que acumulei tantos fracassos, mas no corredor escuro sou capaz de escutar passos em minha direção. É um velho fantasma que possui o meu rosto, noto, porém, resolvo que não posso tomar sustos de alguém que tem a minha própria face. Sorrio. Estou melhor assim. Dane-se tudo, pois possuo os sonhos todos do mundo em mim. Sei que não tenho nada agora, mas com a longa noite chega o sono e é chegada minha hora. Se não posso ser completamente feliz nos dias, se sou às vezes tachado de incrível ou enfadonho, quando durmo sou nada e tudo, o melhor homem do mundo, eterno rei do etéreo sonho. Pausa. Troco de roupa ou não visto roupa alguma. Cubro-me com dois edredons pesados e ligo o ar-condicionado. 


      É hora de encontrar quem desapareceu.
     Boa noite. 
     

3 comentários:

  1. Muito bom o seu texto. Ainda não pude conhecer muito do seu trabalho, mas já deu pra perceber que você tem muito talento.

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  2. Parabéns amei esse texto,todos eles são tão cheio de sentir,que até arrepia!!!

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