sexta-feira, 15 de novembro de 2019

O demônio do fogo

Há um demônio do fogo 
dentro do meu ser
Desobediente
Incontrolável 
Alimentando-se de 
tudo o que se move  
Apenas para sobreviver
Há um demônio do fogo
queimando o meu coração 
Cada vez mais expansivo 
Ele urge para sair 
Cada vez mais invasivo 
Ele não quer mais dormir
Cada vez ele mais eu 
E eu mais ele
E ele ainda mais eu
do que eu ele

Mas nada
tão separado
que possa chamá-lo meu

Nós aqui divididos 
Até o dia em que seremos 
uma única coisa 
Não hoje
O resto do mundo
nunca interfere na nossa relação
Tudo o que me toca e fere
Vira carvão 
Até minha própria pele
às vezes parece vulcão
Sou um eco solto de
Destruição
Nunca sozinho
Duplamente
em ebulição
Quebramos todas
nossas leis 
Há este demônio do fogo 
convivendo comigo 
nas noites e nos dias
Às vezes me fustiga e 
outras vezes acaricia
Ele é tão capaz quanto eu
Guardião estranho e improvável 
Protege-me com suas chamas
Ainda que apareça até 
quando não é chamado
Este demônio é atrevido 
Extremamente ousado 
Inconsequente
Presunçoso
Arrogante
De quando em quando
eu e ele nos desentendemos 
Eu busco agir racionalmente 
Ele quer queimar o mundo
Trinca os dentes num esgar horrendo
Mostra sua agressividade
Ninguém ousa um passo a mais
Queimamos juntos o que cruza
o nosso estreito caminho 
Ele me observa sorrindo 
completamente zombeteiro 
Sabe que eu aguento
 o que poucos aguentam
Diz baixinho 
“até quando”?
Mando ele calar a boca
Aqui sou eu que mando
Ainda assim ele gargalha, pois 
todos fracassam nessa batalha
Contra os males do mundo
Sussurra nos meus ouvidos 
“Um dia você vai incinerar 
tudo com a minha ajuda
Cedo ou tarde a crueldade 
do mundo te muda” 
Ele às vezes soa tão tolo
Nunca sabe o que fala
Era melhor ter
abraçado o silêncio
Era melhor ter engolido
o sol no lusco-fusco
Tudo o que não tenho
Ainda busco
Algo parece vago
Inquieto, ele me cutuca
como se apagasse um cigarro em mim
Não pôde fazer o que deveria
Diz que não coleta mais
Tudo o que recolhe
em seguida descarta
"Nada nas mãos nunca
É disso que somos feitos"

A última coisa que segurou
foi o brilho da lua
Ainda assim um instinto
estranhamente pacífico
Fez com que o demônio a soltasse
Talvez alguns mereçam
morrer de frio pelas traições
Na Islândia, Rússia ou no Canadá
Alguém como eu poderia
derreter o continente por lá

Não o entendo, mas o sinto
Inequivocamente triste
Ele não me entende também, porém,
solidarizamo-nos na ausência de palavras
que engloba a vida inteira que existe
O demônio é forte
Bem desconfiado
observo a minha sorte
Mal entendendo
Devaneio a morte
Meu demônio a desafia
Como se fosse mais poderoso
que o próprio deus
É bom tê-lo por perto?
Um demônio mau
pode ter utilidade?
Há um demônio do fogo
dividindo a morada do espírito
Em certo momento nos
perdemos um do outro

Ele se parece comigo
E eu me pareço com ele
A alma eloquente se agita
no corpo que emudece agora
Regente perdido inconsequente
Consome com as chamas
até o correr das horas

Mais inflamável do que
qualquer coisa que viu

Instável aguardando
uma faísca no pavio

O demônio se lança em mim
Cada vez ele mais eu
E eu mais ele
E ele ainda mais meu
Eu respiro fundo
para tentar não me perder
Ele gargalha sonoramente, 
mas sinto o que ele sente
Queima com uma raiva
arroxeada e profunda
Instinto de ira indomável
Admite que todo fogo se apaga
Quem não sabe entender a mínima fagulha
não pode tocar quem é pura lava
Suspiro-me ou é ele que suspira
Há este demônio aqui e já não sei
quem é que controla a respiração
Para os outros não há comoção
Somos nós dois uma estação
Como o inverno ou como aquela que
leva embora para sempre um trem

Revestido de fogo nos fortalecemos
Quem é que pode me impedir?
Quem é que pode nos impedir?
Quem é que pode o impedir?
As lágrimas que escorreriam
evaporaram antes de tocar a pele
Não há nada em mim que gele
Sofro hoje como um mestre
O tédio me frustra
Vou queimá-lo

Faço o que quero e 
ninguém me impede
O tal demônio por vezes 

me personifica 
Por vezes agimos juntos 
Ainda assim ele só
quer saber de queimar
Lançar labaredas dançantes 
para consumir tudo 
Incêndio incontrolável
O demônio é sincero
Eu também
Odiamos mentiras
O demônio é direto
Eu prolixo
Ainda que eu seja direto
e ele enrolado também 
Há um demônio comigo
Ele me afasta e
me protege do perigo
Ele diz que é letal, mas
que é meu amigo
Como posso não confiar
em alguém tão próximo?
Não tenho escolha ou
Escolhi que fosse assim
Tudo de repente explodiu
Claridade no céu que nunca mais se viu

De repente o meu fogo
e o do demônio

Espalham por
toda a cidade

E um sussurro quase mudo
nos revela desnudos
Há partes nossas por 
todas as casas
E há em corações alheios 
nossas brasas
E há o que eu nem imaginava
que poderia de haver
E há cinzas nossas que guardaram
E eu nunca iria saber
E a raiva cega minha 
que nunca pune
Transforma-se 
então em lume
Eu e o demônio 
não somos cruéis
Ainda que pudéssemos ser
Ainda que devêssemos ser
Só o demônio sabe o quanto
o sofrimento me inflige de dor
E o que foi me enche de espanto
Ele tenta queimar tudo, mas não
nunca viu nada que tenha resistido
Recorda-me da frase que tanto gosto
"Seu coração é feito de coisa mais forte que vidro"

Num universo de tanta crueldade
Abraço o demônio antes de dormir
Eu me sinto tão lúgubre, mas volto a sorrir
Seguro a onda, aguento a barra, ajudo
Ninguém me nota na parte mais profunda 

Observo o mundo com sutileza
Vejo em cada cantinho
um pouquinho mais de beleza
Sou sozinho, mas me sinto fortaleza
Quem derruba estes portões?
Também ninguém sabe a senha
Continuo mudando e crescendo
Estou cada vez mais velho
O demônio faz aniversário
Nós comemoramos
Celebramos um com o outro

Já nem me lembro dos tempos
em que o demônio não estava por aqui
Ele parece vil, mas me ajuda a seguir
Fecho os olhos e aguardo
Os milagres acontecem
quando a percepção encontra o sono

Os grandes eventos sempre lembram
Épocas distantes e abandono
Dou de ombros e sigo em frente
Eu mais fogo quente
O demônio mais tranquilo
Eu mais ele e ele mais eu
Um dia encontro
um pedaço de saúde
Abraço o meu
descanso na loucura
Repouso vulnerável
Jazo sem armadura
Até o dia fatídico
vou como posso

Faço o que posso
E também o que devo
O demônio matou o medo
Ele mora comigo de aluguel
Eu cada dia mais ele
Ele cada dia mais eu
Eu ainda mais ele
Ele ainda mais eu
Eu mais ele
Ele mais eu
Eu ele
Ele eu
Eu
Acho que, enfim,
Nos entendemos ou
eu me entendi
Esquento outra vez
Sou completo

Estou livre.


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