Certa feita
briguei com Deus. Creio que todo o meu embasamento para a argumentação que se
sucedeu tenha sido repleto de falhas. Eu que costumava ser tão pontual hoje
perdi a capacidade de acompanhar o tiquetaquear do relógio. Eu que nunca fui imprevisível
e domei sempre minhas partes pesadas, nem sempre consigo voltar ao tranquilo,
pacífico e óbvio. Não me compreendendo, eu pedi para que Deus me esclarecesse
sobre os meus caminhos e responsabilidades. Implorei para que, ainda que
tivesse que partir sozinho, que não me poupasse, preenchesse-me da verdade mais
dolorida. Antes que o tempo passasse, as flores murchassem, o mundo mudasse.
Antes que toda a afeição fosse esquecida. Gritei, mas meus berros só me
deixaram rouco. Sussurrei, porém, a única réplica foi um silêncio de deixar
louco. Sem saber o que fazer, eu tentei qualquer coisa para que possuísse
apenas um minuto a mais. De tanto se vai até tão pouco e o afago de repente se
desfaz. Agora arco com as consequências de todos os impulsos meus, mas quando
tudo vinha desmoronando, quando a inveja alheia foi se espalhando, onde é que
estava Deus?
Estremeci diante
da minha incapacidade de tornar outra vez tudo certo. Até que sou muito
estúpido para alguém considerado esperto. Li livros jamais escritos, vivi
histórias ainda nem inventadas. Desapareci no campo da realidade e renasci
ficção. Esbravejei contra esse Deus, assumindo que perdi a razão, mas por que justo
agora teria de me tornar vilão? Quis jogar fora todos os meus detalhes que me
tornam singular, mas os segurei firme. Talvez o Deus sumido soubesse narrar a
minha história de um jeito sublime. Ainda assim fui acertado por meu próprio
golpe. Não tentei bater, mas o meu movimento ricocheteou e eu acabei caído. Se
eu ainda não tivesse deixado ninguém ferido, mas as coisas são como são, embora
não saiba se exatamente como deveriam ser. A minha insistente solidão afasta de
mim meu melhor tipo de prazer. Gostaria de tomar água e fazer exercícios.
Gostaria que alguém calmamente entendesse meus suplícios. Gostaria de poder estragar
a janta por ter errado no sal. Gostaria que a nossa salvação fosse suco de uva
e pão integral. Adoro também as rotinas compartilhadas. Amo rir nas noites
quase infindas com minhas novas e ancestrais amizades, porém, noutra noite de
lua linda quis te mostrar o meu local secreto na cidade. Falhei em tudo. Estremeci
diante da injustiça que me impuseram, mas cônscio de mim, admiti que fui ainda
mais injusto. Onde estava o divino quando o ódio era destilado? Como me
proteger de um comportamento viperino se só posteriormente me percebi atacado? Não
sou assim tão pequeno. Poderia, mas não vou mostrar de onde veio o veneno.
Renovo-me em mim e assumo a culpa de tudo, mas onde estava Deus para me
proteger de mim quando tentei e não devia? Onde estava Deus para me proteger de
mim quando machuquei a quem não merecia? Criei furacões em sopros, príncipe das
tempestades. Desmedi a minha própria medida quando me fugiu do controle a
realidade. Sinto-me doente. O suor escorre, a temperatura sobe, mas tudo bem. Meu
melhor estado é o febril. Sei que assim sinto melhor o mundo que nunca me
sentiu. Uma mulher aparece de madrugada e estou pronto para amá-la. Foi invenção
da minha cabeça, eu sei, mas isso nem interferiu. Beirando à insanidade, nos limítrofes
finais da realidade, outra vez a minha alma sorriu. Pois assim desconsidere
minhas declarações apaixonadas, não por serem falsas, mas sim exageradas. Tornei-me
especialista em amor fantasma. Tenho uma tendência ao eterno e ao drama. Rio
dos falsos espertos, metralhadoras de opiniões que só atingem espectros, a
frase matreira em busca da fama. Continuar em frente é sempre pungente e a vida
frequentemente dura me deu outra surra. Às vezes dramatizo quando me falta a
compreensão. Por que diabos a vida é assim? Onde estava Deus quando precisei
que ele me salvasse de mim?
Arrumo-me com
pressa, na minha maior rapidez e desta vez estou apenas meia hora atrasado. Dominado
pela minha própria lucidez, vejo-me no primeiro espelho ao que percebo que me
vesti errado. Estou do avesso, mas não faz mal. A roupa hoje é um detalhe
frugal. Saio pelas ruas andando com a lista do mercado na mão. Esqueço a
urgência. Posso almoçar mais tarde. Se eu fosse pelo caminho mais rápido, eu
teria voltado para casa em dez minutos. Como alonguei o que poderia ser breve,
hábito do prolixo, voltei quase uma hora depois, mas não estive estendendo o
que não deveria. Parei para ver o mundo e li em cada canto de tudo uma nova
poesia. Contemplei as flores selvagens amarelas, vermelhas e lilases. Ao longe
vi uma igreja cheia e ouvi o canto de tantas moças e rapazes. Levei os
pimentões mais feios, pois eram os únicos que haviam no mercado. Esqueci-me das
batatas. Cumprimentei os pássaros que cantavam nos fios de eletricidade,
sentei-me na beirada da calçada e apenas observei. Inverti as perspectivas. Agora
eu era alguém da igreja observando o rapaz de comportamento inabitual do lado
de fora. Era o pássaro olhando para o humano desconfiado que para na rua e ali
se demora. Era a flor consciente da própria beleza e do próprio perigo, apavorada
com a possibilidade de ser brutalmente arrancada e em seguida esquecida. Era o
pimentão olhando o humano e pensando se a alma dele também não estava
apodrecida. Acima das nuvens passa um avião e logo, vejo-o, depois, sou a máquina
pesada e voadora observando o mundo de cima. Eu ri, pois exatamente assim gostava
de ver o mundo Exupéry. Depois, centro-me no cerne das coisas e observo
rapidamente o mundo por dentro, ao estilo de Vinicius de Moraes. Como veem o
mundo os demais? De todos não sei, mas convivi e sei como enxergam os caminhoneiros. Para eles é como uma estrada em linha reta, assim como viu em linha reta os humanos, Fernando, o
Pessoa. Cogito em seguida destruir aquilo que mais amo, como disse Oscar Wilde
que toda pessoa faz. Este mestre deve ter cometido um engano, pois só agora vejo do quanto sou capaz. Posso ser o mar em tormenta, mas também manso como a garoa. Respiro a vida
que há em mim. Ouço meus batimentos como se eles valessem a pena e me lembro da
última pessoa que ousou escutá-los. Sorrio tranquilo. Esse Deus nunca me mostra
as coisas como quero. Suponho que seja minha responsabilidade prestar atenção
no que vem vindo. Dias atrás eu estava brigando com Deus, pois tudo o que
existe e o que há além disso estava ruindo. Feliz, enfim, chego em casa e conto
para o meu cão que estive me divertindo. Ele abana o rabo sorrindo. Para quem
possui um bom par de olhos, sabe a maneira correta de observar, de cada dia se
extrai um aspecto lindo.
A briga às vezes chega
quando a gente precisa. Faz bem se colocar em outra perspectiva. “Todo mundo oscila” vi a frase escrita em
diversos cartazes. Foi ruim brigar com Deus, mas já fizemos as pazes.