terça-feira, 9 de abril de 2019

Diálogo com o Tempo

   - Amaldiçoe todos os que te amaldiçoaram, ainda que estivessem corretos. 
   - Odeio-a exclusivamente porque a amo.Veja só... As tradições se inverteram ao longo deste último ano. Escondi-me por um longo tempo dentro de casa, centrei meus olhos em meu âmago. Entender-me era absolutamente necessário. Revivi os meses mais silenciosos da minha vida. Minto. Não odeio, mas serei honesto... também não amo. As certezas são incertas e as coisas estão díspares. 
  - Cada um possui o seu drama e o seu sofrimento, irmãozinho, assim, relativiza-se a dor alheia. O foco eventualmente recai sobre os próprios pesares. 
  - Há sensatez nisto. Se todos os problemas de outras realidades interferissem diretamente em meus atos, não importaria quais fossem os fatos, sem dúvidas, eu teria caído. 
   - Será que não está no chão faz tempo e por isso não notou que já não é mais capaz de cair? 
   - Quem poderá dizer? Não tenho sido tão bom assim, admito. 
   - Pesa-se que é importante não ser um desses miseráveis que derramam ódio em tudo o que é vivo e possui vida, mas há um limite para a empatia. Não ser tão bom assim pode ser bom o bastante. Você pode até se solidarizar, ser o ombro amigo perfeito, mas é claro que nunca saberá mensurar qual é o tamanho da dor alheia. 
   - Nem mesmo se a sentirmos?
   - O sentido de sentir é relativo. Suaviza-se o fato com base nas experiências próprias. 
   - Seja mais claro. O que quer dizer? 
   - Nada diferente do que disse. Não tenho uma boa relação com a minha mãe e você ama e convive com a sua, respectivamente. Minha mãe, se possui amor por mim, nunca soube demonstrar, assim, eu e ela somos mundos diferentes. Talvez ela sentisse um pouco a minha perda, talvez eu sentisse um pouco a perda dela, mas o fato é que estamos acostumados com a ausência. Se a sua mãe lhe faltasse, talvez lhe faltasse um grande pedaço, mas se minha mãe faltasse, creio que seria um prolongamento de uma distância que nunca fizemos questão de cobrir. 
   - Você falou sobre isso outro dia. Distâncias incalculáveis, mas me diga, até você tem mãe?
   - Aquilo não possui qualquer relação com isto e todo mundo tem mãe.  
   - Às vezes nossas conversas se tornam redundantes.
   - Claro. Pesa o fardo, não? Todos que estão aqui foram vencidos. 
   - Vencidos por quem?
   - Importa quem desfere o golpe se você não é capaz de resistir? - As conversas até então fluíam naturalmente, mas a indagação freou a resposta rápida de Seth. O cozinheiro reconheceu com admiração a sabedoria do Tempo, mas notou que nem ele tinha todas as respostas (embora talvez possuísse todas as perguntas). O cozinheiro era muito espontâneo para ter de pensar para responder, porém, muito sincero para dizer algo sem ter a certeza do que gostaria de dizer. Odiava significar coisas sem significado.
   - Não sei. Acho que importa, na verdade. Um golpe é apenas um golpe, mas um golpe sofrido por alguém em quem você confia é inesperado. Dói mais. 
   - Percebo que já sofreu destes golpes antes... - Seth ficou em silêncio. Talvez o Tempo soubesse mesmo de tudo, mas o cozinheiro não estava sentindo seu mundo colorido. Ainda era calmo como a garoa, porém, fechava os olhos e se tornava completamente cinza. O cozinheiro tentou se lembrar de seu verdadeiro nome, mas havia apenas sombras pálidas e sem significados na memória. Suspirou decepcionado. Lembrou-se em seguida de um truque ensinado pela Bruxa Que Devora. Levou as duas mãos ao peito e os dedos tocaram suavemente a pele no ponto em que dentro jazia a ponta do coração. Quando abriu os olhos, havia retornado ao quarto. Tudo era cinza, exatamente como o seu estado de espírito. O cozinheiro não sabia dizer o motivo, mas o Tempo parecia ter parado. Os olhos retornaram para a frase da profecia inscrita na parede do quarto absurdamente bagunçado. Nem todo anjo é branco. Nem todo mal possui asas negras. Às vezes um simples estranho endireita suas veredas. Seth suspirou profundamente. Seus batimentos cardíacos estavam acelerados. Sentia como se a frase quisesse lhe mostrar algo, mas lhe fugia a compreensão. Tentou encontrar uma solução, mas admitiu a inutilidade daquilo tudo. Saiu a esmo pelo Palácio. Sabia que precisava de pelo menos uma pista que o colocasse na trilha certa. 
   - Não é uma caça ao tesouro se eu nem sei o que estou procurando... 

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