sábado, 20 de abril de 2019

Antes que a tarde amanheça...

     Tendo analisado minuciosamente meus próprios sentimentos e pensamentos, vejo-me fora de mim como alguém que de tanto se perder acabou encontrado. Conheço minhas vicissitudes, mas não é como se o conhecimento produzisse sequer um tipo de garantia. Oscilo sozinho e tenho permitido que outros me machuquem, mas sigo cônscio de que sou eu que ofereço-lhes a oportunidade. Sobre mim? Não, não creio sempre em mim. A clareza que tenho em minhas próprias frases, às vezes, é justamente o que me impede de dizê-las. Conheço minhas próprias insanidades ao ponto de distraí-las ou entretê-las. Recolho-me em uma espécie de casulo em um quarto escuro esperando que a vida não seja tão dolorosa assim. Ergo novos muros esperando que algum dia alguém os atravesse em busca de mim. Ninguém me procura. A vida frequentemente é dura. Faço-me de frágil, mas meus punhos cerrados estão sempre prontos para testar minha sorte. Há dias que enfrentaria um dragão alado, mas em outros uma nuvem escura me faz temer a morte. Eu só rezo bem baixinho para que a força invisível não me esqueça. Só peço para que o grãozinho plantado, sempre tão bem cuidado, enfim, floresça. Antes que a noite vire madrugada.

     Tendo analisado todas as hipóteses, eu me esqueci apenas da hipótese de que toda análise é inútil e de que só existe o que há e mera hipótese é apenas vislumbre de ideia daquilo que nunca será. Sei o que vejo e não há distração que me faça mudar. Sei o que almejo e não há atalho qual eu deva pegar. Ainda que eu possa. Às vezes é simplesmente tentador, mas são os caminhos difíceis que ensinam mais e sempre fui ávido em aprender. Quando abro os olhos para dentro, vejo-me de fora com a convicção que tenho da minha falta de convicção. Não me falto, porém. Malogram minhas maiores vontades, porém, alerta, eu tento reencontrar minhas partes. Sou o homem que matou o charme. Sou aquele que disse as palavras certas nas horas erradas ou o que errou o timing nas palavras certas guardadas? Calo-me, observo-os, observo-me, resguardo. Sou tudo e sou nada. Sou o interlúdio da canção antiga não cantada. Eu não sou mais quem você deixou? O céu anuncia novidades com mais clareza do que eu poderia imaginar. Esta é a hora dos demônios! Seria melhor se estivesse em casa, perdido em sonhos enfadonhos, escutando o barulho do ar-condicionado que ainda não chegou. Atravesse a porta da sonolência e se mantenha soporífero. Desligue-se da consciência. Durma logo, por favor. É tarde, mas ainda é muito cedo para falar sobre o amor. Pois durma. Antes que a madrugada vire manhã. 

     Entediado interrompo de uma vez todos os tipos de pensamentos. Deixo-me sentir e me perco nos detalhes da beleza perfeita de uma flor. Assim somos todos. Nossas perfeições são tão discretas que quase ninguém é capaz enxergar. Queremos que os outros sejam indefectíveis, mas somos tão falhos e vulneráveis como os que exigimos que sejam melhores do que são. Estou acordado, mas em um planeta distante. Lembro-me de como Ransom estranhou as novas criaturas quando chegou em Malacandra e sobre sua melhor filosofia sobre impressões. Nada pode ser tão horripilante quanto a primeira impressão e nada pode ser tão maravilhoso quanto a impressão seguinte. O inverso também se aplica. Tenho sido apaixonante ou deprimente. Estágios distintos do meu pior melhor estado em mim. Canto sem parar e grito frases marcantes até ficar rouco. Às vezes me sinto tanto, outras vezes tão pouco. É natural, certo? Não estou louco. Diga que sim. É assim que é a jornada. Caminhamos quase sempre em frente. A borboleta ontem mesmo era lagarta. Então rasteje, mas que o ímpeto em impelir o corpo para frente seja apenas por motivos dignos. Esqueça a possibilidade de fracassar. Siga. Faça. Antes que a manhã vire tarde. 

     Nunca sobrepujo minhas vontades nas dos outros. Imponho-me em mim, canso-me, porém, sigo acordado. As noites são cada vez mais curtas. Os sonhos são cada vez mais assombrados. Os tempos mudaram e não houve sequer um mensageiro que pudesse me avisar? Imagino uma história diferente desta vez. Sorrio, choro, sofro. É uma questão de humanidade não ser tão exato, mas é necessário ser exato na afirmação de que não há razão em ser completamente humano. A questão não é merecer ou não. Todo mundo merece e ao mesmo tempo ninguém merece. Excedo sem exceder. Quase tudo me desperta o interessa, quase nada me prende. Tive relações imaginárias mais sólidas do que as reais e simultaneamente deixei de tentar solidificar o que não era imaginação. Cortei relações antes que ela se tornassem mais que mera expectativa do vislumbre de algo mais. Fui extremamente cuidadoso até o dia em que fui irresponsável. Tolerei de tudo, mas franzi o cenho e fiquei de prontidão contra os insensatos de orgulho obstinado. O que posso fazer se nada posso fazer? A ideia que criamos é de nossa responsabilidade e muitas vezes o que nos afasta da alegria é apenas uma teimosia insistente. A realidade é que queremos ser felizes apenas do jeito que supomos a felicidade e nunca de um jeito diferente. Evitamos a história diversa, a curva improvável, a subida íngreme, pois queremos o caminho mais seguro para casa, assim, ignoramos todas as outras possibilidades buscando apenas o desejo egoísta de centrar em uma ideia que talvez não exista mais. A hora dos demônios acabou. O relógio continua o seu tiquetaquear e as batidas são tão lentas quanta as do seu coração. Não tenha pressa, mas acelere a sua percepção. Beba nove ou dez xícaras de café e dissipe-se da solidão. Entenda-se para que possa entender todo o resto. Feche os olhos e olhe com o coração. Veja além da ilusão. Antes que seja tarde demais.


Antes que a tarde amanheça
E a noite vire dia
Põe poesia no café e
Café na poesia.

Paulo Leminski.


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