segunda-feira, 22 de abril de 2019

Quando briguei com Deus


     Certa feita briguei com Deus. Creio que todo o meu embasamento para a argumentação que se sucedeu tenha sido repleto de falhas. Eu que costumava ser tão pontual hoje perdi a capacidade de acompanhar o tiquetaquear do relógio. Eu que nunca fui imprevisível e domei sempre minhas partes pesadas, nem sempre consigo voltar ao tranquilo, pacífico e óbvio. Não me compreendendo, eu pedi para que Deus me esclarecesse sobre os meus caminhos e responsabilidades. Implorei para que, ainda que tivesse que partir sozinho, que não me poupasse, preenchesse-me da verdade mais dolorida. Antes que o tempo passasse, as flores murchassem, o mundo mudasse. Antes que toda a afeição fosse esquecida. Gritei, mas meus berros só me deixaram rouco. Sussurrei, porém, a única réplica foi um silêncio de deixar louco. Sem saber o que fazer, eu tentei qualquer coisa para que possuísse apenas um minuto a mais. De tanto se vai até tão pouco e o afago de repente se desfaz. Agora arco com as consequências de todos os impulsos meus, mas quando tudo vinha desmoronando, quando a inveja alheia foi se espalhando, onde é que estava Deus?

     Estremeci diante da minha incapacidade de tornar outra vez tudo certo. Até que sou muito estúpido para alguém considerado esperto. Li livros jamais escritos, vivi histórias ainda nem inventadas. Desapareci no campo da realidade e renasci ficção. Esbravejei contra esse Deus, assumindo que perdi a razão, mas por que justo agora teria de me tornar vilão? Quis jogar fora todos os meus detalhes que me tornam singular, mas os segurei firme. Talvez o Deus sumido soubesse narrar a minha história de um jeito sublime. Ainda assim fui acertado por meu próprio golpe. Não tentei bater, mas o meu movimento ricocheteou e eu acabei caído. Se eu ainda não tivesse deixado ninguém ferido, mas as coisas são como são, embora não saiba se exatamente como deveriam ser. A minha insistente solidão afasta de mim meu melhor tipo de prazer. Gostaria de tomar água e fazer exercícios. Gostaria que alguém calmamente entendesse meus suplícios. Gostaria de poder estragar a janta por ter errado no sal. Gostaria que a nossa salvação fosse suco de uva e pão integral. Adoro também as rotinas compartilhadas. Amo rir nas noites quase infindas com minhas novas e ancestrais amizades, porém, noutra noite de lua linda quis te mostrar o meu local secreto na cidade. Falhei em tudo. Estremeci diante da injustiça que me impuseram, mas cônscio de mim, admiti que fui ainda mais injusto. Onde estava o divino quando o ódio era destilado? Como me proteger de um comportamento viperino se só posteriormente me percebi atacado? Não sou assim tão pequeno. Poderia, mas não vou mostrar de onde veio o veneno. Renovo-me em mim e assumo a culpa de tudo, mas onde estava Deus para me proteger de mim quando tentei e não devia? Onde estava Deus para me proteger de mim quando machuquei a quem não merecia? Criei furacões em sopros, príncipe das tempestades. Desmedi a minha própria medida quando me fugiu do controle a realidade. Sinto-me doente. O suor escorre, a temperatura sobe, mas tudo bem. Meu melhor estado é o febril. Sei que assim sinto melhor o mundo que nunca me sentiu. Uma mulher aparece de madrugada e estou pronto para amá-la. Foi invenção da minha cabeça, eu sei, mas isso nem interferiu. Beirando à insanidade, nos limítrofes finais da realidade, outra vez a minha alma sorriu. Pois assim desconsidere minhas declarações apaixonadas, não por serem falsas, mas sim exageradas. Tornei-me especialista em amor fantasma. Tenho uma tendência ao eterno e ao drama. Rio dos falsos espertos, metralhadoras de opiniões que só atingem espectros, a frase matreira em busca da fama. Continuar em frente é sempre pungente e a vida frequentemente dura me deu outra surra. Às vezes dramatizo quando me falta a compreensão. Por que diabos a vida é assim? Onde estava Deus quando precisei que ele me salvasse de mim?

     Arrumo-me com pressa, na minha maior rapidez e desta vez estou apenas meia hora atrasado. Dominado pela minha própria lucidez, vejo-me no primeiro espelho ao que percebo que me vesti errado. Estou do avesso, mas não faz mal. A roupa hoje é um detalhe frugal. Saio pelas ruas andando com a lista do mercado na mão. Esqueço a urgência. Posso almoçar mais tarde. Se eu fosse pelo caminho mais rápido, eu teria voltado para casa em dez minutos. Como alonguei o que poderia ser breve, hábito do prolixo, voltei quase uma hora depois, mas não estive estendendo o que não deveria. Parei para ver o mundo e li em cada canto de tudo uma nova poesia. Contemplei as flores selvagens amarelas, vermelhas e lilases. Ao longe vi uma igreja cheia e ouvi o canto de tantas moças e rapazes. Levei os pimentões mais feios, pois eram os únicos que haviam no mercado. Esqueci-me das batatas. Cumprimentei os pássaros que cantavam nos fios de eletricidade, sentei-me na beirada da calçada e apenas observei. Inverti as perspectivas. Agora eu era alguém da igreja observando o rapaz de comportamento inabitual do lado de fora. Era o pássaro olhando para o humano desconfiado que para na rua e ali se demora. Era a flor consciente da própria beleza e do próprio perigo, apavorada com a possibilidade de ser brutalmente arrancada e em seguida esquecida. Era o pimentão olhando o humano e pensando se a alma dele também não estava apodrecida. Acima das nuvens passa um avião e logo, vejo-o, depois, sou a máquina pesada e voadora observando o mundo de cima. Eu ri, pois exatamente assim gostava de ver o mundo Exupéry. Depois, centro-me no cerne das coisas e observo rapidamente o mundo por dentro, ao estilo de Vinicius de Moraes. Como veem o mundo os  demais? De todos não sei, mas convivi e sei como enxergam os caminhoneiros. Para eles é como uma estrada em linha reta, assim como viu em linha reta os humanos, Fernando, o Pessoa. Cogito em seguida destruir aquilo que mais amo, como disse Oscar Wilde que toda pessoa faz. Este mestre deve ter cometido um engano, pois só agora vejo do quanto sou capaz. Posso ser o mar em tormenta, mas também manso como a garoa. Respiro a vida que há em mim. Ouço meus batimentos como se eles valessem a pena e me lembro da última pessoa que ousou escutá-los. Sorrio tranquilo. Esse Deus nunca me mostra as coisas como quero. Suponho que seja minha responsabilidade prestar atenção no que vem vindo. Dias atrás eu estava brigando com Deus, pois tudo o que existe e o que há além disso estava ruindo. Feliz, enfim, chego em casa e conto para o meu cão que estive me divertindo. Ele abana o rabo sorrindo. Para quem possui um bom par de olhos, sabe a maneira correta de observar, de cada dia se extrai um aspecto lindo.

     A briga às vezes chega quando a gente precisa. Faz bem se colocar em outra perspectiva. “Todo mundo oscila” vi a frase escrita em diversos cartazes. Foi ruim brigar com Deus, mas já fizemos as pazes.

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