Cristopher Green era o tipo de homem menos
verde que havia. Em todos os aspectos que se pudesse descrevê-lo, ele era
cinza. Usava sempre um terno preto com uma camisa social branca por baixo,
remangada, embora ninguém jamais soubesse. É que odiava a sensação dos fechos e
do botão em contato com a pele. A calça e os sapatos eram pretos, pois preferia
a noite. Se fosse alguém diurno, Cristopher não hesitaria em usar calças cáqui e
sapatos brancos. As únicas pessoas que ele tinha na vida estavam habituadas a
chamá-lo de Cris e os desconhecidos o chamavam de Sr. Green, embora não
existisse nada mais irônico. Cris costumava evitar a luz do sol e jamais passava
protetor solar na sua pele alva e sardenta. Fazia a barba sempre com quatro
dias de atraso de um jeito que era comum que estivesse com um aspecto de
abandono. Seus cabelos escuros e compridos desciam até a altura dos ombros e eram
rebeldes, despontando para os lados, mesmo que o sujeito não os penteasse por
opção. Cris odiava o pragmatismo da maioria das pessoas, ainda que isso nunca o
tenha tornado agressivo. Sentia-se avulso ao mundo. Isolava-se sempre que
conseguia, mas não conseguia se afastar sempre. As coisas eram diferentes no mundo de
Cris. Suponha que na sua cidade o pôr do sol acontecesse às 17h45, Cris já estava
escuro desde às 16h00. Se o nascer do dia ocorresse às 6h00 com o primeiro
canto matinal de um galo, Cris contrariava a lei natural. Despertava em três
horários diferentes: 04h33, 11h36 e 15h39. O restante das horas era vago e o
homem acinzentava tudo que pudesse, como quem varre a poeira de um cômodo a
outro sem realmente se livrar dela. Creio que você possa imaginar a profissão de Cristopher Green. Obviamente era advogado, até pela razão da ironia que haveria em seu nome se fosse
engenheiro ou jardineiro. Claro que ele não era do tipo de cidadão que presava
pelas causas ambientais, mas sempre era alvo de piadas sem nenhuma graça em
relação ao sobrenome. O que você precisa saber sobre Cris é o que o motivou a
fazer aquela estranha viagem de quarenta e dois dias para a Islândia: silêncio.
O advogado só falava quando precisava, ainda que escutasse dezenas de pessoas
na maior parte dos seus dias, estivesse literalmente acordado ou não. Cristopher sabia que a maioria das pessoas era tragicamente comum e eram vítimas ingênuas
que não percebiam o quanto a sociedade as forçava a compartilhar hábitos, mas
admitia que a lucidez talvez fosse um veneno sem antídoto. Uma vez que você
algo, você nunca mais pode deixar de ver. Cris era ateu, mas sempre murmurava um
deus me livre quando pensava em dividir suas excentricidades. Não havia pior pesadelo. Acreditava
que a vida só valia a pena se as escolhas fossem realmente suas e o controle,
mesmo descontrolado, centrasse em sua própria pessoa. Não se interessava em
brigar pela razão, pois não havia razão que o descrevesse e nem descrição que o
racionalizasse. Era muito exato para ser humano e seus instintos o impeliam a
calcular hipóteses antes de agir, exceto no que concernia à súbita ida até a
Islândia.
- O que há na Islândia, Cris?
- Há a Islândia, Tom.
- Isso tudo é por que você não come
ninguém aqui, Cris? Vai cruzar o oceano por que não quer gastar trocados com
prostitutas? Você é muito verde mesmo. Sabe que na Islândia é mais difícil, não
é? É capaz de você foder uma pedra ou uma cachoeira ou um deus esquecido.
- Claro, Tom. Verde como o meu nome.
Sexo com deuses. É isso.
- Vou te dizer, Cris. Você pode não ter
o jeito com as mulheres como eu tenho, sabe? - Disse e cheirou o próprio sovaco
em um gesto que fez Cristopher se sentir enojado. - Use a tática do cabelereiro,
Cris. Na adolescência vi muitos amigos que conseguiam fazer funcionar.
- Que conversa é essa, Tom?
- Sabia que ia te interessar, Cris. É
simples. Você vira o melhor amigo da princesa e ela vai te usar como
confessionário. Você saberá todos os segredos. Parece chato, não? Mas tenha confiança, Cris e no momento em que ela ficar
vulnerável... BOOM! Você mostra o seu verdadeiramente verde para ela.
- Isso é nojento, Tom.
- Isso é estratégia, Cris. E você bem
que poderia fazer bom uso dela para se dar bem com as mulheres ou vai ser um
virgem eterno, ainda que tenha transado com duas ou três. Estou dizendo, cara. De
dez manés que usam essa tática, nove se dão bem. Às vezes a menina percebe a
coisa endurecendo, Cris, e aí pula fora, mas nessa situação basta que você não
seja tão verde.
- Do que está falando, Tom? Isso não é
sobre mulheres.
- Então você é gay, cara?
- Você é um idiota.
- Um idiota que entende das gatinhas,
Cris. Quer morrer virgem, cara?
- Não sou virgem, Tom.
- Pode não ser virgem porque perdeu a
virgindade, Cris, mas na sua alma e na essência age como o maior dos cabaços.
Cristopher sabia que aquele tipo de conversa
ridícula era o tipo favorito de conversa de seu amigo Thomas Nutshell. A sorte
de Cris era que a conversa nunca se prolongava, pois Tom era de idas e vindas
costumeiras e estava quase sempre embriagado ou drogado. Ainda assim, Cris sabia
que Tom possuía a rara capacidade de ser honesto, independentemente da
situação. Era o tipo de cara que levantaria o punho contra o próprio pai, se o
pegasse cometendo alguma injustiça e que afrontaria até os melhores amigos em
caso de necessidade. Podia ter suas peculiaridades e indubitavelmente era um
idiota, mas prezava pelo que era certo acima de tudo. Certa feita espancou um
tal de Vicente que era da mesma roda de amigos que ele, pois o rapaz diz que
usou da tática de se aproveitar de menina bêbada.
- É o que eu digo, Cris. Jogue a porra
do jogo, mas não descumpra as regras. Aquele filho de uma puta... Arranquei
alguns dentes do babaca e não me arrependo. Soube que a garota já estava desmaiada antes? Meu único motivo de alívio é que a menina abusada
prestou queixa. Muitas delas sofrem com esses caras e não prestam, Cris. É um mundo fodido.
Thomas faria falta na Islândia. A maioria
das pessoas existia placidamente de uma forma tão mecânica que Cris zombava da
possibilidade de sentir a ausência delas. Sentiria falta de seus três gatos e de sua
cadela, mas os humanos, ainda que semelhantes a ele pela espécie, pareciam-lhe
completamente alheios pelas vicissitudes. Cristopher era cinza e sólido, pouco
dado às mudanças, enquanto o restante mudava as cores e os cortes dos cabelos,
as preferências sexuais, as residências, gostos, maneiras e maneirismos.
Trocavam os restaurantes de sempre e os faziam ser os restaurantes do de quando
em quando até que, enfim, por fim, fossem os restaurantes de nunca mais. Não
havia apego ou constrangimento em alterar tudo subitamente, mesmo que não
houvesse motivos e as refeições ainda continuassem quentes e perfeitas. Cristopher pensava que talvez na Islândia tudo fosse diferente. Ainda que os deuses quais
não acreditava lá fossem mais antigos e menos esquecidos, ainda que a aridez
desértica e gelada fizesse com que poucos habitassem o país, ainda que os
céticos oferecessem a chance de degelo à própria insensibilidade. Cris se indagou sobre como seria ou não vasta a sua dieta. Provavelmente os islandeses bebiam sopa no almoço e na janta. Pelo menos a cerveja nunca estaria quente. Cris imaginou
se alguém sentiria sua falta e concluiu que talvez e apenas talvez, Laura e
Tom. Laura era a única mulher na vida de Cris que se fazia presente, sem ter a
obrigação. Não era agiota ou parente e tampouco colega de escola de Cris. Ela havia
entrado casualmente na vida do rapaz em uma ocasião, quando ele estava sentado sozinho em uma
praça. Ela se sentou ao seu lado comendo um bolo de três cores: branco, marrom e cinza. Ofereceu-lhe um pedaço e disse.
- Hoje é o meu aniversário.
- Então você é do dia 10? Minha mãe é do
dia 15 de julho.
- Sim. Legal.
- Parabéns.
- Obrigada.
- Obrigada.
Os dois então comeram o bolo de cappuccino
e compartilharam um silêncio estendido. O cabelo dela era quase prateado e Cris pensou que era semelhante ao da mulher do seriado, mas não sabia
explicar qual era o seriado e por isso nunca chegou a perguntar para Laura se
havia se inspirado na atriz. Cris era quieto e quase nunca falava. Ela, por
outro lado, dividia-se em dois estados completamente opostos: o silêncio velado
e a ininterrupta comunicação. Na terceira vez que se encontraram, Cris teve a
impressão de ter respondido a mais de quinze perguntas e escutado pelo menos dez histórias.
Considerava-se sortudo por poder dividir o tempo com ela, mas tinha uma
intuição de que aquilo tudo um dia se perderia. Admitia que intuições eram como
poderes abstratos e não fazia sentido crer naquele tipo de coisa, mas será que
na Islândia encontraria respostas? Cris nunca havia usado a tática do
cabeleireiro. Seria possível que Laura o fizesse cabeleireiro por ter segundas
intenções? Impossível! Possível? Por que estava dando corda para algo leviano
que Tom havia dito? E do que isso importava para alguém mecânico como ele,
afinal? Cristopher Green respirou fundo e sorriu desanimado. Para todas as coisas na vida, ele parecia ser insuficiente. Era como se tivesse nascido para fracassar. Às vezes, porém, tinha o
rosto perfeito e estranhamente adequado para que alguém o socasse em cheio.
- Sabe de uma coisa, Cris? Eu gosto de
você.
- Acho que também gosto de você, Laura.
- Acha? - Disse e fez uma careta
dramática, mas pensando naquela feição, meses depois, Cristopher se perguntou se
ela estava mesmo preocupada com a resposta.
- Acho. Copo meio cheio, copo meio
vazio. Faz diferença? Você tem água ainda. Pode beber se estiver com sede. -
Laura gargalhou alto e de maneira escandalosa. Cris gostava dos pequenos surtos
dela.
- Diga-me, Cris. Você é a minha água
para quando eu estiver sedenta? - Cristopher sabia que a pergunta era uma
provocação, mas deu de ombros.
- Sou. - Ela o observou com seus olhos
grandes como a lua e escuros como o céu noturno. Ainda que pareça idiota, Cris admitiu que eles dançavam em pequenas doses de brilho, como estrelas
despregadas do firmamento. Sentiu vontade de dizer isso a ela, mas sabia que seu romantismo soaria completamente bobo e constrangedor. Preferiu ficar calado. O silêncio era um bom amigo.
- Você, Cristopher Green, é diferente, mas
não é menos idiota que qualquer outro homem.
Talvez Laura sentisse sua falta. Talvez
Tom sentisse sua falta. Talvez não houvesse táticas ou respostas, mas apenas
mais perguntas na Islândia. Uma vez viu o mapa de um jogo baseado no país e
pensou que seria legal um dia visitar aquela imensidão. Se os dinossauros ainda
vivessem e suportassem o frio, aquele era o cenário ideal para que vivessem.
Não fazia sentido que um homem tomasse, por vontade própria, um avião para a
Islândia. Cris pensou em coisas que não costumava pensar. Lembrou-se de todos os
seus horripilantes desenhos de quando era criança, mas a sensação de estar vivo
o transbordava naqueles palitos feios e descoordenados expostos no papel. Era à época bom nos
videogames e os amigos apanhavam para ele no Super Smash Bros 64, ainda
que ele jogasse com Jigglypuff ou Yoshi. Era bom saber que era bom em algo, mas
queria sentir que viver garantisse o sentido de sentir e bem, na maioria das
vezes, a vida era vaga e faltava o sentir do sentido. Não sentiu vontade de chorar, mas sentiu o aroma do
café, completamente inapropriado para a fila de embarque que se fazia no túnel
para entrar no avião. O cheiro foi um sinal de alerta de que poderia estar enlouquecendo.
- Talvez eu ame algumas coisas e não
deva. Talvez essa viagem seja uma inoportunidade oportuna. Talvez eu me conheça
mais e valha a pena ou veja que gastei um dinheiro difícil de ganhar para me
conhecer e entender que eu mesmo não valho o que penso, se é que penso valer
mesmo alguma coisa. Só espero não morrer congelado enquanto estiver cagando.
Quero uma morte bem morrida, daquelas que o apresentador do jornal possa falar
sem precisar forçar a seriedade e que a mãe possa chorar ao dar a notícia.
Cristopher Green divagava. Sentou-se na sua
poltrona e em seguida uma senhora gorda sentou ao seu lado. Alguns minutos
depois ela havia adormecido e escorava no ombro de Cristopher. Ele imaginou que a
maioria das pessoas se irritaria com a invasão de privacidade e em um dia comum
até ele talvez se irritasse, mas não era um dia comum. Seus ombros ficariam
doloridos, mas e daí? A dor vem e vai e por isso não importava tanto. Quase
ninguém sentiria sua falta e naquele fim de tarde atípico, ele poderia ser
exceção ao que todos costumam tomar por comportamento padrão.
- Que você durma bem, mulher gorda. Não
sei o que há na Islândia, mas eu vou para lá e por coincidência você também.
Espero que um de nós possa achar o que procura.
Cristopher não era de dormir em aeronaves,
mas apagou instantes depois enquanto imaginava se os dragões islandeses eram mais reais que os deuses inventados pelos humanos. De alguma forma não metafórica sentia a leveza de
existir, como se o fato de viajar o desobrigasse das obrigações e o removesse de
suas responsabilidades. Dormiu confortavelmente e sonhou que seu pai, sua
professora de matemática na escola, Tom Cruise, Tom Nutshell e Laura estavam
reunidos contanto histórias saudosistas a respeito de Cristopher Green, que era
ele e ao mesmo tempo não era. No sonho seu nome soava como se ele tivesse sido especial em vida. Acordou repentinamente quando, enfim, o avião pousou
no Aeroporto Internacional de Keflavík. Sorriu pela primeira vez em algum tempo
com a expectativa de descobrir o que havia na Islândia.
Parabéns, você é um artista!!
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