terça-feira, 4 de junho de 2019

Cristopher Green


     Cristopher Green era o tipo de homem menos verde que havia. Em todos os aspectos que se pudesse descrevê-lo, ele era cinza. Usava sempre um terno preto com uma camisa social branca por baixo, remangada, embora ninguém jamais soubesse. É que odiava a sensação dos fechos e do botão em contato com a pele. A calça e os sapatos eram pretos, pois preferia a noite. Se fosse alguém diurno, Cristopher não hesitaria em usar calças cáqui e sapatos brancos. As únicas pessoas que ele tinha na vida estavam habituadas a chamá-lo de Cris e os desconhecidos o chamavam de Sr. Green, embora não existisse nada mais irônico. Cris costumava evitar a luz do sol e jamais passava protetor solar na sua pele alva e sardenta. Fazia a barba sempre com quatro dias de atraso de um jeito que era comum que estivesse com um aspecto de abandono. Seus cabelos escuros e compridos desciam até a altura dos ombros e eram rebeldes, despontando para os lados, mesmo que o sujeito não os penteasse por opção. Cris odiava o pragmatismo da maioria das pessoas, ainda que isso nunca o tenha tornado agressivo. Sentia-se avulso ao mundo. Isolava-se sempre que conseguia, mas não conseguia se afastar sempre. As coisas eram diferentes no mundo de Cris. Suponha que na sua cidade o pôr do sol acontecesse às 17h45, Cris já estava escuro desde às 16h00. Se o nascer do dia ocorresse às 6h00 com o primeiro canto matinal de um galo, Cris contrariava a lei natural. Despertava em três horários diferentes: 04h33, 11h36 e 15h39. O restante das horas era vago e o homem acinzentava tudo que pudesse, como quem varre a poeira de um cômodo a outro sem realmente se livrar dela. Creio que você possa imaginar a profissão de Cristopher Green. Obviamente era advogado, até pela razão da ironia que haveria em seu nome se fosse engenheiro ou jardineiro. Claro que ele não era do tipo de cidadão que presava pelas causas ambientais, mas sempre era alvo de piadas sem nenhuma graça em relação ao sobrenome. O que você precisa saber sobre Cris é o que o motivou a fazer aquela estranha viagem de quarenta e dois dias para a Islândia: silêncio. O advogado só falava quando precisava, ainda que escutasse dezenas de pessoas na maior parte dos seus dias, estivesse literalmente acordado ou não. Cristopher sabia que a maioria das pessoas era tragicamente comum e eram vítimas ingênuas que não percebiam o quanto a sociedade as forçava a compartilhar hábitos, mas admitia que a lucidez talvez fosse um veneno sem antídoto. Uma vez que você algo, você nunca mais pode deixar de ver. Cris era ateu, mas sempre murmurava um deus me livre quando pensava em dividir suas excentricidades. Não havia pior pesadelo. Acreditava que a vida só valia a pena se as escolhas fossem realmente suas e o controle, mesmo descontrolado, centrasse em sua própria pessoa. Não se interessava em brigar pela razão, pois não havia razão que o descrevesse e nem descrição que o racionalizasse. Era muito exato para ser humano e seus instintos o impeliam a calcular hipóteses antes de agir, exceto no que concernia à súbita ida até a Islândia.

        - O que há na Islândia, Cris?
        - Há a Islândia, Tom.
       - Isso tudo é por que você não come ninguém aqui, Cris? Vai cruzar o oceano por que não quer gastar trocados com prostitutas? Você é muito verde mesmo. Sabe que na Islândia é mais difícil, não é? É capaz de você foder uma pedra ou uma cachoeira ou um deus esquecido.
        - Claro, Tom. Verde como o meu nome. Sexo com deuses. É isso.
      - Vou te dizer, Cris. Você pode não ter o jeito com as mulheres como eu tenho, sabe? - Disse e cheirou o próprio sovaco em um gesto que fez Cristopher se sentir enojado. - Use a tática do cabelereiro, Cris. Na adolescência vi muitos amigos que conseguiam fazer funcionar.
        - Que conversa é essa, Tom?
       - Sabia que ia te interessar, Cris. É simples. Você vira o melhor amigo da princesa e ela vai te usar como confessionário. Você saberá todos os segredos. Parece chato, não? Mas tenha confiança, Cris e no momento em que ela ficar vulnerável... BOOM! Você mostra o seu verdadeiramente verde para ela.
        - Isso é nojento, Tom.
      - Isso é estratégia, Cris. E você bem que poderia fazer bom uso dela para se dar bem com as mulheres ou vai ser um virgem eterno, ainda que tenha transado com duas ou três. Estou dizendo, cara. De dez manés que usam essa tática, nove se dão bem. Às vezes a menina percebe a coisa endurecendo, Cris, e aí pula fora, mas nessa situação basta que você não seja tão verde.
        - Do que está falando, Tom? Isso não é sobre mulheres.
        - Então você é gay, cara?
        - Você é um idiota.
        - Um idiota que entende das gatinhas, Cris. Quer morrer virgem, cara?
        - Não sou virgem, Tom.
       - Pode não ser virgem porque perdeu a virgindade, Cris, mas na sua alma e na essência age como o maior dos cabaços.

     Cristopher sabia que aquele tipo de conversa ridícula era o tipo favorito de conversa de seu amigo Thomas Nutshell. A sorte de Cris era que a conversa nunca se prolongava, pois Tom era de idas e vindas costumeiras e estava quase sempre embriagado ou drogado. Ainda assim, Cris sabia que Tom possuía a rara capacidade de ser honesto, independentemente da situação. Era o tipo de cara que levantaria o punho contra o próprio pai, se o pegasse cometendo alguma injustiça e que afrontaria até os melhores amigos em caso de necessidade. Podia ter suas peculiaridades e indubitavelmente era um idiota, mas prezava pelo que era certo acima de tudo. Certa feita espancou um tal de Vicente que era da mesma roda de amigos que ele, pois o rapaz diz que usou da tática de se aproveitar de menina bêbada.

     - É o que eu digo, Cris. Jogue a porra do jogo, mas não descumpra as regras. Aquele filho de uma puta... Arranquei alguns dentes do babaca e não me arrependo. Soube que a garota já estava desmaiada antes? Meu único motivo de alívio é que a menina abusada prestou queixa. Muitas delas sofrem com esses caras e não prestam, Cris. É um mundo fodido. 

     Thomas faria falta na Islândia. A maioria das pessoas existia placidamente de uma forma tão mecânica que Cris zombava da possibilidade de sentir a ausência delas. Sentiria falta de seus três gatos e de sua cadela, mas os humanos, ainda que semelhantes a ele pela espécie, pareciam-lhe completamente alheios pelas vicissitudes. Cristopher era cinza e sólido, pouco dado às mudanças, enquanto o restante mudava as cores e os cortes dos cabelos, as preferências sexuais, as residências, gostos, maneiras e maneirismos. Trocavam os restaurantes de sempre e os faziam ser os restaurantes do de quando em quando até que, enfim, por fim, fossem os restaurantes de nunca mais. Não havia apego ou constrangimento em alterar tudo subitamente, mesmo que não houvesse motivos e as refeições ainda continuassem quentes e perfeitas. Cristopher pensava que talvez na Islândia tudo fosse diferente. Ainda que os deuses quais não acreditava lá fossem mais antigos e menos esquecidos, ainda que a aridez desértica e gelada fizesse com que poucos habitassem o país, ainda que os céticos oferecessem a chance de degelo à própria insensibilidade. Cris se indagou sobre como seria ou não vasta a sua dieta. Provavelmente os islandeses bebiam sopa no almoço e na janta. Pelo menos a cerveja nunca estaria quente. Cris imaginou se alguém sentiria sua falta e concluiu que talvez e apenas talvez, Laura e Tom. Laura era a única mulher na vida de Cris que se fazia presente, sem ter a obrigação. Não era agiota ou parente e tampouco colega de escola de Cris. Ela havia entrado casualmente na vida do rapaz em uma ocasião, quando ele estava sentado sozinho em uma praça. Ela se sentou ao seu lado comendo um bolo de três cores: branco, marrom e cinza. Ofereceu-lhe um pedaço e disse.

     - Hoje é o meu aniversário.
     - Então você é do dia 10? Minha mãe é do dia 15 de julho.
     - Sim. Legal.
     - Parabéns.
     - Obrigada.

     Os dois então comeram o bolo de cappuccino e compartilharam um silêncio estendido. O cabelo dela era quase prateado e Cris pensou que era semelhante ao da mulher do seriado, mas não sabia explicar qual era o seriado e por isso nunca chegou a perguntar para Laura se havia se inspirado na atriz. Cris era quieto e quase nunca falava. Ela, por outro lado, dividia-se em dois estados completamente opostos: o silêncio velado e a ininterrupta comunicação. Na terceira vez que se encontraram, Cris teve a impressão de ter respondido a mais de quinze perguntas e escutado pelo menos dez histórias. Considerava-se sortudo por poder dividir o tempo com ela, mas tinha uma intuição de que aquilo tudo um dia se perderia. Admitia que intuições eram como poderes abstratos e não fazia sentido crer naquele tipo de coisa, mas será que na Islândia encontraria respostas? Cris nunca havia usado a tática do cabeleireiro. Seria possível que Laura o fizesse cabeleireiro por ter segundas intenções? Impossível! Possível? Por que estava dando corda para algo leviano que Tom havia dito? E do que isso importava para alguém mecânico como ele, afinal? Cristopher Green respirou fundo e sorriu desanimado. Para todas as coisas na vida, ele parecia ser insuficiente. Era como se tivesse nascido para fracassar. Às vezes, porém, tinha o rosto perfeito e estranhamente adequado para que alguém o socasse em cheio.

     - Sabe de uma coisa, Cris? Eu gosto de você.
     - Acho que também gosto de você, Laura.
     - Acha? - Disse e fez uma careta dramática, mas pensando naquela feição, meses depois, Cristopher se perguntou se ela estava mesmo preocupada com a resposta.
     - Acho. Copo meio cheio, copo meio vazio. Faz diferença? Você tem água ainda. Pode beber se estiver com sede. - Laura gargalhou alto e de maneira escandalosa. Cris gostava dos pequenos surtos dela.
     - Diga-me, Cris. Você é a minha água para quando eu estiver sedenta? - Cristopher sabia que a pergunta era uma provocação, mas deu de ombros.
     - Sou. - Ela o observou com seus olhos grandes como a lua e escuros como o céu noturno. Ainda que pareça idiota, Cris admitiu que eles dançavam em pequenas doses de brilho, como estrelas despregadas do firmamento. Sentiu vontade de dizer isso a ela, mas sabia que seu romantismo soaria completamente bobo e constrangedor. Preferiu ficar calado. O silêncio era um bom amigo. 
     - Você, Cristopher Green, é diferente, mas não é menos idiota que qualquer outro homem.

     Talvez Laura sentisse sua falta. Talvez Tom sentisse sua falta. Talvez não houvesse táticas ou respostas, mas apenas mais perguntas na Islândia. Uma vez viu o mapa de um jogo baseado no país e pensou que seria legal um dia visitar aquela imensidão. Se os dinossauros ainda vivessem e suportassem o frio, aquele era o cenário ideal para que vivessem. Não fazia sentido que um homem tomasse, por vontade própria, um avião para a Islândia. Cris pensou em coisas que não costumava pensar. Lembrou-se de todos os seus horripilantes desenhos de quando era criança, mas a sensação de estar vivo o transbordava naqueles palitos feios e descoordenados expostos no papel. Era à época bom nos videogames e os amigos apanhavam para ele no Super Smash Bros 64, ainda que ele jogasse com Jigglypuff ou Yoshi. Era bom saber que era bom em algo, mas queria sentir que viver garantisse o sentido de sentir e bem, na maioria das vezes, a vida era vaga e faltava o sentir do sentido. Não sentiu vontade de chorar, mas sentiu o aroma do café, completamente inapropriado para a fila de embarque que se fazia no túnel para entrar no avião. O cheiro foi um sinal de alerta de que poderia estar enlouquecendo.

     - Talvez eu ame algumas coisas e não deva. Talvez essa viagem seja uma inoportunidade oportuna. Talvez eu me conheça mais e valha a pena ou veja que gastei um dinheiro difícil de ganhar para me conhecer e entender que eu mesmo não valho o que penso, se é que penso valer mesmo alguma coisa. Só espero não morrer congelado enquanto estiver cagando. Quero uma morte bem morrida, daquelas que o apresentador do jornal possa falar sem precisar forçar a seriedade e que a mãe possa chorar ao dar a notícia.

     Cristopher Green divagava. Sentou-se na sua poltrona e em seguida uma senhora gorda sentou ao seu lado. Alguns minutos depois ela havia adormecido e escorava no ombro de Cristopher. Ele imaginou que a maioria das pessoas se irritaria com a invasão de privacidade e em um dia comum até ele talvez se irritasse, mas não era um dia comum. Seus ombros ficariam doloridos, mas e daí? A dor vem e vai e por isso não importava tanto. Quase ninguém sentiria sua falta e naquele fim de tarde atípico, ele poderia ser exceção ao que todos costumam tomar por comportamento padrão.

     - Que você durma bem, mulher gorda. Não sei o que há na Islândia, mas eu vou para lá e por coincidência você também. Espero que um de nós possa achar o que procura.

        Cristopher não era de dormir em aeronaves, mas apagou instantes depois enquanto imaginava se os dragões islandeses eram mais reais que os deuses inventados pelos humanos. De alguma forma não metafórica sentia a leveza de existir, como se o fato de viajar o desobrigasse das obrigações e o removesse de suas responsabilidades. Dormiu confortavelmente e sonhou que seu pai, sua professora de matemática na escola, Tom Cruise, Tom Nutshell e Laura estavam reunidos contanto histórias saudosistas a respeito de Cristopher Green, que era ele e ao mesmo tempo não era. No sonho seu nome soava como se ele tivesse sido especial em vida. Acordou repentinamente quando, enfim, o avião pousou no Aeroporto Internacional de Keflavík. Sorriu pela primeira vez em algum tempo com a expectativa de descobrir o que havia na Islândia.

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