sexta-feira, 21 de junho de 2019

Eu ainda estou aqui

     Quis falar de amor durante a madrugada, mas elas não foram feitas para isso. Aquece-se o meu peito pelos desejos não realizados. Queima-me os devaneios pelos outros inventados. Sinto-me tão especial e inequivocamente quente. Vou descrever um sonho real das minhas emoções, mas talvez vocês não estejam prontos para ouvir. Talvez eu ainda não possa falar. Prometo ser sincero, mas e daí? Sensações e esmero, apenas outros motivos para sorrir. A minha melatonina acabou e nem sei se funcionava, porém, era importante no ritual do sono. Consistia numa espécie de preparação para o abandono (próprio). Agora sou obrigado a encarar as horas sombrias. Dane-se, pois sou capaz de ser tão soturno quanto o relógio. Sou tão imprevisível que acabo... Óbvio. Quando nem comecei. Atraso pontualmente e sem equívoco. Adio tudo o que posso, afinal, é para isso que serve o amanhã. Às vezes gosto de sentir que só eu posso inventar mundos. Impulso egoísta de quem se conhece. Vontade oportunista que seleciona aquilo de que se esquece. Você escuta as vozes e sabe que são muitas! Apenas chilreiam ininterruptamente. Os outros falam muito e o tempo todo, mas o tempo todo nesta noite infinita estou sozinho. Aposto que a noite lá fora é bonita, mas os meus dedos descrevem aqui alguma parte do meu caminho, neste acesso de fúria sem romantismo com traços fúnebres de poesia. 



     O médico diz que sou o bebê mais pesado do mês de março naquele hospital em 1992. Sorri e diz que os arianos são impulsivos, embora tenha cursado medicina e zombe da astrologia. A velha (em 2019) me vende um amuleto de boa sorte e me dá dois de presente, pois diz que eu nasci para o sucesso. Ela promete com uma convicção sobrenatural que logo eu vou chegar aos meus objetivos e quando isso acontecer, claro, eu comprarei mais amuletos dela. Espero que o sucesso venha rápido, pois ela não parece que vai aguentar mais muitos anos. Reflexões em mim nas canções desta vida fugaz. Fui anteontem impressionante. Fui no dia seguinte o desânimo personificado. Agi sem agir como se não me soubesse errado e ri. Aviões cruzam os céus na madrugada; pessoas vão para a Europa e dormem na aeronave. Outras pessoas aproveitam suas últimas horas de sono, pois logo vão pegar o ônibus para mais uma batalha. Não se intimidam ainda que ganhem pouco, acostumaram-se com o fio da navalha (no pescoço). 2h36 é a hora perfeita para tomar mais um litro de café. "Não tenho escolha", respondo quando alguém me acusa de negligência de minhas próprias responsabilidades. Você cale essa boca, pois eu não me esqueço do que importa. Cumpro-as e me assumo. Sou tão imprevisível que altero repentinamente o meu rumo. Sou tão vampiro quanto não gostaria de ser. Nunca brilhei na luz solar. Reconhecem-me nesta cidade e adoro. Reconhecem-me nesta cidade e odeio. Reconheço que falhei na hora de acertar e que cometi o acerto perfeito no errar. 



     Não sabendo o que fazer, eu resolvi escrever para me distrair. Alguns fazem amor e outros fazem sexo. Alguns se escondem para evitar a dor enquanto outros se embriagam até desaparecer o nexo. Eu escrevo. A madrugada segue e se agiganta. Os fantasmas te atormentam e nada adianta. Pego o carro e saio para comer um sanduíche. Os preços são assustadores, mas gastei gasolina e mereço. Escolho a melhor promoção, sinto a minha própria comoção. Agora evito gastar mais dinheiro. Pego a chave do meu carro e me recordo de que o vizinho ainda não pagou o conserto do risco que ele fez. Isso não é importante agora, eu penso, mas ainda me sinto ofendido. Quem é que admite a culpa, mas não conserta o dano cometido? 





     Dirijo sozinho até uma árvore perto do cemitério. Penso nos que já se foram, mas eu ainda estou aqui. Grito bem alto: "EU AINDA ESTOU AQUI". As almas penadas me compreendem e por isso vou embora. Meus dedos pegam fogo e preciso escrever uma carta endereçada à minha própria casa. Amanhã às 17h15 eu a lerei e talvez note que me dei bons conselhos. "Evite quebrar espelhos, rapaz. Apegue-se às superstições se for esperto, cuidado para não transformar o seu jardim em deserto, quanto ao resto, o resto tanto faz". Escrevo e tomo o cuidado de não me mover, pois o cachorro gosta de dormir escorado nas rodas da cadeira do computador. Talvez este seja o único tipo de amor. Suponho que o combate aos espíritos ruins machuque o estômago, pois a gata preta come a planta do vaso. A vida se esgota em uma conversa entre três amigos no carro. O dom da amizade é um dom raro. Bebo mais café e meus olhos cansados resistem. Grito outra vez: "EU AINDA ESTOU AQUI". Um vizinho me xinga ou talvez seja um mendigo. Quem é que sabe quem é o que nestes dias? Ele deve estar com o rabo quente para se incomodar como meu grito. Não me importo com o incômodo alheio. Só a beleza e a destruição interessam. A raiva me aquece e continuo escrevendo. O sentido se perde no sentir, mas sei que o que importa é continuar escrevendo. Sou o eco do fim do universo e também sou o nada. Sou o tiquetaquear do relógio antes do nascer do dia. Sou o esgar de ódio e ainda a face formosa da poesia. Sou o sono contínuo que nunca descansa e ainda o amaldiçoado homem lúgubre de fala mansa... Aquele pronto a sacrificar mais por quem por mim nunca se sacrificaria. Conheço todos os estágios e mesmo assim desconheço porque a vida é assim. Sou o cobrador dos pedágios e dono de algumas secretas estradas. Sou único e só mais um, perdendo-me na individualidade comum, imperador secreto da madrugada. O sol aparece radiante anunciando um novo dia. É o fim do meu reinado. Volto a ser feito de algo mais resistente que o vidro, mas puramente tão frágil. Perco-me do meu instinto sempre ágil. Não tenho do que reclamar, mas reclamo. Nem tenho o que amar, mas amo. O clarão me irrita e sou tratado com desprezo e desdém. Eu só queria que chovesse agora, mas algo lá fora me diz que vai ficar tudo bem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário