sábado, 29 de junho de 2019

Nenhuma inspiração

     Era uma tarde como outra qualquer, mas era uma tarde que nunca se repetiria. Eu poderia ter dito que as horas me pertenciam e você poderia ter dito a mesma coisa, mas nós nos contentamos com a felicidade, embora tenha nos faltado a compreensão de que um momento simples como aquele se tornaria especial. A tarde pertencia a ela mesma. O que acontece, na verdade, é que era especial enquanto vivíamos, mas não percebemos (tanto). Geralmente funciona assim com as melhores coisas. Se antes pudéssemos ter notado a fragilidade com que tudo se esgota, nós não teríamos desperdiçado as últimas horas nos esgotando e brigando por ciúmes simultâneos e igualmente idiotas. Tudo se desgasta rapidamente e se transforma. As conexões mais incríveis sempre serão impressionantes, ainda que fiquem esquecidas em algum lugar do tempo. Alguns amores morrem, outros renascem e outros nem chegam a ser amor, mas este é o ciclo. Há sofrimento e há felicidade, mas é bobagem tentar discorrer sobre tudo isso. Ainda assim cumpro a função do bobo e me derramo em minhas ideias e ideais. Alguém deve falar das coisas ignoradas, pequenas e praticamente alheias. A vida é fugaz e o tempo escorre pelos dedos como grãos de areia. Ouvimos as batidas fortes do coração e os olhos se enchem d'água em um dia comum, pois agimos fora da normalidade e paramos para escutar o que ninguém mais escuta. Ouço como se o que é abordado me importasse, pois sinceramente me importa. O suco de uva manchou o colchão e brigamos por esse grande nada, mas rimos até cair no chão quando o cão uivou e tentou invadir a janela durante a madrugada. Foi a única vez que ele uivou em todos os seus anos de vida e nós achamos que era só uma sexta-feira morta após um dia de trabalho. Eu ainda lembro o som da chuva no jardim dos fundos da casa. 

     A chuva não parava na minha alma. Eram manhãs terríveis na escola e ainda hoje são quase tão palpáveis como quando as vivi. Foram três meses longos nos quais não falei com sequer uma pessoa. Eu havia chegado ao colégio novo depois de uma vida inteira estudando em apenas um lugar. Recordo-me de como me sentia assustado, recolhia-me em mim sendo o meu próprio refúgio de segurança e contava os minutos até que chegasse em casa para que finalmente pudesse jogar meus jogos no computador e ouvir as minhas músicas. Nunca tive tendências suicidas, mas por vezes perdi o sentido de existir. Quando parecia que tudo faltava, eu  me lembrava de que sempre tive estradas para locais seguros, mas o coração se torna pesado quando as jornadas são solitárias e cri que minha interação na escola dependia de mim, porém, não conseguia ter iniciativa e nem fazer amizades. Era inacreditavelmente impossível dizer apenas oi. Assim as manhãs seguiram horrendas por um bom tempo. Eu era incapaz de distinguir os dias. O mundo parecia monocromático e as pombas todas eram iguais, exceto por uma que era obesa e manca. O livro dos meus dias descrevia apenas páginas em branco, pois eu todo era feito de silêncio e ecos. O meu jeito de viver era inequivocamente reto. Meditava sobre possibilidades e não conseguia mudar nada na única realidade que existia. Sofri com o isolamento até que meus heróis com rostos de vilões apareceram e salvaram a minha vida. Foi apenas um convite para o futebol no sexto tempo (que era opcional) qual aceitei e tudo mudou. Eles eram e são até hoje estranhos, mas foram os únicos que me ofereceram ajuda quando ninguém mais conseguia me enxergar. Percebo hoje a necessidade daquelas manhãs longas e solitárias. Posso hoje chamá-las como quiser, mas elas eram apenas estranhamente parecidas e infinitamente tristes. É na solidão que damos valor aos que nos acompanham. Estar solitário e depois me unir aos "réprobos" da escola foi um dos processos mais importantes na minha evolução. Se eu soubesse hoje a falta que sentiria daqueles amigos... 

     Permito agora zombar da minha própria sensibilidade e igualo as coisas de uma maneira irracional, mas o faço por conhecimento e não por tolice. Essencialmente tudo existe e se repete e podemos, ora, viver em imaginação quando este mundo nos traz mais felicidade do que a realidade. Infelizmente sou alguém incapaz de me esconder pelo sono, pois durmo três horas por noite, transformando-me em morto-vivo, embora seja mais como um vivo que se assemelha com um morto. O peso de existir deixa meus ombros doloridos. À memória registramos impressões do que experienciamos sem ter certeza do valor da experiência. A voz percorre mentes e países e ecoa por outros mundos e nunca sabemos realmente a influência que temos. Primeiro nos deparamos com a clássica subestimação das nossas capacidades. Depois vislumbramos a nossa própria inteligência e alcance. É perigoso. Quando a inteligência se refina e nos sentimos poderosos, passamos pelo processo inverso pelo qual superestimamos nossas capacidades e desconsideramos coisas e pessoas que antes considerávamos. Nesta etapa há o risco inerente de nos isolarmos em uma solidão que objetiva uma busca pela erudição. Refinados em nós mesmos, cruzamos a noite escura com os olhos alertas, balançamos nossas cabeças, mas evitamos o contato visual. Há uma formalidade notável, mas não há educação ou carinho. O riso é abafado pelo medo de ser ridículo agora que você se tornou alguém considerável. Quem é que se arrisca a bancar o tolo? Quem é que pode rir na hora errada? Quem é que se importa com esse tipo de pequeneza? 

     Veja, eles ainda são jovens. Estão sentados no carro e rindo e sabem que em dois ou três meses ou doze meses nada será como antes, mas vejam como são cúmplices na felicidade e na melancolia que serve como pano de fundo de uma memória inesquecível que eventualmente será esquecida. Veja como são invencíveis e como são amigos eternos e como nada pode lhes derrubar. Invencíveis! Perceba como a alegria contagia tanto que as crises de riso se iniciam e não param, não param, nunca param, nunca nesta noite, nunca pararão. Veja, como eles ainda são incríveis e como todo o restante soa como motivo para rir e sorrir. Parmesão, pipoca, café derrubado. Veja como ninguém vê como a gente. Vê como ninguém é como a gente. Vê como o amanhã não soa real e como as histórias estão repletas de loucuras mais loucas do que as nossas e às vezes não há o que fazer.  Veja que não há objetivo que não nós mesmos. Veja como todos mudam, mas sinta  (assim como eles sentem) que este dia é raro e não pode ser desperdiçado. Ame-os agora. Veja como um deles peculiarmente anota tudo e guarda em uma gaveta bem chaveada, pois é algo que ele pode não voltar a ter e precisa segurar firme. Talvez os outros dois façam isso de maneiras diferentes. No fim do dia a gente é o que aprende. No fim da vida o que fica é o que a gente demonstra e sente. 

     Tudo é frágil e delicado e para os que enxergam e simultaneamente veem, é possível extrair de tudo uma nova inspiração. As estrelas lá na noite de breu causam uma surpreendente comoção. A brevidade da vida se anuncia, mas é mais forte que vidro este coração.

     Então todos se separam e vão cuidar de suas próprias vidas. Seus caminhos seguem (separados). Problemas novos os perseguem (mas estão preparados). A vida é assim e assim vai sendo. A gente gasta o viver da vida enquanto pode até que um dia tudo (e todos) vão se esquecendo. E alguns, bem lá no fundo, admitem que está tudo bem. Numa noite de junho, juntos, aqueles amigos foram além. Diferentes, estranhos, compartilhando uma vibração.      Dois tipos distintos de raposa e um tipo único de dragão. 

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