quarta-feira, 29 de maio de 2019

Amor

     Eu não tive nem como ficar pasmo, pois quando me dei conta já estava transbordando. Tudo bem nunca ter vivido esse amor de casal, mas como alguém que viveu pode se esquecer? Deixar de sentir? Ok. Deixar de saber? Não. Simplesmente havia me dito que... Não sabia o que era o amor. Eu não tive nem tempo de respirar fundo.

     É claro que você sabe. Amor é a simplicidade que a gente complica. É algo fácil e quando se possui olhos cuidadosos passa a ser cada vez mais simples. É o descanso na loucura segundo Guimarães Rosa ou a loucura que explode na calmaria a confusão desastrosa (segundo eu mesmo). Amor é você aparecer no mesmíssimo lugar durante anos e estar louco para dormir junto. É ansiar para contemplar o sorriso ou apenas para dividir o silêncio. É deitar no chão da cozinha e ser lambido no rosto por um cachorro preto do tamanho de uma pulga e sussurrar... Isso foi o que esperei por anos... É aqui que quero ficar. 

     O amor está acima dos outros sentimentos menores ou tortos. O amor persiste quando os corpos viram cinzas ou jazem soterrados e mortos. Amor é lealdade desmedida, séries ruins, animes novos ou repetidos aos finais de semana. Amor é amar o pouco que se tem e saber regar bem o que a gente ama. Amar é ter a consciência de não ter religião, mas transformar os cinemas nas segundas-feiras numa tradição tão sagrada que a falta dos filmes seja um pecado. Amor é saber o que sente e não ter medo de cessar o sentir, pois a valentia e o vento sempre sopram na direção certa para os corações firmes. Amor é amor e a ideia de mensurá-lo é correr o risco de soar como um pateta. Amar é falar do vislumbre até do que não mais se sente e se prostrar como um péssimo poeta. Amor é Roma ao contrário, aroma nas roupas esquecidas ou escondidas no armário, sorrisos presos em retratos empoeirados; memórias medianas muito bem vestidas e transformadas em atos românticos apoteóticos. Quem ama ou deseja amar ou é bom de olfato (como eu nunca fui) sente o cheiro do amor ou do que o que desejaria que fosse amor quando a pessoa vai embora. Amor é olhar de fora para dentro e simultaneamente de dentro para fora. São ainda olhos que dançam enquanto te observam, pois veem pela sensibilidade a amálgama que te compõe e imaginam o universo que existe dentro de você. ]

     Amor é como o conhecimento da humanidade sobre os oceanos: agimos como se soubéssemos de tudo, mas vimos apenas dez por cento. A arrogância faz pensar que entendemos e nesse momento somos idiotas e isso é amor. Amar é ser estúpido cônscio da estupidez. Amar é abrir mão, sem razão, da própria lucidez. É entender que aqueles dez por cento são suficientes para querer a eternidade e almejar uma chance de olhar para os outros noventa, até mesmo as partes agressivas e melancólicas. Talvez você nunca veja tudo, mas imagina. Se fosse uma história clichê, o amor seria o desfecho e o clímax. 
     
     Quem é você? Por que você? 
     
     Irrelevâncias infantis. Isso, na verdade, não interessa minimamente. Eu estou feliz que esteja aqui comigo nessa manhã, tarde ou noite e basta. Amor é andar de mãos dadas e olhar vitrines de lojas caras quais talvez nunca consigamos comprar; é planejar trezentas e cinquenta viagens das quais cinco vão dar certo. Amor é querer quase sempre estar por perto. Amar é, talvez, concordar que os restaurantes da cidade são todos uma merda, pois até a inconsciência sabe que é preciso buscar algo em comum nos dias difíceis e que pontos de equilíbrio são necessários. Amor é proximidade e distância, mas nunca amar a distância prolongada que se gera pelas vezes em que se faz necessário o afastamento. Amor é privacidade e invasão. É ternura sim, mas também tesão. Amor é olhar descuidado e ser capaz contemplar gestos, beijar os olhos, olhar as bocas e ter a noção de que... Tomara. Tomara que Deus exista para que minha filha tenha o mesmo jeito teimoso e falante dela. Amor é saber que se não houver filhos, há outras maneiras de ser feliz.

     Amar é aprender a não deixar para trás pelos motivos que não lhe pertencem e é saber deixar para trás espólios desnecessários que a gente traz quando deixa de sentir o que sente. Amor é golpe direto: faca que rasga o orgulho ou que quebra na tentativa. Amor é gatuno solto na noite, mãos leves e açoite, passos na neve e tentações furtivas. Amor é insanidade, insensatez e respeito. Amor é assim e também de vários outros jeitos. Amor é quando um senhor de sessenta e seis anos de idade empurra a porta da casa, entra correndo e grita, seu desespero escorrendo desenfreado pelos olhos e sua boca travada em frases que se repetem involuntariamente: Ela morreu, filho. Ela morreu! Amor é saber que dali em diante tudo vai mudar de repente... É não controlar o a angústia; é tentativa intermitente. De viver...

     Amor é cuidado prolongado por quem durante anos prolongou solitariamente o cuidado sobre dezenas de pessoas. Amar é acertar a piada e transbordar pelos olhos azuis como o céu a felicidade mais genuína, pois a esposa com a qual é casado há cinquenta e três anos gargalhou e naquele riso, o mundo tão gasto quanto sua memória e seus ossos, voltou a brilhar mais uma vez. Amar é ficar quando tudo dá errado. Amor é quando na noite fria vejo seu rosto no vidro embaçado do carro. Amor é se sentir internamente e inteiramente retorcido, é ser lembrado quando o resto do mundo havia te esquecido, é abraço forte e apertado. Amor é o furo da cronologia em busca de se sentir bem. Amor é intenso e expansivo, mas nunca faz reféns. Amor é colo macio, sexo forte, café quente, cafuné infinito. O amor preenche vazios, não mente, traz sorte e é invariavelmente bonito. Amor é a falta de respiração acalmada por um toque na pele. É algo pelo qual se zele. Amar é ver a imensidão do mundo nascendo das lágrimas no rosto, é ter e não ter a vergonha de se sentir exposto. É desconfiar, mas uma última vez acreditar... Agora não há engano. Amar é deixar alguém navegar no seu oceano. Amar é nunca matar aranhas, pois é melhor acreditar nas superstições mais tolas. O amor é um sentimento que transcende o tempo e palpita nas entranhas em uma tarde de outubro vazando pela língua a frase... “Eu acho que amo você”, ainda que saiba que não há achismos. É acreditar apesar dos anacronismos e silogismos quando o amor fecha a porta de supetão. Amar o amor é sempre confiar que alguém ainda achará o caminho para o seu coração.

E ela disse... Foi muito lindo isso que você falou.
Eu ri e fui embora, mas falei baixinho, quase inaudível... 

Essa é a minha sensação sobre o amor.  

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