quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Gabriel Medina

     Dois anos e meio às vezes me soam como dois dias. Tenho tentado fazer a diferença enquanto o tempo é meu aliado, pois jamais me esqueço de que um dia será meu único inimigo. 

     Eu morava em outro apartamento e já nem sei se foi o antepenúltimo ou ainda antes disso. Eu me mudei seis vezes, mas à época, creio que ainda estivesse na quarta. Chegava cansado do meu trabalho, qual faço também enorme confusão sobre qual era, pois troquei de empregos várias vezes nos últimos anos. Largava-me na sala, apenas para fazer nada ou qualquer coisa não tão importante assim. Até que o interfone tocava.

     Não havia dúvidas de que era o porteiro. Tudo começou em um dia como outro qualquer. Desculpa, mas você por acaso não pode arrumar a televisão do senhor Medina? Eu aceitei, é claro, se na vida você não puder tentar arrumar uma televisão, o que é que você pode? 

     Acontece que o senhor Medina sempre perdia a batalha contra a televisão e quando eu não podia ajudá-lo, quem o ajudava era o meu irmão Caio. Quando o Caio não podia, era eu. Vai lá. É a sua vez de ajudar o Medina. Em uma espécie de rodízio silencioso e sem reclamações, nós nos revezávamos para ajudá-lo.

     Um cachorro idoso nos recebia, ornando com o casal de idosos do terceiro andar. Às vezes ele fedia como quem pisava no próprio mijo, mas o que se pode fazer? Os cães envelhecem também. Geralmente ele latia bastante e ainda bem, pois é preciso proteger os donos da casa. Que o meu cachorro envelheça juntamente com suas manias! 

     A esposa do senhor Medina nunca me disse seu nome, mas sempre agradecia toda vez que eu arrumava a televisão. Sorridente e meio constrangida, ela dizia: agradece o menino, Gabriel. Agradece o menino. 

     Algumas vezes eles apertavam o input quando queriam desligar a TV. Outras vezes desligavam o sinal da NET. E quando eu arrumava, o Medina me olhava desconfiado e sempre me perguntava: o que foi que você fez? Como você arrumou? Eu explicava com calma, mesmo sabendo que ele se esqueceria. Havia certa ironia em saber que sabia mais sobre o velho Medina do que sobre seu homônimo surfista. 

     Nossas visitas eram tão frequentes que ele perguntava de vez em quando: você é o Caio? Você é aquele menino lá de cima? Você é o Daniel? E o porteiro sempre que interfonava dizia que ele pediu para chamar o Caio ou o Daniel ou o menino lá do nono andar. 

     Gabriel Medina sempre se vestia com calças sociais e sapatos marrons. Nunca o vi descalço ou usando chinelos e é impossível imaginar alguém mais avesso ao surf. A imagem do velho de bermudas era impossível. Será que eu serei um velho que usa bermudas? Ele também tinha um cabelo branco ligeiramente arrepiado, mas bem penteado com gel, como quem preserva a vaidade de maneira ritualística. 

     Mudei de casa mais algumas vezes e por algumas outras tantas vezes me compadeci de como deve ter sido penoso para o senhor Gabriel Medina o nosso sumiço. Será que isso é verdade ou ajudar um velho era alento para um rapaz quebradiço? 

     Sinto pesar-me o fardo de ter um coração. Tenho pensamentos grandiloquentes, mas há uma bagunça intermitente, interna e sem muita comoção. O senhor Medina com certeza encontrou rápido alguém para arrumar a sua televisão. Só espero que ele não assista canais de surf.

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