terça-feira, 14 de maio de 2019

Café e chuva na Paris do meu coração


     Anteontem choveu longamente na cidade qual moro. O resultado foi catastrófico. Tudo o que se vislumbrava, principalmente das ruas próximas ao extenso córrego, estava alagado. A água pode ser cruel, ainda que seja invariavelmente mais suave que o fogo. Os noticiários da televisão anunciavam prejuízos severos para a prefeitura municipal. Um homem exageradamente gordo, repleto de dobras e dono de um bigode espesso e grisalho, comunicou que o prefeito havia tomado medidas com caráter de urgência, pois sabia a necessidade de agir com rapidez. Observei o desenrolar da grande confusão e não pude deixar de rir, pois o funcionário do prefeito, instruído, simplesmente era proibido de atuar de outro jeito. Suas palavras haviam sido cuidadosamente escolhidas por terceiros. O fato era que todos estavam deixando a água rolar, o que suponho que não seja muito recomendável nos casos de enchentes. Por que deixar a água rolar quando ainda há maneiras de agir? Por que assistir estático quando pode fazer a diferença e interferir? A chuva continua hoje, mas os amantes das tempestades logo se decepcionarão. Eles ainda não sabem que no dia seguinte o sol enxotará as nuvens e brilhará esplêndido como no ápice do verão. O céu parece zangado e carregado, mas eu me tranco no porão. Não vai chover, exceto nas cidades repletas de excentricidades tão ricamente adornadas em meu coração.

     Acordei em minha cama no começo da tarde de ontem. Tive dois sonhos sexuais e suponho que tenha os sonhado por não ter feito sexo recentemente. O primeiro sexo soou adequado e o segundo foi excelente, mas as companheiras agora esquecidas, eram, de alguma forma indizível, apenas estranhas que não deveriam estar onde estavam. Ainda assim gostaria de lembrar dos rostos assim como jurei me recordar de seus gostos, antes que o paladar se perdesse no mundo de fora. Sonhos lúcidos de melhores horas! Levantei-me e tentei adivinhar o dia sem sair da escuridão. Claridade exagerada, pensei. O sol ardia forte fora da casa, mas ainda chovia dentro de mim. Olhe... Veja, eu jurava que tinha fechado todas as janelas, mas a sala está molhada. Eu tive a impressão errada de que ontem era um daqueles dias quais suamos ainda que estejamos parados. Será que a confusão se deu por ter me afogado? Agradeci quando o vento gelado invadiu a casa, mas resmunguei em desconforto por pisar com os pés quentes no chão frio. O choque é o que nos desperta e mantém alerta. Sigo a vida com boas e novas lembranças, mas é estranho me lembrar de tudo o que houve. Há arrependimentos, porém, eu sinto realmente tudo o que fiz. Estremeço. Será que imaginei aquelas ruas antigas? Será que aquelas paisagens espetaculares foram inventadas ou jazem esquecidas? Será que modelo a minha raiva, meu desespero, meu medo e saboto o meu jeito de ser feliz? Será que há alguém verdadeiramente lúcido que saiba o que diz? A luz solar esquenta tudo lá fora. Desafio-a sendo a invernia. Abro os olhos e observo o giro de alguns discos de vinis. Ainda estou escorado em um balcão aguardando o meu macchiato depois de ter tomado dois cafés italianos em uma tarde chuvosa em Paris.

     Enfim, o novo dia, tão inevitável quanto singular. O frio retornou. É melhor aproveitá-lo. Tudo se parece e nada se repete. É melhor aproveitá-lo. Vi em uma rua aqui perto de casa mendigos embriagados lutando pela guarda de um cachorro, mas não estou falando sobre batalhas em tribunais. Eles gritavam furiosamente. Dedos em riste, testas enrugadas, cuspideiras embutidas nas falas. Saio de perto, mas não sem antes sentir pena do cachorro. É melhor sentir algo. Faz um frio do caralho, mas eles não se importam. O clima é apenas uma minúscula rusga no meio de um mundo impreciso de detalhes sórdidos. Desço a escadaria após ter visitado a basílica de Sacré Coeur. Os vendedores idiotas chegam empurrando chaveiros e pedindo dez euros, mas empurro suas mãos com a mesma agressividade com que eles me empurram quinquilharias. Fitam-me com raiva e me xingam em francês. Eu bem que gostaria de saber como xingá-los em francês, mas só teço elogios em meu próprio idioma sobre as mães deles. Caminho sem parar e passeio pela Champs-Élysées, mas como estou ali sem estar ali, ela não me parece muito diferente da rua dos ricos que visitei em São Paulo. O desinteresse me choca. A minha sonolência em mim me assusta. As mulheres da cidade das luzes são bonitas, mas nesta visita não captam minha atenção. Volto para o hostel diretamente para o meu quarto. Agora novamente estou fora dos lugares que me trazem incômodo. Ausento-me e volto em um ou dez anos. Vou ao nordeste do Brasil, antes de seguir para os Estados Unidos. De lá sigo (de volta) para a Europa e não consigo pegar um avião para o Japão. Sinto uma raiva crescente no meu peito. Está ainda longe de mim este país que eu tanto aproveitaria. Lembro-me de que meu pai prometeu as passagens da lua de mel para o Japão, mas não há companheira e pela primeira vez não me deixo levar pelo desespero. Tudo bem, eu não tenho mais medo. Dane-se a lua e o mel. A minha prolongada ausência seguiu e não houve quem me procurasse. Puerilmente achei que estampariam meu rosto no jornal, mas o mundo seguiu exatamente igual. Neste momento tive a minha epifania e finalmente entendi. Eu quero mais é que os oportunistas e pessimistas e intrometidos se fodam. Sigam suas vidas. Como ainda é gratuito, por favor, não encham o meu saco. Peço ainda para que não tentem me alcançar, pois saí para jantar. Finalizo minha refeição sozinho e saio a esmo na cidade das luzes. Nas ruas certas sempre há iluminação. Ouço as batidas do meu coração. Ninguém nota este homem. Ninguém nota a camiseta com a grande ilustração de um demônio de fogo chamdo Cálcifer. Acreditam que a minha tatuagem solar é um símbolo maia da fertilidade. Não sei o que faço comigo, mas queria sacudi-los (às vezes). A conclusão é que a liberdade não traz necessariamente a felicidade, ainda que me permita fazer o que sempre quis. Fechei meu guarda-chuva e adentrei outra cafeteria numa noite nublada em Paris. Sentei-me solitário e esperei a minha bebida quente. Um gole de café é o que preciso para seguir em frente. Esqueci-me de como me apaixonar, mas fito a elegante porta de madeira com a ansiedade de um menino. Quem sabe aqui ou num bar lotado, na (no) Paraíba ou em Volgogrado, no trânsito fodido ou num flerte mal flertado, entre, enfim, alguém que mude o meu destino?

     O problema é que a maioria sabe o que procura. Sou vasto, mas não tenho tantas posses. Confesso hoje não segurar muito em minhas mãos. Se você quiser correr o risco e entrar, prometo que a única coisa que não vai faltar são as xícaras de cafés quentes nos dias de chuva, sejam eles de riso ou de tensão. Talvez você escolha ficar, pois é confortável este lar qual chamei de Paris do meu coração. As noites são excessivamente longas. Os sonhos são desnecessariamente interrompidos quando o corpo termina de descansar. É difícil, mas é assim que as coisas são. Até que mude as gotas d’água e a cafeína são minhas únicas companheiras neste antro de solidão. 

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