terça-feira, 21 de maio de 2019

Países distantes

     Sentei-me para conversar comigo sobre o que não conseguia falar com ninguém mais. O coração estava pesado pelo luto. A respiração estava ruim. Talvez tenha sido uma péssima ideia tomar dez xícaras de café, mas provavelmente foi a melhor que tive no dia inteiro. Olhei-me por alguns instantes, até que me localizei. Juro que estive prestes a escrever algo genial, porém, vi o momento em que correram para longe todas as palavras. Não tenho como descrever corretamente o que contemplei. As letras, incrivelmente desastradas, tropeçavam umas nas outras e se atropelavam. Elas, presas dentro de uma jaula perfeita na minha mente, aproveitaram a oportunidade de fuga quando eu mesmo, carcereiro de mim, destranquei a única saída. Gritei para que esperassem, mas fui ignorado. Assim, confesso-lhes que fiquei completamente desolado. Não é correto alimentar expectativas, mas hoje era o melhor dia para que as letras colaborassem comigo. A gente precisa dos amigos quando precisa, não é? Certo? Diga! Tique-taque... Meus olhos quase não piscam. Tique-taque... Minha sensibilidade é aguçada. Tique-taque... É uma ocasião rara, pois meu ímpeto é violento. Estou ácido, mas sou realmente capaz de me controlar. É assim que sei que sou o cara bom que tantos acreditam que eu sou. É pela insistência em ser o que preciso, ainda nos momentos em que só consigo ser como posso e brigo comigo arduamente para fazer o que é certo, apenas por questão de necessidade. Posso me machucar, não me foge à consciência, mas tenho um forte desejo de nunca ser detestável a mim. Respeito-me. Cumpro minhas promessas. Permito-me errar, mas não sou desafeto de mim mesmo. As pálpebras estão pesadas, como se sustentassem ferro. O sono é real e constante, mas perdi a capacidade de dormir. A lucidez se expande até um ponto em que as coisas todas perdem a sobriedade. O sentido é tão claro que repentinamente se escoa como a chuva ou o orvalho e desaparece. Agora os dias são longos. As noites são infinitas. Descanso entre um pesadelo sombrio e o intervalo de uma canção. O que é esse sofrer leve equiparado ao sofrimento que outros precisaram passar? 

     A morte despeja seu hálito maldito e apodrecido na minha face. O odor incômodo da bafejada, porém, não me remove do meu estado constantemente soporífero. Quero acordar, mas nem cheguei a dormir! Deitei por três horas, mas mantive meus olhos abertos. Quero acordar! Quero acordar? Dinamismo dos olhos atemporais... O olho esquerdo enxerga o passado que não pode ser esquecido. O olho direito vislumbra um futuro brilhante. Minha atenção nunca está no presente para agradecer pelos presentes que tenho recebido. A sina é de nunca ser o mesmo que antes. O movimento incessante faz a gente buscar o sossego. A tranquilidade excessiva faz urgir uma necessidade de sair, sugere um gosto de desespero. Tarde passada meu avô Damião concluiu, enfim, a jornada dele nesta Terra. Resistiu contra o tempo e mostrou uma força assombrosa. Terei essa capacidade de sobreviver algum dia? Eu me sinto acovardar. Será que alguém como eu pode ser corajoso e combativo? As memórias, ao menos, proporcionam certas estranhezas felizes. Mergulho em um passado límpido, eras antes da minha juventude, nas partes e peles sem cicatrizes. Ali vejo eu mesmo chegando, olho-me, mas que cabelo redondo e engraçado! Olho ali, vejo-me, lá vai o mini eu ligar o videogame. Bizarro como essas coisas a gente simplesmente sabe. Agora se aproxima a minha avó Malvina trazendo um prato de tomate com sal e em seguida vou ser abraçado pelo meu avô de um jeito todo especial! O senhor Damião falará e o eco de sua recepção é eterna: êêêêêêêêêêêêêêêê baiano! E gargalha em seguida o seu riso típico que me faz rir também. Um riso meio rouco, inteiro de carinho e amor. Olha como é a nossa família: simples, amorosa e direta. Olha! Olho-me outra vez agora mais atento. Eu e o mini  eu separados por anos e vidas de qualquer mera possibilidade de me tornar poeta. Eu? Daniel da imaginação, dos brinquedos, dos desenhos, dos videogames e do computador? Você acreditaria, vó? Você me leria, vô? Se um dia lá no futuro eu devaneasse em mil poemas de amor? Será que minhas palavras chegarão até esses países distantes quais vocês jazem? Será que vale a pena lutar por sonhos tolos que nos aprazem?

     Sei que este meu padrão é ligeiramente quebrado. Sei ainda que não sou ortodoxo, mas é como sou. Dane-se. Queria entender um pouquinho mais da vida para estar cônscio dos perigos, entender-me mais e compreender o mundo que a sensibilidade deixa para frente ou para trás. Por que há quem sofra parecendo fadado a uma espécie de castigo? Meu avô foi forte a sua vida inteira, mas como eu passei a desconhecer o único Damião que reconhecia nesses últimos anos. A cada vez que o encontrava, ele estava mais fraco. A cada vez que eu o encarava, seus olhos sempre pareciam um pouco mais opacos.  E a fraqueza lhe absorvia inteiro. Sua doença o consumia e ele era cada vez mais triste e magro. Crueldade irônica a de manter o funcionamento cerebral apenas ao ponto de conservar a lucidez no único estado em que a sobriedade racional já não interessa. Continuava a lutar pela vida. Seu olhar duro parecia implorar para que, de algum jeito, morresse com pressa. Mas vivia. Prisioneiro do próprio pensamento. Mas vivia. Os fieis dizem que Deus é justo, mas nessas horas falha a crença no julgamento. Enfim, o fim chegou. Enfim, despedidas fugazes e mensagens de amor. Enfim, descanso para a alma longe de qualquer possibilidade de deterioração de outros corpos. Enfim, sossego, tranquilidade para a nova jornada no caminho pelo qual seguem os mortos. Olha, você desconhecido, que não sabe de quase nada e nem sabe dizer ao que pertence. Tome conta dos seus amigos, toda perda, ainda que lenta, ocorre subitamente. E você passa a tentar trazer de volta, mas nada é como antes. Você deseja visitar quem partiu, mas quem queria encontrar nunca mais se viu. Todos estão em países distantes, sabidamente impossíveis à visitação humana. Rezo, arranjando-me com minha pouca fé, para que sejam felizes em uma nova trama. É o fim da dor. Hora de coisa nova qualquer. Que os finais sejam apenas recomeços. A paisagem é nenhuma e nos sentimos sem sorte, mas um dia também atravesso essa misteriosa bruma e descubro a próxima etapa depois da morte.

So I dive into the past
Deep in a ancient river 
Back to the start where it rests 
Some kind of a happy shiver 
Maybe the hurtest mans can never be sold
Maybe the summer minds can't ever be cold 
Time has now pass and we are all old
But when life ends what do I know?  
Maybe the weakest bodies holds the hardest souls 
Maybe the shattered parts builds hearts of gold

    Os crisântemos estão espalhados ao lado dos fantasmas e dessa grama toda bem cortada. Os antigos casais dançarão nesta noite sem nuvens.
E a vida continua. 
     E as flores exuberantes logo estarão murchas.
E a vida continua. 
     E as lágrimas escorrerão sem previsão de cessar.
E a vida continua.
     O tempo é bem que escoa e novas crianças ralam seus joelhos nas ruas. 
E a vida continua.
     E a gente precisa se esforçar ao máximo.

E a vida continua.
     E os bancos dos cemitérios estão vazios. Será que os espíritos se sentarão?
E a vida continua. 
     E as mulheres seguem lutando ferrenhamente. 
E a vida continua.
     E os tipos de homens certos fazem como elas.
E a vida continua.

     E os pais cuidam dos filhos até que um dia os filhos cuidem dos pais.
E a vida continua, continua e continua.
   Agora vá. Carregue-me na memória. Deixe as velhas histórias pesarem confortavelmente em seu coração. Viver é vago, mas nunca em vão. Agora vá, pois todos se vão. Há outros mundos além deste. O relógio corre e a vida continua... Segue em frente ainda hoje. 

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