terça-feira, 14 de maio de 2019

Prelúdio de Assalto - No apartamento

        O corpo de Miguel estava inerte no sofá e sua respiração era tão lenta que era quase impossível dizer se estava vivo ou morto. O cinzeiro estava cheio de bitucas de cigarro e o piso acarpetado também. Mu acreditou que apenas a sorte do desgraçado havia impedido com que o apartamento queimasse, pois o parceiro sempre se drogava e perdia a noção das coisas quando estava frustrado. Tendo por base o cheiro de bebidas baratas e prostitutas, Miguel havia estado bastante decepcionado. Juca estava sentado com a coluna completamente torta. A boca aberta liberava um ar fétido e Mu teve vontade de arrebentar a boca do idiota com socos. 
        - Escutem aqui, seus merdas! Nós não somos sócios? Que diabos vocês estão fazendo nesse apartamento de merda? Não me recordo bem, mas parece o cheiro do rabo da sua mãe, Juca. O outro retardado está vivo?! 
        - Ele fodeu tudo outra vez, cara. É sempre assim... - Comentou Juca sem qualquer emoção na fala. - Você nos botou nessa, Ferraz. Agora estamos fodidos assim... - O único homem sóbrio no quarto desferiu um soco violento em Juca. 
        - Vou te relembrar das regras, seu drogado de merda. Nunca me chame de Murilo ou de Ferraz. Vocês, palermas, possuem o péssimo hábito de serem uns fracassados do caralho, mas não me envolvam nas suas burrices. - Disse com a face transformada em um esgar odioso. 
        - Tanto faz, cara. Tanto faz... - Seu tom era exageradamente despreocupado e tranquilo. Agia como se nem tivesse sido atingido. - Ele desobedeceu seu plano. - Indicou com a cabeça. - Por que não o soca também? - Mu sentiu a raiva crescer. Talvez fosse melhor mesmo se livrar de idiotas como aqueles, mas não tinha associados competentes para o próximo assalto. Miguel e Juca não eram tão ruins, porém, eram especialmente fracos com as drogas. O primeiro era viciado em cocaína e Juca usava de tudo um pouco, mas estava conseguindo se controlar nos últimos meses. A fúria de Murilo era grande. Não perdoaria a incompetência. 
        - Quanto tempo até que o Miguel deixe esse estado vegetativo? - Perguntou ligeiramente irritado. - Quanto tempo até que você possa ser útil? - Juca ergueu calmamente os olhos e os susteve com tranquilidade na direção de Mu. Não havia raiva e nem incômodo. 
        - Eu só preciso de um banho, cara. Aquele ali acho que não sai do lugar. Talvez um chute na barriga ajude, entende? Acorda com um sustinho básico e vomita o que precisar, mas aí a gente levanta e vai. Se você achar mesmo que a gente precisa dele... 
        - Você sabe como são os meus alvos, Juca. Precisamos de três e eu não conheço mais ninguém apto. 
        - Tá de sacanagem comigo, chefe? Olha, cara, numa boa, minha mãe aleijada é mais útil que esse fodido. Eu conheço um cara que pode ajudar a gente. O apelido dele é Aborto e você imagina a razão. O maluco nasceu do avesso. É mais feio que enrabar a irmã no natal, saca? Tão feio que ele assusta as pessoas com a cara dele mais do que aquelas suas máscaras de esquiador. - Mu odiava contar com o apoio de desconhecidos, mas deteve o olhar minuciosamente em Miguel. Ainda não sabia se o sujeito estava vivo ou morto.
        - Ligue para esse filho da puta. Pouco me interessa se ele é bonito ou feio. Precisamos de mais um. - Disse e seguiu para o banheiro. Gritou antes de empurrar a porta com violência. - Você toma banho depois que eu mijar. 
        - Cuidado com o cavalo de Troia, cara. -  Disse e pegou seu telefone para discar o número de Aborto. A chamada estava em espera. Juca era preguiçoso, mas não incompetente. Sabia desde o dia anterior que Miguel jamais conseguiria e ele mesmo havia antecipado a grande oportunidade para o colega de infância apelidado de Aborto. Mu já estava mijando quando viu e sentiu a podridão da maior cagada de toda sua vida. 
        - PORRA! - Berrou furioso, mas continuou a mijar em cima dos monstruosos pedaços de merda. Eram tão grandes que cobriam a água. - CARALHO! DE QUE CU ARROMBADO SAIU ISSO? VAI SE FUDER, FILHO DA PUTA. 
        - Cara, eu estou no telefone com o Aborto. Se você tá tão pistola é a hora de colocar o Miguelito pra desentupir essa porcaria. Eu vou tomar meu banho prendendo a respiração. - Parou de falar com Mu por um instante. - Alô? Fala, meu bem abortado. Como é que está essa minha placenta? 
        - Puta que me pariu. - Resmungou antes de decidir que era melhor se calar, pois o cheiro horrível estava agora em sua língua e em suas narinas. Fechou a tampa e saiu sem lavar as mãos. Olhou com um ódio crescente para Miguel que seguia deitado. Mu ainda não sabia dizer se ele estava dormindo ou morto, porém, já não interessava. - Melhor que esteja morto, arrombado filho da puta. 
        - Certo, cara. É isso. Mu é o melhor do ramo, nunca errou. Vamos ganhar um cash alto, coisa supimpa mesmo, saca? Depois você pode fechar a zona e passar suas DST's para quantas putas quiser. Se quiser comer cu de macho também não é da minha conta, Aborto, só não me enfia no meio desses seus rolos. Sabe que eu ainda quero me casar na igreja? - Mu esperava agora com mais paciência do que antes. Juca deu um esboço de sorriso pela primeira vez. - Você é um filhinho de uma putinha, cara. Eu ainda vou casar na igreja com uma mina firmeza, saca? Uma que tenha todos os dentes na boca e que vai parir o Juquinha. A gente não precisa ter essa vida de fodido, precisa? 
        - Não. - Sussurrou Mu com pensamentos irritadiços e distantes. Recordou-se da vida boa que tinha antes de mergulhar nos crimes, mas jamais voltaria. Os grandes assaltos eram uma espécie de talento natural. Se sou bom nesse ofício, eu preciso continuar, certo? Eu dou sentido para o emprego dos policiais filhos da puta. 
        - Que se foda, seu abortado. O Juquinha vai ter uma boa vida, cara. Vai estudar em colégio grão fino e vai fazer três refeições por dia. Vai até comer pão com... - Pensou e olhou para Mu. - Como chama aquele doce lá que todo mundo gosta? Aquele marrom.
        - Nutella. 
        - Isso. Vai até comer pão com nutella nos domingos, sacou? Isso eu garanto, cara. Chega desse papo. Ainda não tenho a morena então vamo ao que interessa. Vamos passar aí. - Tapou o fone e olhou para Mu. - Que horas vamos lá? 
        - Passamos em meia hora. Ele não precisa de nada. Estou com as armas, as máscaras e o plano. 
        - Meia hora, cu sujo. Passamos aí em meia hora. Não se atrase. Meu patrão preza pela excelência e não quero que ele tenha a sensação de que eu troquei um ladrão de merda por outro. Ok. Até já. 
        - Eu te espero lá no carro. Nove minutos, no máximo. Você tem certeza que esse Aborto é alguém em quem podemos confiar?
        - Relaxa, cara. O maluco estudou comigo na quarta-série. É mais burro que uma porta com os números, mas assalta desde os doze anos. Nunca foi pego pelos homem, tá ligado? Conheço a peça. Se o seu plano...        
        - Você sabe que eu não falho. - Cortou com aspereza. - Seis minutos. Mu deu mais uma olhada para Miguel ainda imóvel no sofá. - Se esse merda não morreu ainda, eu quero que você me lembre de matarmos ele na volta. Arrombado viciado de merda. Já não bastasse atrapalhar quase sempre, ainda entope a privada... - Resmungou e bateu a porta ao sair apressado rumo ao carro. Juca sorriu genuinamente e esfregou as mãos andando vagarosamente até o banheiro. 
        - Nunca falhou até hoje, burguês filho da puta. - Chegou perto de Miguel e o analisou. - Seu merda. Nunca entendi sua lealdade por esse porra do Ferraz. Viadinho chupador de cacete. - Disse e cuspiu no homem deitado. - Deu conta de se arrebentar sozinho, mas depois disso foi fácil te tornar completamente incapaz. Vou sair pra esse roubo, mas não volto. Boa morte, cara. Minhas últimas palavras pra você? Sua lealdade te ferrou, seu arrombado. Parabéns por ter nascido como gente e morrido como uma anta. A gente se vê no inferno. - Cuspiu de novo e seguiu para o banheiro lavar apenas os sovacos e o pau. Era da opinião que deveria estar cheirosinho quando encontrasse aquela que seria a mãe do Juquinha. 

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