terça-feira, 30 de outubro de 2018

Relato do Catador de Restos

     Andei pelo centro de minha nova cidade sentindo saudade da velha qual jurei não retornar. É que o cheiro da antiga era discreto e minhas narinas, defeituosas e levemente funcionais, ainda conseguiam passar sem que eu sentisse novidades. Tive pavor de tudo o que era novo, pois o meu mundo era redondo, suave e agradável. Quem encontra um lugar de calmaria nesta imensidão, vez ou outra, deseja apenas retornar para o que é sossegado e bom. Não importa se esse lugar de calmaria é um quarto bagunçado, pois se é o seu lugar, ainda é mágico. Não importa se esse lugar existe meio aos solilóquios de um dramaturgo, garanto, ainda é mágico. Não importa se sua calmaria é uma pessoa exagerada e cheia de falhas de caráter. O riso fácil do qual sente falta lhe dirá o caminho. Há, porém, estradas sem curvas ou pontos para retorno. Por onde andar quando, sua cabeça e seu coração divergem e, os caminhos seguros são impossíveis, os seus antigos lares estão do outro lado do oceano de sua existência e o que é impossível acaba se tornando sua melhor expectativa de probabilidade na esperança?

     Intervalo. Fui ajeitar minhas pernas e bati meu joelho com força na mesa nova. Faz dez minutos, mas meu joelho continua dolorido e a mesa, impecável e linda, ainda está intacta. É motivo de contentamento. Se meu joelho velho quebrasse a mesa nova, eu talvez perdesse o rumo de meus pensamentos nesta noite, mas a vida seguiu como deve seguir. Imergi novamente e me lembrei de como tudo costumava ser. Fujo do que pode ser dolorido, mas inevitavelmente corro para o conforto das boas memórias. Todo mundo possui sua própria Estrada para Locais Seguros. Mergulho em mim, ou melhor dizendo, percorro-me. Quis de tudo nessa vida, mas sempre me indagava sobre a necessidade de querer ter o que eu queria. Nunca se utilizaram das duas versões comigo, embora, eu cansativamente tenha oferecido a oportunidade que todos se explicassem. Sofro o que existe, pois sou tão real quanto posso ser. Você teve dificuldades em aprender? Às vezes o que parece não é, e o que é, de todo jeito, é menos do que parece. Já foi enganado pela segurança de achar que sabe mais do que sabe, só por ter medo de não sabê-lo na integralidade?

     Amedrontado, eu me fugia. Quando me encontrava, corria. Quando criança, chorava. Quando adolescente, rugia. Que era eu ou que pensava ser? Um típico carneiro desferindo cabeçadas nos leões oportunos que tentavam se alimentar de mim? Não, diziam, você é um garoto e será sempre um garoto de pés sujos olhando para mundos que sequer existem! Rápido na sinceridade, devagar no raciocínio, excessivamente sensível até para os poetas falsos. Seu nariz, é bom que saiba, sempre será incapaz de captar os cheiros. Seus olhos não veem nada, tu sabe, no fundo da alma ainda é um garoto frágil e indefeso. Tento correr de volta. Quero minha Estrada para Locais Seguros. Tento dormir para me distanciar da pungência da dor, mas sigo insone. Fui traído pelos ditados populares: o tempo nunca curou minhas feridas. Cerrei os punhos e desafiei Deus e o Universo, anunciando, enfim, meu estado de loucura. Havia perdido para o mundo ou ganhado? Quem sabe dizer? Mas naquele momento foi o meu escape, a única fuga que eu precisava para correr até que não me restasse mais fôlego. Quando caí estirado no chão, dormi num sono profundo e sem sonhos. Quando acordei, infelizmente estava completamente lúcido, suspirei e chorei. O momento da jornada do fraco se decide aqui e sabia que, permanecendo ou não, eu era fraco e também forte. Tenha coragem, Daniel. Sussurrou um leão imaginário. Você já lutou com dragões maiores do que esse. Não é hora de uma reviravolta? Meus heróis, todos frutos de fantasia, se uniram para ecoar o cântico do meu renascimento insurgente. 

     Limpo a poeira da minha calça e com as mãos sujas de terra, eu seco minhas lágrimas. Essa é a minha história e eu me tornei um mero expectador. Há coisa mais deprimente? Sou o catador de restos, sempre perdido e confuso. Eu me alimento das sobras que me deixaram, pois, alguns acharam que possuíam o direito de determinar quais são os tesouros que eu mereço. Não mais, digo. Nunca mais e nunca novamente, repito. Essa é a minha história e eu sou o herói. Eu me recuso, anuncio. De agora para o resto dos meus dias, sejam eles muitos ou poucos, eu não sou mais o melancólico catador. Errei quando errei e me desculpei - fiz o que pude, basta. Acertei quando acertei - fiz o que pude, basta. Lamentações pela perda de algo irrecuperável? Já tive meu momento quase infinito de dor. Aprendi também que tudo que é passado é irrecuperável. É aqui que a onda quebra e que volto a ser mar. É aqui, no limite do que quase não deixou de ser, é que eu aprendo a ser mais uma vez, recomeço. Eu quis abraçar velhas partes que não existiam, pois tinham dado lugar ao que era novo. Eu também já não era mais quem eu havia sido: minhas roupas, meus pensamentos e meu jeito de andar haviam mudado. Quando foi que eu aconteci? Irrelevante. Essa é a pergunta errada. Sigo incomodando, mas não mais incomodado. Eu cutuco lagartas e elas se transformam em borboletas. Sorrio. Talvez esse seja meu dom. Ainda que voem para longe de mim, eu as contemplo com orgulho. Fiz parte da transformação e é motivo de alegria. Este herói agora tentará descansar. Quem sabe em um dia típico de inverno, cinzento e lúgubre, após uma garoa discreta, encontre eu a felicidade de maneira despretensiosa, onde nunca ousei procurar. Quem sabe não exista um mar verde e deslumbrante nos olhos de uma pessoa desconhecida? Nunca mais procurei, mas ainda observo com atenção tudo o que há em meu caminho, sei nadar. Quem sabe em um dia qualquer, eu ache algo que me sorria e valha a pena... Até lá sigo sozinho, mas hoje minha alma é serena.

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