quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Atemporal

     Ontem tive um sonho nebuloso, delicioso e repleto de mentiras confortáveis. O relógio era meu amigo, ora, que banalidade, nunca nos demos bem. No plano real, ele me olhava com um esgar de ódio e murmurava com uma raiva palpável: “você está perdendo tempo, Daniel. Até quando vai se atrasar por mais de uma hora para seus compromissos?”. Ele falava que as broncas eram para o meu bem, porém, aprendi a desconfiar desse desonesto jeito lesto. Nesta ilusão noturna, o velho relógio até sorria e dizia: “bom dia, você pode fazer o que quiser”. Ele fez um acordo com o tempo para que revivêssemos meus melhores momentos, ao que nos sentamos e nos abraçamos. Não me pergunte como, pois as explicações nos sonhos são incompletas. As bebidas existiam conforme eu as imaginava. Brindei meus grandes momentos da vida, todos banais, como os de qualquer outro ser humano. O relógio me olhava e sorria com uma cumplicidade que só os grandes amigos compartilham; ambos, humano e ponteiros, bêbados com cerveja barata. Psiu! Você quer ver? Ele me perguntou arregalando as horas. Sim! Claro, eu desejo muito, mas isso vai me ajudar? Ele me deu três tapinhas nos ombros e disse: Ah! Você diz que não é curioso! Há-há! Tic! Tac! Veja isso! Vegeta, olha bem!

     Tudo aconteceu como em uma pré-morte. Todos os minutos da minha vida, dos mais inúteis como verões desperdiçados em escritórios, choros derramados em velórios até os mais incríveis sorrisos. Primeiro, ele me fez enraivecer, mas o relógio observava o filme da minha vida com um orgulho paternal. Decidi que me assistiria. Olhei para a tela da memória e o branco ganhou forma. Chorei pelas pessoas que partiram sem despedidas, sabendo que algumas delas haviam morrido e outras não. Por fim, o relógio me cutucou e disse: isso vai fazer você acreditar que vale a pena. Prendi a respiração e fiquei atento. Tudo veio como se na velocidade da luz. O dia que lati para espantar cinco cães grandes que se aproximavam alvoroçados e raivosos de minha cadela; quando guardei a calça de minha avó na geladeira; quando fiz meus bonecos saltarem de paraquedas e descerem pela “tirolesa”. Não esqueço o primeiro beijo; o filme era Se Eu Fosse Você, e, estava tão divertido que até hoje me surpreendo com o momento qual parei de hesitar... Precisamos desses atos de coragem. Vi-me mais. O primeiro toque; a primeira oportunidade perdida e o primeiro sexo. O primeiro sexo com amor. Ri da minha inocência ao deixar um ovo de páscoa na geladeira por três meses, pois era o formato mais parecido que existia com um digi-ovo. Ri da minha indecência em urinar no sabonete líquido do colégio e de tirar fotocópias da minha bunda em locais totalmente inadequados. Alegrei-me de como me emocionava por coisas ridículas. Ri de como me apaixonei, pensei, para vida toda, com menos de um mês de momentos divididos. Ri de como nunca compartilhei meus melhores hábitos e sorri satisfeito, pois são somente meus até hoje. Fiz coisas ruins, nunca excessivas e chorei. Hoje sofro mais do que sou feliz, mas valorizo meus dias. Valorizo minhas pessoas. Amo com toda a minha alma tudo o que tenho, sabendo que não tenho posse de coisa alguma. Vejo todo o passado exatamente até o momento que, febril, eu cochilei e sonhei com o relógio. Ele me olhou com a paciência de uma mãe sábia: a vida passa rápido, filho. É por isso que, de quando em quando, exijo-te pulso firme e coragem. Viu quantas coisas boas? Se tu trabalhas bem, somos todos mais felizes... melhores. Seja corajoso.

     Acordo. Depois de outra epifania, eu sei que não sou o mesmo. Era como se eu tivesse dormido Daniel e tivesse acordado DANIEL. Observe isso, rapaz. Absorva isso, homem. Transforme-se agora. 18h52. É cedo. Vou tomar meu café e tentar me ser útil. A utilidade nos mantém em pé em épocas de crise. O tempo é amigo e inimigo. Não posso controlá-lo, mas quero ter a exata noção que eu sei como usufruí-lo, pois embora a felicidade e a tristeza, verdadeiramente sejam passageiras, eu sei hoje, que algumas memórias são eternas. O coração sente, indubitavelmente, de modo atemporal. É por mais desses momentos que vivo. É por mais dessas lembranças que quero continuar a viver. Se hoje acabar derrotado, levantarei a cabeça para um recomeço. Amanhã vou vencer. Aguardo com ansiedade pelo meu sono noturno. Tomara que outra vez o relógio me lembre de que vivo pelo meu coração. Tomara que eu nunca me esqueça das coisas que muita gente não vê. Espero que dentro das vinte e quatro horas de cada dia, eu seja atemporal.


Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,

Nem estes olhos tão vazios,

Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração

Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:

— Em que espelho ficou perdida

a minha face?

Cecília Meireles 


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