Ontem tive um sonho nebuloso, delicioso e
repleto de mentiras confortáveis. O relógio era meu amigo, ora, que banalidade,
nunca nos demos bem. No plano real, ele me olhava com um esgar de ódio e
murmurava com uma raiva palpável: “você
está perdendo tempo, Daniel. Até quando vai se atrasar por mais de uma hora para seus compromissos?”. Ele falava que as broncas eram
para o meu bem, porém, aprendi a desconfiar desse desonesto jeito lesto. Nesta
ilusão noturna, o velho relógio até sorria e dizia: “bom dia, você pode fazer o que quiser”. Ele fez um acordo com o tempo
para que revivêssemos meus melhores momentos, ao que nos sentamos e nos
abraçamos. Não me pergunte como, pois as explicações nos sonhos são
incompletas. As bebidas existiam conforme eu as imaginava. Brindei meus grandes
momentos da vida, todos banais, como os de qualquer outro ser humano. O relógio me
olhava e sorria com uma cumplicidade que só os grandes amigos compartilham;
ambos, humano e ponteiros, bêbados com cerveja barata. Psiu! Você quer ver? Ele me perguntou arregalando as horas. Sim! Claro, eu desejo muito, mas isso vai me
ajudar? Ele me deu três tapinhas nos ombros e disse: Ah! Você diz que não é curioso! Há-há! Tic! Tac! Veja isso! Vegeta, olha bem!
Tudo aconteceu como em uma pré-morte.
Todos os minutos da minha vida, dos mais inúteis como verões desperdiçados em
escritórios, choros derramados em velórios até os mais incríveis sorrisos.
Primeiro, ele me fez enraivecer, mas o relógio observava o filme da minha vida
com um orgulho paternal. Decidi que me assistiria. Olhei para a tela da memória
e o branco ganhou forma. Chorei pelas pessoas que partiram sem despedidas, sabendo que algumas delas haviam morrido e outras não. Por fim, o relógio me cutucou e disse: isso vai fazer você acreditar que vale a
pena. Prendi a respiração e fiquei atento. Tudo veio como se na
velocidade da luz. O dia que lati para espantar cinco cães grandes que se
aproximavam alvoroçados e raivosos de minha cadela; quando guardei a calça de
minha avó na geladeira; quando fiz meus bonecos saltarem de paraquedas e descerem pela “tirolesa”.
Não esqueço o primeiro beijo; o filme era Se Eu Fosse Você, e, estava tão
divertido que até hoje me surpreendo com o momento qual parei de hesitar... Precisamos
desses atos de coragem. Vi-me mais. O primeiro toque; a primeira oportunidade
perdida e o primeiro sexo. O primeiro sexo com amor. Ri da minha inocência ao
deixar um ovo de páscoa na geladeira por três meses, pois era o formato mais
parecido que existia com um digi-ovo. Ri da minha indecência em urinar no
sabonete líquido do colégio e de tirar fotocópias da minha bunda em locais totalmente
inadequados. Alegrei-me de como me emocionava por coisas ridículas. Ri de como me apaixonei, pensei, para vida toda, com menos de um
mês de momentos divididos. Ri de como nunca compartilhei meus melhores
hábitos e sorri satisfeito, pois são somente meus até hoje. Fiz coisas ruins, nunca excessivas e chorei. Hoje sofro mais do que sou feliz, mas valorizo meus dias. Valorizo
minhas pessoas. Amo com toda a minha alma tudo o que tenho, sabendo que não
tenho posse de coisa alguma. Vejo todo o passado exatamente até o momento que,
febril, eu cochilei e sonhei com o relógio. Ele me olhou com a paciência de uma
mãe sábia: a vida passa rápido, filho. É
por isso que, de quando em quando, exijo-te pulso firme e coragem. Viu quantas
coisas boas? Se tu trabalhas bem, somos todos mais felizes... melhores. Seja
corajoso.
Acordo. Depois de outra epifania, eu sei
que não sou o mesmo. Era como se eu tivesse dormido Daniel e tivesse acordado
DANIEL. Observe isso, rapaz. Absorva isso, homem. Transforme-se agora. 18h52. É
cedo. Vou tomar meu café e tentar me ser útil. A utilidade nos mantém em pé em
épocas de crise. O tempo é amigo e inimigo. Não posso controlá-lo, mas quero
ter a exata noção que eu sei como usufruí-lo, pois embora a felicidade e a
tristeza, verdadeiramente sejam passageiras, eu sei hoje, que algumas memórias
são eternas. O coração sente, indubitavelmente, de modo atemporal. É por mais
desses momentos que vivo. É por mais dessas lembranças que quero continuar a
viver. Se hoje acabar derrotado, levantarei a cabeça para um recomeço. Amanhã vou
vencer. Aguardo com ansiedade pelo meu sono noturno. Tomara que outra vez o
relógio me lembre de que vivo pelo meu coração. Tomara que eu nunca me esqueça das coisas que muita gente não vê. Espero que dentro das vinte e
quatro horas de cada dia, eu seja atemporal.
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles
Cecília Meireles
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