domingo, 21 de outubro de 2018

O homem que matou o charme

       Mato meu charme. Tenho alguma beleza, não daquelas que me tornam realmente lindo aos olhos dos outros, mas que me tornam bonito em um senso comum. Reconheço-me com esta forma e me aceito. Não sou um dez, mas tampouco desejo sê-lo. O que importa, porém, não é isso. Um cara com a minha beleza e que saiba utilizar seu charme sabe ser quase sempre irresistível e fatal. Eu não ambiciono ser minimamente charmoso, uma vez que conheço todas as maneiras de matar meu charme e desconheço sequer um jeito eficaz de me impedir. Não consigo parar antes que minhas mãos estejam ensanguentadas.

   A metáfora soa pesada, porém, é exatamente como me sinto. Se, sou bonito (repito, não exageradamente), tenho um corpo qual me agrada e sou “suficientemente” inteligente, pois, como é possível acabar completamente com o próprio charme? Revelo a maneira: palavras! As mesmas palavras que seduzem, invariavelmente, podem ser palavras que chacinam. Em regra, sou escritor, mas minha eloquência é quase inexistente para com os desconhecidos. Quando não me dão intimidade, não a peço e tampouco a imploro. Nas conversas virtuais, todos reparam o fato de que sou prolixo. Quando me encontram, porém, se surpreendem com o quanto posso ser calado e introspectivo. Veja, não é que eu seja duas partes de coisas diferentes, mas que eu seja duas partes diferentes da mesma coisa. Subitamente me interesso por algo qual faz meus olhos brilharem de paixão e, se tenho uma chance de me aproximar, bem, eu me aproximo, é claro, desde que isso não me faça trair meus princípios. Há dragões que simplesmente existem belos e deitados em meio a rios de ouro. Contemplando-os, surgiu uma indagação na minha mente. São maravilhosos, por certo, mas se são tão belos, vale uma vida deitada em uma pilha de riquezas quando se pode voar pelos céus? A sensação de conforto no luxo é tão poderosa assim? Gargalho ao notar meus próprios pensamentos. Consterno-me ao me localizar dentro de minhas próprias percepções. Sou um tanto ridículo.
       
      Nunca me ensinaram a dialogar com maestria, assim como seis meses de curso de inglês aos nove anos de idade não me fizeram falar o idioma. Meus amigos à época certamente possuem certificados, mas eu passava minhas tardes em casa assistindo Invasão Anime na Fox Kids. Talvez nosso inglês em um duelo rivalizasse forças, porém, eles jamais aprenderão o que eu aprendi com os “desenhos japoneses”. Sorrio. Estou em um bar com um amigo. Uma garota me pergunta se eu estou com o loiro lindo. Dou um sorriso largo toda vez que penso nessa frase. Ela se insinua pra mim, assim como ficou claro que se insinuará para o meu amigo loiro e lindo, mas esses flertes inocentes me soam cômicos. Ela fala que está em um relacionamento aberto, à distância, depois toca meu peitoral. Eu dou risada. Não tinha reparado nela até que ela falasse comigo, mas agora é provável que eu não repare nela para o resto do ano. Não faço do ato dela um ato de vilania, até porque ela já estava alcoolizada. Talvez se ela tivesse me perguntado sobre dragões e fadas; cafés e chás; bolos bem doces ou a maneira que gosto de comer macarrão; sobre filmes marcantes ou livros emocionantes. Mas ela só quis saber do que não me interessava. Agradeci ao Universo, pois ainda poderia ser pior. Imagine que nestes tempos sombrios os números 17 e 13 causam tantos arrepios! Aos que me perguntam sobre meu voto, minto propositadamente, sabendo os deles, apenas para tumultuar e causar alvoroço. Aprecio o fato de ser rotulado imediatamente por pessoas que, na realidade, me desconhecem completamente. Querem descobrir minha identidade por meio de opções políticas? Rasos! Controlo a vontade de gargalhar, mas sorrio como alguém que se descobriu repentinamente com sorte. Penso no altruísmo de oportunidade e na oportunidade de consagração com a opinião popular. É tempo de unir forças, mas há confusão nítida entre enaltecer a causa e se enaltecer pela causa. O ciclo se repete. Quem são os inimigos? Eu penso o que eu penso ou penso o que pensaram por mim? Os inimigos, de fato, existem?

    Claro. Os tais inimigos são, na verdade, tão somente opositores. A imagem que gera o asco, quando não é sincera, provoca-nos náuseas secretamente. Pois bem, vai ousar gritar o que não se admite ouvir sequer em sussurros? Os dias parecem iguais, mas são ligeiramente diferentes. A vida vai indo, como só vai, o fluxo é ininterrupto, embora, as breves pausas sejam perceptíveis. A vida vai indo, como só vai, e, se não canalizar sua atenção no presente, vai se acostumar a se contentar com o que sobrou. Se você fosse um navio já haveria soçobrado; agradeça que seus pés tocam o chão e que as quedas não são definitivas. Levante-se e esteja preparado. 

     Ainda estou no bar. Mais de três pessoas já me disseram que este não é o meu lugar, pois eu tenho cara de lugares mais requintados. Repudio este comentário. Tenho apenas uma face e que ela me sirva a todos os lugares ou nenhum. Não há tantas belas pessoas hoje; tampouco há pessoas interessantes. Eis que me vejo cercado, mas me sinto liberto. Gostaria de conhecer uma pessoa de verdade e perguntar sobre o que a emociona e o que a faz feliz. Também é provável que eu perguntasse se ela bebe refrigerante e se o tereré lhe tira o sono. Contaria o dilema do furacão e aguardaria pela resposta; gostaria de saber se é o tipo de pessoa que divide ou não seus hábitos. Não julgaria quaisquer palavras. Aqui reside a mágica. A honestidade nos assuntos não vulgares, que me soam ligeiramente mais interessantes, afastaria todo o meu charme. Meu interlocutor me teria por um bobo afetado ou por um estranho. Se, mesmo de longe, alguém passasse perto de me entender, me olharia com desprezo e depois com admiração. Não perguntaria “Por que”, mas sim “Quem”? Eu me alegraria, pois seria a primeira pergunta relevante no último trimestre. “Sou aquele que não pode e tampouco sabe se quer seduzir alguém. Sou o homem que matou o charme, mas que jamais vai esquecer o seu nome”. Olharmo-nos-íamos felizes, cônscios de uma verdade fatal, que o restante do mundo jamais conheceria. Ainda que fôssemos pobres coitados, o momento seria de compartilhar riquezas invisíveis e até os dragões luxuosos sentiriam inveja da franqueza daqueles espíritos. 

     Pois bem, eu mato meu charme, todos os dias, mas dou a devida liberdade à minha alma. Mato meu charme. Não preciso dele. Tenho um nariz perfeito, disse a mulher da agência de modelos uma vez deixando claro que era minha única parte bela e singular. Nunca voltei. Ela não sabe do desvio de septo, da rinite e da adenoide. Claramente ela não sabia ver uma pessoa. Como pode saber sobre qualquer tipo de beleza? Meu nariz não é bom. Mato meu charme de novo, mas valho-me da alegria cotidiana. Sou uma pessoa que conhece a liberdade e isso me basta. Serei feliz em quinze minutos quando estiver bebendo meu café, solitariamente. Em seguida, serei feliz lendo os meus livros. Serei livre enquanto viver a minha vida, sem precisar me provar aos outros, pois tenho liberdade nas minhas atitudes reais e também nas sonhadas. Quem sabe um dia sejam todas as pessoas livres assim? Utopia. Na intenção de adquirir a liberdade, alerto, às vezes é preciso sujar as mãos. Mato meu charme de novo e os charmosos todos se perguntam... "E daí?"

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