sábado, 20 de julho de 2019

Memória

     Antes que anoiteça, por favor, diga as palavras que deixou de dizer. Antes que você escureça por dentro, por favor, diga algo que amorteça simultaneamente sua dor e prazer. Logo vai amanhecer. Faça algo, mas faça agora. Você já nota o relógio da vida ou ainda vive como se tudo fosse constante e eterno lá fora? Os dias estão mais curtos e as noites fugazes. Os ímpetos são mais brutos e expomos nossas vontades em gigantescos cartazes. Fora, na verdade, é dentro. Tudo o que você desconsidera talvez seja algo que deva considerar. As coisas pequenas e cheias de fragilidades são importantes. O agora é fundamental, mas nunca se esqueça do que ocorreu antes. Partes que nos formam, memórias, histórias, os caminhos que nos trouxeram até aqui... Hexagramas sentimentais de pontas que já não se conectam mais e também os motivos e pessoas que tanto te fizeram sorrir. Você amadureceu, não foi? Cresceu tanto! Aprendeu sobre política, geografia, cidades, sucesso e dinheiro. Sabe mais agora sobre mulheres, homens, restaurantes, bocas, ciúmes. Sabe que nas noites gélidas com a concentração e a imaginação certa, é possível sentir o cheiro de antigos perfumes? Sabe o tempo de vida de um vaga-lume? Você escuta o resfolegar dos ressentidos? Sente o hálito suave dos mortos pelos lábios de seus amigos? 

     As lições sobre o verdadeiro frio são aprendidas no inverno. Os improváveis arrepios nunca se repetem, mas é comum fechar os olhos e fingir que se esquece. Há consternação no meio dos seus pensamentos de valor? Há interlúdios entre suas canções de amor? Antes que a vida se vá e nos percamos das coisas quais nunca desejamos nos perder, eu peço para que hoje, por favor, apenas me deixe estar com você. As pessoas se partem em jornadas sem voltas. Você almoçou e saiu correndo, mas e se na próxima vez sentasse no sofá por uma hora? E se nós assistíssemos juntos aos jogos do campeonato brasileiro? E se você ficar quieto e perto nesta semana? E se o silêncio contemplativo bastar para estar ao lado de quem você ama? E se o que ainda resta de memória for uma nova história que precisa apenas de um exímio narrador? E se o que resta presta e basta para sentir a felicidade que o peso da idade recentemente lhe tirou? Eu sei, é clichê, mas um dia, se tivermos sorte, seremos velhos. Quando a velhice chegar, eu prometo que vou tentar extrair da minha futura idade os seus prazeres e suas dores. Quando for idoso vou me dedicar exclusivamente aos meus novos afazeres e aos meus velhos amores. Vou conservar a memória enquanto puder e você me prometa que ficará por perto apenas o suficiente para que eu me sinta seguro. O correr das horas enfraquece até o homem mais duro. Sabe que eu ainda me lembro hoje de tudo? 

     Meus olhos se fecham e minha percepção aumenta. Caminho em segurança pelas lembranças, lado a lado com o que me regozija e atormenta, mas desdenho das impressões quais elas se esforçam para me impor. Eu tenho olhado para o mundo com muito mais carinho e amor. Cônscio de que tudo se finda, eu vivo como se fosse morrer hoje e observo como a vida é linda. Abraço meus parentes e amigos e agradeço aos mais importantes por terem nascido. Debruço-me e conquisto uma nova mulher. Erro no flerte e não a mantenho por perto uma semana sequer. Dane-se. Afasto, aproximo, rimo, vasto, aprendo, ensino. Leio, escrevo, incomodo, sou incomodado. A vida é agora e ocorre e escorre ali do lado. O sábado é quente, mas é uma pena que meu café tenha esfriado.

     Escrevi este texto depois de passar um tempo refletindo sobre meus parentes que morreram, sobre os amigos que deixaram de ser amigos, sobre meu avô que está com alzheimer e aos poucos se esquece de alguns detalhes, sobre a minha avó que segura essa barra praticamente sozinha... A vida é frágil, rápida e tudo muda e se desgasta. Aproveite sua vida. É cedo demais para perder tanto tempo assim. Você empenha todo o seu tempo em gente que nem te olha com tanto carinho assim... 

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