sexta-feira, 12 de julho de 2019

Eu ainda não havia parado de afundar

     Sonhei que me vestia elegantemente para sair de casa, mas havia certamente algo de errado. Meus olhos ainda preservavam suas maiores qualidades, portanto, nunca deixei de ver tudo o que realmente me importava. Uma coruja jazia perto, isso era certo, mas escutei seu crocitar de uma longa distância, pois minha atenção estava direcionada para outros objetos secretos. Aproximei-me vagarosamente de um espelho grande que havia na misteriosa sala na qual me percebi e, em seguida, observei o meu reflexo. Devo confessar, primeiramente, que não me agradei ao fitar eu mesmo. A figura diabólica e deforme desafiava qualquer pitada de nexo. A face do monstro que eu via fez com que eu me enxergasse perverso. Fui tão mau assim? Senti como se estivesse me afogando e ingenuamente acreditei que alguém apareceria para realizar o resgate. Eu continuava a afundar. Alguém me contou mentiras e eu soube delas imediatamente. Sempre fui bom com a detecção de coisas banais. Quase sempre dei de ombros e deixei que mentissem, pois quem evita a verdade geralmente possui uma razão para agir assim. Desta vez, entretanto, eu reagi e vi o mentiroso se erguer em fúria, exigindo entender a razão de eu tê-lo desacreditado especificamente na última ocasião. Engraçado como se comportam quando você deixa de agir da maneira que é conveniente para os outros. 


     Eu ainda não havia parado de afundar. 

     Eu ainda não havia parado de afundar. 

     Eu ainda não havia parado de afundar. Forçava os meus braços e pernas para cima, porém, era simplesmente incapaz de alcançar a superfície. E pensar no esforço que às vezes é necessário empreender apenas para respirar. E pensar nas tantas vezes que mergulhei fundo na tentativa de salvar vidas, até mesmo quando ainda não havia aprendido a nadar. A coragem e a tolice invariavelmente andam próximas. Um pouquinho mais para lá ou um tantinho mais para cá e de repente você se vê compreendendo a própria burrice. O motivo? Você se importa e não adianta tentar raciocinar sobre algo que só consegue sentir. Quem colocou mentiras no meio das verdades que você me contou?

     Eu ainda não havia parado de afundar. 

     Eu ainda não havia parado de afundar. 

     A batida do meu coração pulsa pela sua vida. São as partes que nos formam. Verdades que nos alcançam. Conversas rápidas. A sinceridade que se cala. O ego não te deixa ser menos arrogante. Você precisa mostrar que é melhor do que antes. Aponta os fracassos alheios enquanto fracassa, mas vê sua vida num espelho que se despedaça. Você está perdendo o que costumava ter e não parece que vai recuperar. Você está perdendo a única casa que teve, mas insiste em dizer que aquele ainda é o seu lugar. O desconforto te atrapalha, mas você se alimenta com conveniências e se regozija. Acha que é uma espécie de ditador de tendências, mas tende a seguir atrás do que te escraviza. Fecha-se em silêncio, mas não há inteligência que te separe da dor. Quem diria que alguém tão sensível e diferente também poderia ser refém do amor. E lá no fundo da sua alma, você afasta o novo e insiste no que escolheu te deixar. Persiste e resiste num choro incessante por quem prometeu não voltar. A sombra se foi com a noite e eu ainda não havia parado de afundar. Senti a autopiedade e a raiva, mas movi meus braços e pernas, recordando-me de que ainda sabia nadar. Respirei e em seguida, sentei-me placidamente mo chão. Sorri, mas ainda pulsava em mim a raiva. Não há muito sobrando, mas sei que cumpri para com as minhas dívidas. Não deixei contas pendentes. Eu poderia voltar a afundar, mas não me permitiria o afogamento tão fácil assim. Que se acertem aqueles que ainda devem algo. Que os antigos sonhos se explodam e que quem passou permaneça longe de mim. 

     Que o fantasma indecente morra. Que os antigos afetos se fodam. Que quem me tratou como objeto nunca mais me ocorra. Que a madrugada engula tudo e preencha seu estômago vazio e sacie seu apetite tão voraz. Que o processo de digestão seja eficaz: eternidades transformadas em nunca mais. 

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