Capítulo 2: O Entregador.
Dambibo
estava impaciente e mal-humorado. Reconhecia que a alegria não era um de seus
pontos fortes, mas ao mesmo tempo pensava que as circunstâncias dos últimos
onze dias lhe eram totalmente desfavoráveis e que aquilo justificava o seu
destempero. O sujeito estava cogitando não fazer as entregas, mas seu senso de
responsabilidade era superior às vontades mundanas. Sua ética profissional
simplesmente lhe impedia de deixar obrigações pendentes. O trabalho existia, essencialmente,
para que fosse concluído.
— Porcarias de decoro e educação. Por que eu não posso simplesmente
parar de fazer essas entregas?! — Sua voz era áspera e seu tom grosseiro, mas
acreditava que não havia motivos para ser polido em um monólogo consigo mesmo.
— Você sabe! Porque você é um entregador, seu idiota!
Dambibo tinha noventa e sete anos de vida, mas para ele e os de sua
espécie aquilo não era nada excepcional. — Se eu fosse um maldito humano
provavelmente já estaria morto e com podridão em todos os meus ossos, mas pelo
menos eu não estaria fazendo esse maldito... Essas entregas! — Ele continuava
com os resmungos, pisava duro e mantinha uma careta. Embora reclamasse
incessantemente, sabia que não havia ninguém para prestar atenção em sua birra.
— Uma onzena trabalhando consecutivamente! Eu me pergunto se qualquer humano
trabalha onze dias seguidos em seus reinos! É claro que não! Nem mesmo aqueles
miseráveis elfos com suas cabeças de almôndegas — enfatizou a frase com uma
raiva crescente enquanto cerrava o punho direito como se fosse socar algo —
trabalham tanto quanto nós! Gostaria de acreditar que há limites para a folga,
porém, a resposta é óbvia. Para ser sincero já é previamente sabido que não
existem tais limites. — Dambibo continuava com suas rabugices, mas avançava com
rapidez. Muito tempo se passara desde que percorrera aquele caminho pela última
vez, mas ele ainda conhecia a trilha como as palmas de suas mãos. Durante o
percurso reconheceu uma placa que não lia há alguns anos.
Cuidado:
Área de Baleias Gigantes.
— Cuidado? Até parece! É bom que essas orcas tomem cuidado comigo. Eles
me mandam para qualquer lugar. E daí? Quem se importa comigo? Vila Nebotete!
Pelas orelhas pontudas de Smeriel! Quem mora naquela vilinha por esses dias?!
Com certeza existe um engano no destinatário, mas na dúvida quem deve percorrer
quilômetros para tirar a prova? Dambibo! Quem é a cobaia da ocasião? Dambibo!
Quem é arrastado até as proximidades da Montanha do Princípio? Dambibo! Toda
vez eu! Sempre eu! Tudo eu! Se eu tivesse me tornado um bruxo, provavelmente
disporia de mais regalias, mas que hora infeliz para ser um alatu.
Dambibo atravessou uma longa e estreita passarela de gelo com impressionante
velocidade. O azedume do entregador continuava palpável. Sua expressão
transmitia irritação e desconforto, mas mesmo de mau humor e pisando com
firmeza no solo, seus movimentos eram tão leves e suaves que lhe conferiam um
aspecto de dançarino. A mente do entregador estava concentrada no momento em
que o maldito elfo lhe designara aquela missão.
Venha, Dambibo. Aproxime-se. Desta vez é importante. Você foi selecionado para entregar a encomenda de B para G. Este está na região da Montanha do Princípio, segundo o remetente, na Vila Nebotete, e não temos o número da barraca. Você terá que verificá-las uma a uma.
Dambibo não gostava muito dos elfos e nem que ressaltassem seu parentesco com eles. Ele também detestava piadas. Julgou tosco todo aquele humor élfico. O mestre de missões havia sorrido amigavelmente, mas ao entregador ele pareceu sarcástico e cínico. Dambibo perderia as estribeiras se não fosse seu emprego, mas a necessidade de obedecer ao chamado do dever existia e aquilo fez com que ele mantivesse o controle. — Porcaria de elfo! Ele não sabe o que é dar duro! Fica sentado naquela cadeira com aquele sorriso afetado e bobo! Aquele cara de almôndega! Até o nome é fresco... — Dambibo assumiu uma expressão abobalhada, afinou a voz e tentou uma imitação. — Olá, eu sou Grovidarmel, um elfo muito bacana. — Parou a imitação para dar vasão à sua raiva. — Grovi o quê? Que porcaria é grovi? Só pais almôndegas poderiam ter dado um nome tão delicado a um elfozinho. Patifaria! Nas horas difíceis não há nenhum Darmel para ajudar, mas nunca falta o Dambibo. Problemas? Muitos! Não sei quando foi que eu pendurei na minha testa uma placa escrita O Solucionador de Conflitos. Não posso ter paz?! Porcaria!
Venha, Dambibo. Aproxime-se. Desta vez é importante. Você foi selecionado para entregar a encomenda de B para G. Este está na região da Montanha do Princípio, segundo o remetente, na Vila Nebotete, e não temos o número da barraca. Você terá que verificá-las uma a uma.
Dambibo não gostava muito dos elfos e nem que ressaltassem seu parentesco com eles. Ele também detestava piadas. Julgou tosco todo aquele humor élfico. O mestre de missões havia sorrido amigavelmente, mas ao entregador ele pareceu sarcástico e cínico. Dambibo perderia as estribeiras se não fosse seu emprego, mas a necessidade de obedecer ao chamado do dever existia e aquilo fez com que ele mantivesse o controle. — Porcaria de elfo! Ele não sabe o que é dar duro! Fica sentado naquela cadeira com aquele sorriso afetado e bobo! Aquele cara de almôndega! Até o nome é fresco... — Dambibo assumiu uma expressão abobalhada, afinou a voz e tentou uma imitação. — Olá, eu sou Grovidarmel, um elfo muito bacana. — Parou a imitação para dar vasão à sua raiva. — Grovi o quê? Que porcaria é grovi? Só pais almôndegas poderiam ter dado um nome tão delicado a um elfozinho. Patifaria! Nas horas difíceis não há nenhum Darmel para ajudar, mas nunca falta o Dambibo. Problemas? Muitos! Não sei quando foi que eu pendurei na minha testa uma placa escrita O Solucionador de Conflitos. Não posso ter paz?! Porcaria!
O dia passava e o ocaso se aproximava. Os pássaros que cruzavam os céus
já buscavam seus esconderijos para passar a noite. Dambibo seguiu a trilha por
horas a fio com a mesma agilidade que lhe era peculiar. Mesmo que estivesse
completamente insatisfeito e indisposto, ele jamais deixava de realizar seu
trabalho. Se havia um serviço a ser feito, ele o fazia. Estreitou os olhos e
finalmente viu a pequenina vila. Ficou aliviado por um instante até lembrar-se
de que sua jornada era pura perda de tempo. Receou-se de que a entrega poderia
ser só mais uma sacanagem dos malditos elfos, mas decidiu que nem mesmo eles
fariam isso quando o assunto era trabalho. Ainda de mau humor, Dambibo
continuou pela estrada. Ele observou que apesar de antiga, ela mantinha um
aspecto relativamente bem conservado.
— Vejo que estão cuidando bem do fim do mundo. Que notícia boa! — Disse
em tom sarcástico. — Sei que há um engano no destinatário! Eles me fizeram vir
até aqui! Eles ainda vão se entender comigo! Eles irão ver! Eu juro que vou...
Vou fazer uma reclamação formal! Podem apostar que eu vou! — Ele estava
surpreso com suas próprias piadas. Nasceu e viveu quase toda sua vida em Glacep,
o Continente Gelado, e sabia que muitas lendas apontavam a Montanha do
Princípio como o local onde o mundo se originara. Achou irônico que o começo do
mundo estivesse largado há tanto tempo e mais merecesse o apelido de fim do
mundo. Ele não presenciara os tempos em que Glacep era considerada um dos
continentes mais prósperos, mas ouvira todas as histórias. Até pela experiência
de vida, Dambibo sabia como a vida era imprevisível e dinâmica. O mundo dava
muitas voltas.
— Você vê, Dam? Todo o restante do
mundo evolui e Glacep parece ficar para trás. É triste. Algum dia esse continente vai virar
história. — Escutou o entregador e por um momento foi como se ele estivesse prostrado ao seu lado.
— Eu sei que você só fala agora através das minhas lembranças, mas eu nunca
tinha prestado atenção nas suas palavras. É mesmo... É mesmo realmente triste.
— Sua voz abafada pelo vento era quase inaudível. Por alguns instantes a sua
carranca se desfez e sua expressão denotava uma tristeza profunda. Se existisse
alguém por perto talvez pudesse ter um vislumbre de sua dor; provavelmente estenderia
um silêncio solidário e se fosse empático o bastante observaria em silêncio
soturno. Mas não havia qualquer ser vivo. Dambibo estava sozinho e ao redor só
havia neve e gelo. Nos instantes em que se sucederam o entregador só ouvia as
sinfonias produzidas pelo vento. A lembrança de outrora fez com que ele ficasse
sorumbático. Sua alma era mais nublada e instável do que o próprio céu. Ele
respirou fundo e seguiu em frente. Desanuviou os pensamentos quais preferia
evitar, fugindo de um passado inevitável, qual ele sabia que era mais rápido
que ele.
A área montanhosa perto da Vila Nebotete representava um grande deserto
congelado. Havia pouquíssima diversidade de vegetação, ínfimas árvores e poucas
espécies de animais. Bem distantes, ao fundo do cenário atual, as únicas que
ganhavam seu devido destaque, imponentes e soberanas, erguendo-se como se
fossem rainhas daquela região, eram as montanhas. Dambibo fitou o horizonte,
contemplativo.
— Não consigo acreditar neste lugar. O vento é a única coisa que faz
barulho por aqui, mas o silêncio deve ser ensurdecedor na maior parte do tempo.
Já estive nessa região, mas mal passei pela vila. A ideia de permanecer em um
local assim é absurda. Creio que a única boa coisa deva ser o fato de não haver
salteadores por estas bandas. Com certeza congelariam as suas bundas criminosas
por aqui. Ademais, o que salteadores fariam aqui? Roubariam ou tomariam para si
exatamente o que? Venderiam neve por gelo e gelo por pedra? Não, não há motivos
para cogitar salteadores nesta região. A não ser que fossem mestres de alguma
magia ou alquimia avançada e pudessem transformar neve em ouro, qualquer
hipótese de permanência neste local seria idiotice pura. Também não existem
alquimistas ou usuários de magia que sejam realmente capazes disso, embora não
seja sábio duvidar das histórias infantis. Por que é que estou falando sozinho?
Alguns minutos depois, Dambibo finalmente chegou à humilde vila. Leu a
placa Byon Yutro e compreendeu que os
últimos que ali residiram eram da mesma espécie que ele. Não entendeu porque
utilizariam a língua antiga após o decreto que determinava que todos os
habitantes do planeta Sayarivie possuíam a obrigação de utilizar a mesma linguagem
para comunicação, mas depois imaginou que a placa pudesse ser tão antiga que
tivesse sido construída antes do decreto, apesar de seu estado muito bem
conservado. Eu não penduraria uma placa
de boas-vindas para ninguém se morasse aqui. Quem é que visita um lugar como
esses? Quem é que se arriscaria? Lembrei! Obviamente há alguém que pode:
Dambibo. Pensou com a sua ironia afiada.
O entregador não achou útil procurar respostas para perguntas
tremendamente inúteis e dando de ombros, partiu para examinar as barracas e
encontrar G. Seu humor piorava na medida em que ele checava as barracas.
Estavam incrivelmente limpas e como ele havia imaginado, vazias. Só havia duas
barracas a verificar e seu pensamento estava concentrado em atar fogo nelas
quando a inspeção terminasse. Dambibo
checou a penúltima tenda e verificou que ela também estava vazia. Entrou como
um raio na última. Quando suas mãos abriram a fenda e ele adentrou a barraca
com o pessimismo que sempre o acompanhava, deu um passo para trás, recuando seu
corpo em um impulso defensivo. Estava assustado ao perceber que havia um garoto
humano deitado em uma cama.
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