sábado, 6 de julho de 2019

O livro de Geffen - I - Capítulo 2: O entregador


Capítulo 2: O Entregador.

        Dambibo estava impaciente e mal-humorado. Reconhecia que a alegria não era um de seus pontos fortes, mas ao mesmo tempo pensava que as circunstâncias dos últimos onze dias lhe eram totalmente desfavoráveis e que aquilo justificava o seu destempero. O sujeito estava cogitando não fazer as entregas, mas seu senso de responsabilidade era superior às vontades mundanas. Sua ética profissional simplesmente lhe impedia de deixar obrigações pendentes. O trabalho existia, essencialmente, para que fosse concluído.
            — Porcarias de decoro e educação. Por que eu não posso simplesmente parar de fazer essas entregas?! — Sua voz era áspera e seu tom grosseiro, mas acreditava que não havia motivos para ser polido em um monólogo consigo mesmo. — Você sabe! Porque você é um entregador, seu idiota!
        Dambibo tinha noventa e sete anos de vida, mas para ele e os de sua espécie aquilo não era nada excepcional. — Se eu fosse um maldito humano provavelmente já estaria morto e com podridão em todos os meus ossos, mas pelo menos eu não estaria fazendo esse maldito... Essas entregas! — Ele continuava com os resmungos, pisava duro e mantinha uma careta. Embora reclamasse incessantemente, sabia que não havia ninguém para prestar atenção em sua birra. — Uma onzena trabalhando consecutivamente! Eu me pergunto se qualquer humano trabalha onze dias seguidos em seus reinos! É claro que não! Nem mesmo aqueles miseráveis elfos com suas cabeças de almôndegas — enfatizou a frase com uma raiva crescente enquanto cerrava o punho direito como se fosse socar algo — trabalham tanto quanto nós! Gostaria de acreditar que há limites para a folga, porém, a resposta é óbvia. Para ser sincero já é previamente sabido que não existem tais limites. — Dambibo continuava com suas rabugices, mas avançava com rapidez. Muito tempo se passara desde que percorrera aquele caminho pela última vez, mas ele ainda conhecia a trilha como as palmas de suas mãos. Durante o percurso reconheceu uma placa que não lia há alguns anos.

Cuidado: Área de Baleias Gigantes.

        — Cuidado? Até parece! É bom que essas orcas tomem cuidado comigo. Eles me mandam para qualquer lugar. E daí? Quem se importa comigo? Vila Nebotete! Pelas orelhas pontudas de Smeriel! Quem mora naquela vilinha por esses dias?! Com certeza existe um engano no destinatário, mas na dúvida quem deve percorrer quilômetros para tirar a prova? Dambibo! Quem é a cobaia da ocasião? Dambibo! Quem é arrastado até as proximidades da Montanha do Princípio? Dambibo! Toda vez eu! Sempre eu! Tudo eu! Se eu tivesse me tornado um bruxo, provavelmente disporia de mais regalias, mas que hora infeliz para ser um alatu.
        Dambibo atravessou uma longa e estreita passarela de gelo com impressionante velocidade. O azedume do entregador continuava palpável. Sua expressão transmitia irritação e desconforto, mas mesmo de mau humor e pisando com firmeza no solo, seus movimentos eram tão leves e suaves que lhe conferiam um aspecto de dançarino. A mente do entregador estava concentrada no momento em que o maldito elfo lhe designara aquela missão.
        Venha, Dambibo. Aproxime-se. Desta vez é importante. Você foi selecionado para entregar a encomenda de B para G. Este está na região da Montanha do Princípio, segundo o remetente, na Vila Nebotete, e não temos o número da barraca. Você terá que verificá-las uma a uma.        
        Dambibo não gostava muito dos elfos e nem que ressaltassem seu parentesco com eles. Ele também detestava piadas. Julgou tosco todo aquele humor élfico. O mestre de missões havia sorrido amigavelmente, mas ao entregador ele pareceu sarcástico e cínico. Dambibo perderia as estribeiras se não fosse seu emprego, mas a necessidade de obedecer ao chamado do dever existia e aquilo fez com que ele mantivesse o controle. — Porcaria de elfo! Ele não sabe o que é dar duro! Fica sentado naquela cadeira com aquele sorriso afetado e bobo! Aquele cara de almôndega! Até o nome é fresco... — Dambibo assumiu uma expressão abobalhada, afinou a voz e tentou uma imitação. — Olá, eu sou Grovidarmel, um elfo muito bacana. — Parou a imitação para dar vasão à sua raiva. — Grovi o quê? Que porcaria é grovi? Só pais almôndegas poderiam ter dado um nome tão delicado a um elfozinho. Patifaria! Nas horas difíceis não há nenhum Darmel para ajudar, mas nunca falta o Dambibo. Problemas? Muitos! Não sei quando foi que eu pendurei na minha testa uma placa escrita O Solucionador de Conflitos. Não posso ter paz?! Porcaria!

        O dia passava e o ocaso se aproximava. Os pássaros que cruzavam os céus já buscavam seus esconderijos para passar a noite. Dambibo seguiu a trilha por horas a fio com a mesma agilidade que lhe era peculiar. Mesmo que estivesse completamente insatisfeito e indisposto, ele jamais deixava de realizar seu trabalho. Se havia um serviço a ser feito, ele o fazia. Estreitou os olhos e finalmente viu a pequenina vila. Ficou aliviado por um instante até lembrar-se de que sua jornada era pura perda de tempo. Receou-se de que a entrega poderia ser só mais uma sacanagem dos malditos elfos, mas decidiu que nem mesmo eles fariam isso quando o assunto era trabalho. Ainda de mau humor, Dambibo continuou pela estrada. Ele observou que apesar de antiga, ela mantinha um aspecto relativamente bem conservado.
        — Vejo que estão cuidando bem do fim do mundo. Que notícia boa! — Disse em tom sarcástico. — Sei que há um engano no destinatário! Eles me fizeram vir até aqui! Eles ainda vão se entender comigo! Eles irão ver! Eu juro que vou... Vou fazer uma reclamação formal! Podem apostar que eu vou! — Ele estava surpreso com suas próprias piadas. Nasceu e viveu quase toda sua vida em Glacep, o Continente Gelado, e sabia que muitas lendas apontavam a Montanha do Princípio como o local onde o mundo se originara. Achou irônico que o começo do mundo estivesse largado há tanto tempo e mais merecesse o apelido de fim do mundo. Ele não presenciara os tempos em que Glacep era considerada um dos continentes mais prósperos, mas ouvira todas as histórias. Até pela experiência de vida, Dambibo sabia como a vida era imprevisível e dinâmica. O mundo dava muitas voltas.
        Você vê, Dam? Todo o restante do mundo evolui e Glacep parece ficar para trás. É triste. Algum dia esse continente vai virar história. — Escutou o entregador e por um momento foi como se ele estivesse prostrado ao seu lado.
        — Eu sei que você só fala agora através das minhas lembranças, mas eu nunca tinha prestado atenção nas suas palavras. É mesmo... É mesmo realmente triste. — Sua voz abafada pelo vento era quase inaudível. Por alguns instantes a sua carranca se desfez e sua expressão denotava uma tristeza profunda. Se existisse alguém por perto talvez pudesse ter um vislumbre de sua dor; provavelmente estenderia um silêncio solidário e se fosse empático o bastante observaria em silêncio soturno. Mas não havia qualquer ser vivo. Dambibo estava sozinho e ao redor só havia neve e gelo. Nos instantes em que se sucederam o entregador só ouvia as sinfonias produzidas pelo vento. A lembrança de outrora fez com que ele ficasse sorumbático. Sua alma era mais nublada e instável do que o próprio céu. Ele respirou fundo e seguiu em frente. Desanuviou os pensamentos quais preferia evitar, fugindo de um passado inevitável, qual ele sabia que era mais rápido que ele.

        A área montanhosa perto da Vila Nebotete representava um grande deserto congelado. Havia pouquíssima diversidade de vegetação, ínfimas árvores e poucas espécies de animais. Bem distantes, ao fundo do cenário atual, as únicas que ganhavam seu devido destaque, imponentes e soberanas, erguendo-se como se fossem rainhas daquela região, eram as montanhas. Dambibo fitou o horizonte, contemplativo.
        — Não consigo acreditar neste lugar. O vento é a única coisa que faz barulho por aqui, mas o silêncio deve ser ensurdecedor na maior parte do tempo. Já estive nessa região, mas mal passei pela vila. A ideia de permanecer em um local assim é absurda. Creio que a única boa coisa deva ser o fato de não haver salteadores por estas bandas. Com certeza congelariam as suas bundas criminosas por aqui. Ademais, o que salteadores fariam aqui? Roubariam ou tomariam para si exatamente o que? Venderiam neve por gelo e gelo por pedra? Não, não há motivos para cogitar salteadores nesta região. A não ser que fossem mestres de alguma magia ou alquimia avançada e pudessem transformar neve em ouro, qualquer hipótese de permanência neste local seria idiotice pura. Também não existem alquimistas ou usuários de magia que sejam realmente capazes disso, embora não seja sábio duvidar das histórias infantis. Por que é que estou falando sozinho?
        Alguns minutos depois, Dambibo finalmente chegou à humilde vila. Leu a placa Byon Yutro e compreendeu que os últimos que ali residiram eram da mesma espécie que ele. Não entendeu porque utilizariam a língua antiga após o decreto que determinava que todos os habitantes do planeta Sayarivie possuíam a obrigação de utilizar a mesma linguagem para comunicação, mas depois imaginou que a placa pudesse ser tão antiga que tivesse sido construída antes do decreto, apesar de seu estado muito bem conservado. Eu não penduraria uma placa de boas-vindas para ninguém se morasse aqui. Quem é que visita um lugar como esses? Quem é que se arriscaria? Lembrei! Obviamente há alguém que pode: Dambibo. Pensou com a sua ironia afiada.

        O entregador não achou útil procurar respostas para perguntas tremendamente inúteis e dando de ombros, partiu para examinar as barracas e encontrar G. Seu humor piorava na medida em que ele checava as barracas. Estavam incrivelmente limpas e como ele havia imaginado, vazias. Só havia duas barracas a verificar e seu pensamento estava concentrado em atar fogo nelas quando a inspeção terminasse. Dambibo checou a penúltima tenda e verificou que ela também estava vazia. Entrou como um raio na última. Quando suas mãos abriram a fenda e ele adentrou a barraca com o pessimismo que sempre o acompanhava, deu um passo para trás, recuando seu corpo em um impulso defensivo. Estava assustado ao perceber que havia um garoto humano deitado em uma cama.

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