segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Sonolência e o melhor quarto do mundo

     Depois de um dia cansativo entro no meu quarto. 

     Tenho a idade que tenho, mas há mensagens por toda a parte. Sou às vezes demasiadamente velho e desconfiado. Sobre tudo o que me cerca exijo provas. Às vezes se derrama minha alma de menino e minha essência sempre tão nova. E lá vamos nós em uma jornada inesquecível qual será esquecida como toda jornada. Esqueço-me do amanhã. Sobre hoje? Sobre os períodos recentes? Uma para a estrada. 

     Ontem tudo parecia tão escuro. Outra vez tive que percorrer minhas estradas para locais seguros. Era simples, mas não é mais. Foi importante, mas tanto faz. Labirintos se fazem pelos caminhos simples quais eu desejo percorrer. Os outros sempre tão sucintos me parecem sempre tão certos do que querem fazer. E eu? 

     O mundo se ocupa e eu também. Alguns estudam, outros trabalham e há quem estude e trabalhe. Há quem não faça nada, ainda que faça alguma coisa. Há tudo isso e há nada disso. Sou o que sou e me contento agora com o que antes era uma solidão vazia e sem demora. Às vezes sofro e não faço a menor ideia do motivo. Às vezes sinto que morro e não há no horizonte paraíso. Que é que faço?

     Situo-me. Estou no meu quarto e penso no quanto é curioso que este seja o meu oitavo quarto na vida. No meu quarto toda tragédia irremediável vira apenas uma sombra de dor, eco de dano real. O que há no meu quarto de tão especial?

     Este não é o maior quarto que já tive. Penso então nos tempos de rua Ipacaraí e como por quase duas décadas tive apenas o mesmo quarto e ainda o dividia com meu irmão Matheus. Àquela época, eu bem me recordo, sobretudo, narrando histórias da minha infância, percebo-me sortudo em minhas boas e más lembranças. 

     Havia uma cadeirinha de madeira que meu avô Damião construiu para nós. Ela claramente fora feita para ser utilizada até nossos 10 anos de idade, mas acontece que a utilizamos até os 18. Claro que eventualmente chegou o tempo em que não cabíamos mais na cadeira, mas ela era inquebrável e fazia parte daquele quarto perfeito. Meu avô Damião faleceu meses atrás. Resistiu quando não fazia mais sentido por quase uma década de sofrimento. Onde é que será que jaz meu avô neste momento? Será que, enfim, encontrou-se com a minha avó? Volto aos quartos e me pergunto sobre a duração das coisas e o que é realmente constante. O que me leva até hoje a considerar um quarto que existe apenas como vulto de memória como algo assim tão importante?

     É que eu vejo o que ninguém vê. É que eu amo quase tudo sem nem perceber. É que eu sou um grande consertador de coisas quebradas, embora eu mesmo talvez esteja com defeitos. 

     Eu vejo as formas e as cores com os meus olhos. Eu vejo com meus olhos castanhos suas formas e suas cores e simpatizo com estranhos e tento absorver suas dores. Eu sei e você sabe, eu meio que não tenho religião, mas se eu fortemente desejar será que posso amenizar a dor no seu coração?

     É que o meu quarto é um pedaço grande de mim e eu vejo o que ninguém vê. Minhas corujas são símbolos de mim em mim e preciso de lembretes da minha amplitude para entender que sou capaz de fazer com que as coisas mudem. Eu vejo as formas e as cores com meus olhos. Eu ouço os vultos, cheiro as flores e deixo o que incomoda me incomodar. Os infernos por onde passei ninguém sabe. Tenho sorrido bastante e simplesmente me dizem que o meu sorriso é bonito. 

     Minha outra avó anda estressada. Não é fácil cuidar do meu outro avô atualmente. Ele anda feliz e sempre falava que meu sorriso de criança era bonito. Eu tenho sorrido mais. É preciso que saibam sobre como nos sentimos especiais. Ele têm se esquecido das coisas. Logo talvez se esqueça de mim, mas ainda me chama pelo nome. Ainda sente o amor mais puro pelas coisas, mas tudo um dia some. Ele perdeu toda a altivez. Você percebe? Que ainda somos jovens e um dia chega a nossa vez?

     Faça uma prece, ainda que não tenha religião. Algumas coisas acontecem e não possuem explicação. Tudo anda tão difícil, mas você aguenta tinta, sabe? A música da sua vida nem chegou ao primeiro refrão. 

     Interlúdio. Ataque, cansaço, solidão, frieza. Que resta de nós em nós quando conscientemente abandonamos nossas fortalezas?  

     Os meus quartos nunca foram grandes e nem luxuosos, mas havia outrora uma coleção incompleta e linda de Gelo Cósmicos. Eu tinha medo do escuro e o breu do quarto sem iluminação produzia imagens de monstros. Seriam monstros verdadeiros? Tudo bem, eu dizia, de verdade, vocês podem dormir aí na estante, mas nem por um instante cheguem perto de mim. 

     Os quartos da infância não tinham videogame na maior parte do tempo e nunca tive coleções de lego e nem tantos brinquedos chiques e frágeis e parecidos da mesma coleção, mas o meu quarto continuava sendo o melhor de todos. Ele não tinha carpete azul e nem quadros e nem brinquedos brilhantes e espetacularmente caros, mas estranhamente ainda era o melhor dos quartos. 

     Eu me deitava na cama me perguntando sobre o futuro dos meus heróis da invasão anime, indagava sobre quais seriam os próximos jogos que deveria jogar e se havia fuga da realidade que um dia seria suficientemente real para me fazer esquecer da pungente realidade. Os peixes adormeciam? O céu um dia cairia? Eu poderia controlar os meus sonhos e voar? Em um lugar mais feliz todas as pessoas que eu amo um dia iriam se encontrar?

     Não tinha certeza de nada disso, mas o meu primeiro quarto era mágico e os seguintes também foram. Talvez eu mereça um quarto assim tão bom porque vejo as formas e as cores com meus olhos grandes e castanhos que ficam diminutos quando eu canso. Sei personificar a fúria, mas costumo ser tão manso. Cada coisa conta uma história. Nada volta a ser como antes. Tudo é importante e meu quarto? Meu quarto é especial mesmo nos dias atuais. Vi uns quartos espetaculares e os achei tão... normais. Dou de ombros. Sei o que sinto, mas não sei como dizer. Prometi que nessa semana não minto, mas amanhã ninguém sabe como vai ser. Não aguento mais ser acusado. Já não tenho idade para aceitar ser usado. 

     Depois de um dia cansativo sento confortavelmente na cadeira em frente ao computador. Ligo o ar-condicionado e me sinto livre e preparado para sonhar com a felicidade e com o amor. Eu vejo as formas e as cores com meus olhos. É uma segunda-feira ordinária, mas ainda tenho tempo de assistir um filme e me sentir bem. 

     Deixo meu corpo repousar na cama e minha mente transitar entre o passado que não importa, o futuro que ainda é incerto e a imaginação sempre tão instável. Prevejo meu destino em poemas mal escritos, mas acalmo minha pena numa metáfora com a lembrança de que todo dano é bendito. 

     Depois de um dia cansativo gasto palavras. Por que não apostar agora se eu sinto que já não tenho nada? Sou ridículo no meu papel, mas me preocupo. Por vezes tenho o rosto do fracasso, mas sigo e luto. A sonolência se apodera de mim. Talvez eu durma cedo, mas é provável que não. Minha gata e meu cachorro me cercam, memórias recentes não me afetam. Talvez eu durma cedo, mas é provável que não. Os sonhos se parecem para todos aqueles que se sentem eternamente em solidão? 

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