terça-feira, 1 de outubro de 2019

Hora de acontecer

     É preciso ter convicção. Cada nova decisão nossa altera completamente o panorama geral das coisas e sentimos como se o Universo não se aguentasse de ansiedade e estivesse pronto para sacanear com a nossa vida a qualquer momento. Somos frágeis ou nos fazemos frágeis assim? Queremos atenção? É nossa responsabilidade nos vulnerabilizar se queremos correr o risco de amar ou há ainda situações nas quais o amor derruba a porta até então trancada lhe tirando da sua zona de conforto? Claro que era muito mais fácil ficar em casa se desfazendo de possibilidades que mal se apresentaram e reclamando da sorte. O mundo por vezes é assustador, mas em aspectos gerais a vida é hilária. Alguns suspiram e sussurram em segredo que preferiam estar mortos, pois o peso dos corpos nunca mais foi leve. Outros trabalham seus medos, acordam cedo, buscam por saídas. Para onde nos levará a tal saída? Nunca saberemos, mas é preciso acreditar na vida. 

     O amor é uma metáfora, provavelmente uma daquelas péssimas, que quando dita gera um silêncio desconfortável de quem ouve sem entender, pois amar é muito mais sobre entender sem a necessidade de ouvir. O amor é uma planta e qualquer um pode cuidar de uma planta, bem como qualquer um pode se esquecer de regá-la e tratá-la com a simplicidade que requer. Amor é a sorte de navegar junto por um oceano desconhecido; é a descoberta inacreditável da segurança nos braços de alguém que pode honestamente ser chamado de melhor amigo. É não desejar mal a quase ninguém, é apostar alto, é escrever com giz no asfalto e riscar corações tortos nas árvores como se o gesto fosse fazer o tempo parar e admirar algo que não merecesse realmente o fim. Plantas esquecidas ao sol ressecam e então morrem. Não é diferente com o amor.

     O tempo passa e a visão límpida outro dia se embaça e o que foi um dia nunca mais será. Você sai por aí de casa e se obriga a ser corajoso. No começo saía sozinho e provava a força do meu coração tão valoroso. Sozinho por aí nos bares, eu não me sentia bem em quaisquer lugares da minha velha cidade. Os pouquíssimos amigos que tinham estavam muito absortos em suas próprias vidas e eu em minha solidão. É necessário estar sozinho para se arrumar bem o porão. Bebi cerveja e observei shows amadores que tocavam profundamente minhas dores com palavras erradas e frases perfeitas. Dirigi meu carro branco por novas estradas e relutei em acreditar em algumas coisas que foram feitas. Demorei, mas segui. Eu disse que quando eu fosse, eu iria, mas ninguém acredita nas palavras ditas à luz do dia. Fiz promessas que não poderia descumprir. Meu orgulho sempre foi chama acesa na madrugada. Mesmo nas noites frias, sempre tão vazias, sentia minha alma mais gelada, como se a própria gelidez das horas tardias fosse um casaco leve para a verdadeira invernia. 

     A dor dói até o dia que para de doer. A gente fracassa até o dia em que volta a vencer. Sua versão passada acharia o você de hoje exuberante e você se remoendo com o sofrimento constante que não existe mais e ainda foi capaz de te lapidar e deixar assim. Sou literal demais. Organizei uma procissão para que meu coração, enfim, mudasse. E outro dia desses de repente era simples que eu retornasse? Sou literal demais e invertido e permito que me vejam enfraquecido. Irritam-se, zombam-me e até me detestam sem me conhecer. Quem é que odeia pelo simples prazer? O rosto mudou e o retrato foi jogado fora e os meus silêncios apenas me pertencem e eu não posso contar com ninguém agora e quando chega a hora alguns ecos distantes aparecem e me questionam sobre minhas raízes. Mudei, mas não tanto. É preciso entender que há outras maneiras de felicidade e outras pessoas para fazermos felizes. 

     Geralmente somos apegados, mas eu me peguei amassando os papeis e sonhos antigos e os jogando com classe em um arremesso de basquete na lixeira. Tudo pesa até o dia em que se torna bobeira. O bairro da Liberdade agora é exclusivamente meu, sabia? E eu nem precisei comprá-lo! Tirei fotos com novos cosplays, comprei pôsteres, fiz um topete em um doce em formato de porco (mas não comi um doce de porco). Cantarolei Gregory Alan Isakov pelas ruas, escutei Devendra Banhart e me animei com Cage the Elephant. A última banda é a minha favorita dos banhos, especialmente quando preciso me animar antes de sair de casa. Sou uma nova pessoa, ainda que conserve aspectos do velho eu. Lembra da minha apoteose nos teus olhos castanhos? Agora não passam de olhares estranhos e tristonhos. 

     Sei hoje sobre a ironia da vida. Quando, enfim, esqueci de me lembrar, quem se foi quis outra vez fazer parte da minha vida. Disse não com firmeza e sei que não vou me arrepender. Eu cresci tanto e quero continuar a crescer. Eu me apaixonei outras duas vezes, mas o meu coração sinceramente é  demasiado egoísta para ser racional nas decisões. Apaixonei-me duas vezes, mas me afastei para evitar às costumeiras sensações. Sou tolo por só querer gostar de quem me gera uma sensação esquisita de identificação. Meses atrás conheci uma menina tão bonita que me tirou o chão. Os amigos dizem que outras que eu atraí são bem mais legais e interessantes, mas sei que não podem compreender. Sinto uma espécie de magia palpitar me levando a crer. Crer no que exatamente não sei explicar. Provavelmente nessas novas histórias e romances e vidas. Nesse outro jeito de ser feliz, entradas, recomeços e despedidas. 

     Insone mergulhei outra vez durante a madrugada. Acordei cedo para trabalhar e estava maquiado por olheiras escuras como piche. O retrato da comparação sempre fere. Sou melhor do que fui e sigo aquém do que pretendo ser. Se o objeto de comparação for sempre eu mesmo, eu acho que não há problema. Há problematização em outros tipos de dilema. Você consegue ser forte hoje?

     Algo aconteceu e senti vontade de fumar um cigarro. Convenientemente os fumantes que estavam aqui em casa no último sábado esqueceram uma cartela de cigarros. Imaginei-me como o Spike ou o Jet fumando e senti que poderia apoteotizar o meu primeiro fumo. Ri da idiotice, pois meu coração transbordando toda aquela tolice sabia que eu não fumaria o cigarro. Peguei a chave e saí para dar uma volta no meu carro. Há uma espécie de orgulho tosco em chamá-lo meu, pois o fato de que o comprei me enche de alegria. É algo que não ficou pela metade. As parcelas todas foram quitadas. Rio novamente e escuto músicas instrumentais. Dirijo longe até a casa de uma menina para pegar livros emprestados. Sinto algo estranho e sem nome. Essa coisa aparece e some. 

     Quero mais livros emprestados, mas não sei o que acontece comigo. Quero me aproximar, mas morro de medo de ser ferido. Admito, porém, que talvez eu seja tão afiado quanto quem deita com a lâmina pontiaguda em nome da autodefesa. Trancamo-nos em longas e resistentes fortalezas. O meu eu antigo socava a porta da frente até quebrar o muro. O meu novo eu procura brechas para entrar sorrateiramente no escuro. O atalho é tudo para um gatuno. Deixar-me tão próximo é um erro. Eu consigo entrar e depois sair sem ser reconhecido. Se acostumam facilmente comigo. Quando notam eu já estou ali e não posso ser esquecido. É bastante engraçado como temos nos fortalecido. Somos feitos de material mais resistente que o vidro. Essa coisa que chega e fica e possui belos olhos que são estranhamente convidativos me sonda em uma festa. Sinto vontades dignas, mas nenhuma delas hoje presta. Gostei da maneira como ela sorriu e falou comigo. Ainda bem que ela tropeçou para fora de casa ou nunca a teria conhecido. Não exagero ou idealizo ninguém tanto assim. Desisti de procurar coisa qualquer semelhante ou qualquer aspecto de mim. Se quem eu conheço é parecido certamente será interessante. Se quem eu conheço é meu oposto, uma espécie de eu invertido, talvez seja ainda mais legal que o encontro de antes. Tenho encarado minhas responsabilidades com o peso que merecem, mas os meus novos romances são transportados pela brisa suave que me enternece. Alguém me olha como ponto fixo e aqui desce? É uma noite apropriada para um vinho ou um suco de uva ou mesmo um café. O que me diz de começarmos? 

     Nunca mais dirigi nas ruas procurando rostos antigos. Minhas músicas são minhas e raramente reforçam qualquer história. O que se passou é simples soma na história. Os pontos de não retorno são mais claro que os sinais verdes, amarelos e vermelhos. Sinto fortes impulsos vitais e reconheço-me sem precisar de espelhos. Paro o carro e ligo para alguns outros amigos. Antigamente tinha enorme dificuldade em me situar no presente. A gente não pode ser aquilo que mente, entende? A gente é o que sente e meus dois olhos estão aqui e agora. Lembro-me de quando o olho esquerdo enxergava apenas o passado e o direito apenas o futuro. Ver o que está diante dos meus olhos é reflexo de como me tornei maduro. Ainda assim sou jovial o suficiente para desejar que chegue logo o próximo final de semana. Ainda que tudo pareça trivial é preciso seguir em frente pelas coisas que a gente ama. Se eu me enjoar do restante passo o sábado inteiro na cama. Nunca mais me alimentei de restos e o meu jeito lesto transborda e incomoda. Eu deveria parar? 

     Sou um homem de fatos, mas simultaneamente um ficcionista. Talvez a realidade não me resista quando eu aparecer cheio das minhas fantasias e poesias. Talvez tenham que inventar um novo nome para o amor. Vou inventar novas declarações. Quando chegar a hora de acontecer... Será que ela já não chegou? Sou quase irresistível quando falo dos meus sonhos e por isso aviso, não me deem essa brecha para falar do que o coração sente tanto prazer. Quando bem situado eu me sinto dono do lugar e até já ouvi que sempre sei o que dizer. A frase me plantou no rosto um enorme sorriso. Quem dera não fosse tudo questão de improviso. Naturalmente sou assim. 

     É estranho, mas gosto da ideia que ela faz dela mesma e dos livros que leu. Dou de ombros sem a necessidade de me entender. Gostei do cachorro tarado ali, da gata discreta, do sorriso ousado, da linguagem secreta, dos testes súbitos, das palavras sinceras, do que não era amor, mas foi chamado de algo parecido na véspera. Gostei das lágrimas minúsculas representando oceanos inteiros e do jeito que a lua cantou para nós em uma noite vulgar. Gosto do jeito que você sabe se distanciar. Gostei até de conhecer meses antes alguém que esteva tão quebrado quanto eu. Dane-se. Ninguém nunca entende o que falo e por isso só me pronuncio pela metade. Quem é que me entende nessa cidade? Procuro coisas que ainda nem sei. Não é preciso explicar o brilho do vaga-lume, o cheiro do perfume, o impulso do ciúme... A gente vê o que existe para ver e se dispõe a alcançar o que pode ser alcançado. Ontem mesmo escutei uma música e me lembrei de você, embora não saiba de quem estou falando. Descobri que é possível ser feliz de outras formas e estou ansioso para me colocar à prova. Não importa o caminho por onde eu for. Será que amanhã cedo posso tropeçar no amor? Claro que sim, mas é claro que sim! Repito empolgado! Toda possibilidade que existe no mundo repousa lá fora e espera por mim. O tempo de espera finalmente está acabado. Consultei o relógio. 18h48. As horas e os minutos só ficarão iguais a partir das 20h20, mas eu estou convencido. É hora de acontecer. 

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