quarta-feira, 28 de agosto de 2019

A partida do sr. Green

     Laura fitou o título daquela espécie diferente de carta. Reconhecia que havia utilizado muitas palavras para que fosse considerada apenas uma carta comum, mas o que haveria de ser senão isso? Recordou-se com um asco sem sentido da moda das cartas métricas. Mas talvez não fosse tão sem sentido assim. Admitiu sentir raiva por nunca haver recebido uma, ainda que não gostasse de ler.  

A partida do meu sr. Green

     Riscou o que havia escrito. Leu e se consternou. Releu o título e aquilo lhe soou absurdamente infantil e afetado. Era na melhor definição que encontrou inapropriado. Reconheceu que o fato que a incomodava era que Cristopher Green nunca fora qualquer coisa seu. Talvez essa ausência de si mesmo, esse ar de isolamento que ele sempre transmitia fosse a única real razão que a havia impelido, àquela época, a se aproximar do estranho. Ocasionalmente Laura sabia o que Cris pensava e a antecipação lhe conferia certo ar poderoso. Secretamente alimentava a vontade de ser autoritária, mas poderia ser assim? Inibia-se. Se Cristopher não se resguardasse, como sempre fazia, ela talvez criasse um pretexto para gritar com ele eventualmente. Não havia sentido, mas desejava isso tanto que era quase como uma espera. Ela conseguia imaginar o distante sr. Green estupefato com um surto repentino de ódio ou de amor de sua Laura. 
     - Não. Cristopher nunca me reivindicou. Cris sequer pediu por mim. Como me vejo dele?
     
     Honestamente Laura era incapaz de supor por Cristopher. Havia pessoas fáceis de antecipar, mas Cris era tão introspectivo quanto imprevisível. Não tinha olhos ardentes em chamas e não deu pistas de que viajaria para descobrir sabe-se-lá-o-que. Ele não era espetacular. Apenas era único e reduzir Cristopher Green até um estado de incapacidade era impossível. Realmente impossível. 

A partida do sr. Green

     Agora o início da carta parecia mais adequado. Laura não tinha a real intenção de enviá-la para Cris. Tentou imaginar o que alguém como ele estaria pensando, mas jamais acertaria que o rapaz estava em uma andança, perguntando-se então se a mulher gorda que dormira em seu ombro no avião já havia se encontrado com seu objetivo na Islândia. Laura se deteve na questão de escrever ao sr. Green e não ao tão próximo Cris. Talvez Cristopher fosse dois em um. Havia aquele seu lado rapaz desobrigado de tudo e havia seu lado homem, quando olhava para um ponto distante e se calava. Ela presumira que ele sempre fugia ao contato humano desde que o conhecera, porém, refletindo com calma ela não se lembrava de uma situação fática onde seu amigo realmente tivesse fugido de qualquer coisa. Ele apenas se mantinha suficientemente distante para que ninguém conseguisse se aproximar. Quando ela deixou os receios de lado e se aproximou com um bolo de três cores, comeram juntos e compartilharam o silêncio. Laura sabia ser eloquente. Falava pelo menos três vezes mais que ele, mas ele a olhava com certo afeto e qualquer outra coisa, mesmo na primeira vez. Ele havia gostado das cores dos cabelos dela, ela podia afirmar sem ter perguntado. Nem todo mundo via com bons olhos o cabelo tingido, mas Cris demonstrava ter bons olhos para tudo. Apenas agia em seu tempo e ela o considerava devagar demais. 

     O amor é ambivalente, Laura dizia a si mesma. Era aquele amor dos grandes filmes do cinema que almejava, pois ainda que tivesse os pés no chão, admitia em sussurros que queria poder contar com alguém que fosse presente e leal. Sorriu assim que admitiu a frivolidade de seus desejos. O amor que poderia torná-la sublime era igualmente capaz de assassiná-la. A tristeza profunda é vizinha da alegria inenarrável. Cristopher se fora havia quase um mês. Nesse período Laura criara o hábito de sair com suas três melhores amigas. Ela julgava que três fosse o número ideal de companhias que poderia haver sem que o grupo se dispersasse. Acompanhou suas amigas até quando não se sentira apta ou confortável. Acreditava que as amigas precisavam daquela espécie de parceria no crime, assim como havia e era comum entre os meninos. Laura tinha a impressão de que elas se usavam. Certamente havia um reconhecimento, até alguma notável simpatia, mas nenhuma parecia capaz de compreender a extensão da outra. Havia muitos Dorian Gray's e pouquíssimos Cristopher Green's e inexistia o meio termo entre os dois. Ela ignorou o desconforto e fez o que quis. Beijou alguns tantos rapazes e se deitou com outros três. Beijou algumas mulheres também. Deitou-se com uma. Meditava sobre a incapacidade de manter essas pessoas na memória. Eram inequivocamente irrelevantes e por isso Laura sentia uma raiva latente de si mesma por pensar em Cristopher Green. Tê-lo em mente enquanto dividia seu corpo e sua boca pelas ruas da velha cidade fazia com que ela desafiasse a influência que Cris exercia sobre ela ou que ela se tornasse ainda mais prisioneira do estranho rapaz? A injustiça da situação era que havia grandes chances de que Cris apenas estivesse procurando deuses na porra do fim do mundo. Laura se inflou em uma raiva cega e pensou em chocar Cristopher com suas experiências sexuais, mas voltou atrás. Sentiu lágrimas quentes escorrerem pela bochecha e não entendia o motivo da própria emoção. Esfregou os olhos com os dedos indicadores, secou o rosto e, enfim, iniciou a carta, mantendo a discrição de sua vida pessoal. Cris não precisava saber o que não precisava saber, ainda mais sem ter feito qualquer espécie de pedido. 

                                                          A partida do sr. Green

     Cris, eu estou escrevendo para dizer que sinto sua falta. Eu pretendia escrever algo realmente grande e significativo, mas honestamente não sei o que dizer. Não sou grande nem significativa. Tenho o seu e-mail ainda e sei que talvez essa carta nunca chegue, porém, imaginei que você fosse um homem dos clássicos... Diabos! Não quero dizer que te imagino, ok? Se isso lhe parece uma declaração de amor, esqueça-se dessa ideia idiota! Você não é burro (eu acho). Amores precisam de proximidade para funcionar e nem isso garante o bom funcionamento daquilo que foge ao nosso controle. Tive um amor de longe, Cris. Fui traída, perdoei e fui traída de novo. É por isso que traí depois. Será tolice esperar por honestidade num mundo repleto de vigaristas? Qualquer um que acredite no amor longínquo e no perdão é um tolo irremediável exatamente como um dia fui. Você pode amar de longe, Cris? Será que haveria de ser fiel de tão longe? Não digo a mim, eu digo... Dane-se. O que eu quero dizer é que todos os ciclos se repetem, exceto os daqueles que não se fazem ciclicamente. Sinto falta da sua estranheza, Cris. Eu sei que você é um dos poucos que se lembra do dia e do mês do meu aniversário e é isso. Não quero que você volte agora. Faça o que precisa, certo? Eu estou bem. A vida vai como vai. Não confie em quem não quer te amar por perto. Ser apunhalado duas vezes no mesmo lugar é praticamente uma sentença de morte. "A confiança é um prato que se come frio". Li essa frase em um livro de ficção fantástica qual detestei, mas tinha certo charme hipnótico. Enfim, Cris... Você parece um homem gentil, mas... Não sei mais o que dizer. Apenas mande notícias, ok? Escreva de volta ou nunca mais comeremos bolo. Quero dizer, pelo menos não juntos. 


     Com carinho e sem amor, pois você está longe dos limites do amor. Aí na Islândia com esse eterno frio de gelar os ossos qualquer amor vira gelo, eu aposto... 

Laura Fleury Wastowski.


     Ela acreditava piamente que o amor e os seus casos ocasionais poderiam coexistir separadamente. Estava aliviada de ter se confessado para o papel destinado a Cristopher, ainda que a confissão fosse puramente sentimental. Não se sentia culpada pelas ações do corpo, pelos atos e fatos do cotidiano. Banhou-se e chorou durante o banho, mas saiu parecendo uma pessoa completamente revigorada. Sentia-se quente. Colocou a roupa mais bonita e confortável que tinha e saiu de casa para um encontro num pub com um rapaz chamado Toddy. Riu do nome do sujeito e torceu para que a voz dele não fosse a voz de um Toddy comum. Laura foi além e conjecturou a ideia de que Laura e Toddy jamais formariam um casal. Saiu decidida de casa. Tinha a convicção de que poderia sentir a falta de Cristopher enquanto estivesse embriagada ou sozinha em sua casa na manhã seguinte, mas não nesta noite. Só tinha uma prece na cabeça e no coração. Rezava para que qualquer memória de Cris se mantivesse inalcançável enquanto estivesse com Toddy. Às vezes é necessário imaginar um pouco menos. As comparações matam possibilidades.

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