quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Avesso

     Desde criança sou um apanhador de sonhos (longe dos campos de centeio). Pudera eu explicar como tive tal capacidade, mas acredito que era capaz de me estender e alcançar sonhos alheios apenas pelo simples fato de que vivia mergulhado nos meus próprios. O meu ritmo era o oposto da maioria; a minha tendência era ser a força contrária. A minha agressividade, quando se manifestava, era efêmera, mas os que me cercam aprenderam desde cedo sobre o meu valor e minha argúcia. Quase sempre estava bastante tranquilo, muitíssimo sossegado, não raramente calado. Dava de ombros para a impressão que eu passava, cônscio de que a maioria jamais ousaria conhecer a verdade oculta atrás da impressão. As primeiras impressões são quase sempre terríveis. Minha timidez me deixava nitidamente fora do lugar e não havia quem fosse gentil ou compreensivo quando o silêncio me dominava. Constrangi-me muitas vezes até, enfim, perceber que o silêncio poderia ser o meu melhor aliado. Dominei a minha angústia, mas não me tornei um falastrão. Venci-me, aprimorei-me, cresci. Antigamente eu era um jovem completamente reto, furioso, justiceiro, pronto para lutar por um mundo melhor. Em outras palavras, admito que entendia pouco do mundo. Eu era completamente ingênuo. 

     Acostumei a me olhar de um jeito severo. Ansiava por um futuro no qual eu pudesse provar que era capaz de não repetir os erros alheios que tanto me fizeram sofrer e que tanto me ajudaram a me tornar exatamente quem eu sou. Convenci-me de que era preciso buscar a verdade. Aprendi que era necessário agir corretamente. Entendi que a maioria jogaria trapaceando, mas que eu precisava provar meu ponto conseguindo sempre vitórias limpas. Acredito que é exatamente por isso que tantas vezes eu escolha o caminho mais longo. Isso justificaria meus atrasos? O céu é suficientemente espaçoso para todos nós, assim, nunca fiz questão de colocar meus adversários de joelhos. Tenho uma misericórdia estranha pelos sonhadores, pelos mestres do impossível, pelos cruamente corajosos. Sempre que tento me adiantar, eu me pego atrasado. Sou pontualmente fora de hora. Ninguém é perfeito e cometi lá minha boa cota de erros, mas tenho aprendido com eles. O mais importante sobre errar é que fui dono de meus erros e cumpri minhas promessas. Não repeti meus antecessores. 
     Sou um estranho e me sinto bem, extremamente confortável no desconforto. Por vezes, eu estive no lugar exato e na hora exata, mas me leram como se eu estivesse deslocado. Talvez até estivesse, mas nem sempre é ruim ser ou estar alheio. Por vezes, eu não estava ali, mas ria, participava, falava bobagens e cativava pessoas. Elas sempre gostaram muito de mim e eu delas. Os mundos quais habitava possuíam qualquer resquício de matéria real, mas, em grande parte eram compostos por monstros bondosos, humanos terríveis, antagonistas brilhantes, animais que falavam, vilões perfeitos e chances de redenção. Nestes mundos eu fui tudo e todos. Tudo foi feito comigo e fiz de tudo também. Às vezes sonho acordado e na minha pele vejo que ainda sou esse rei de um mundo utópico. Outrora mergulhei fundo para conhecer a minha própria extensão e notei que meus braços, na verdade, alongavam-se para salvar quem precisava de socorro. Fui imprudente. Tentei remendar corações quando o meu próprio estava machucado. Salvei animais da morte e arquei quase sozinho com os prejuízos do veterinário. Enraiveci-me, pois quando e onde poderia chegar se eu não deixasse de ser como sou? Era avesso também ao que era considerado racional. Fiquei quando tinha motivos para ir. Parti quando tive consistentes razões para ficar. Gostaria realmente de deixar de ser assim tão avesso? Eu ainda não tenho essa resposta. Mantenho minha essência. Talvez eu viva ligeiramente enfurecido. 

     Sempre soube dividir o palco, mas nas minhas histórias desempenhei ferrenhamente meu papel. Não me aceitei coadjuvante na peça da minha vida. Odiei e ainda odeio quando me fazem de bobo, mas já senti um orgulho protetivo pela minha ingenuidade. Infelizmente mataram a minha inocência. Nas histórias que narrei, eu já era a estrela principal, ainda que fosse antagonista ou protagonista. Vesti roupas que não tinham nada a ver com o meu rosto e tal qual Pessoa, eu fui reconhecido inúmeras vezes pela pessoa que eu não era e nem fiz questão de desmentir. Erraram na imposição dos estereótipos. Irritei meus amigos do futebol por ser nerd e irritei meus amigos nerds por ser também do futebol. Fui o que sou e ainda sou apenas o que posso ser. Desfrutando completamente da minha liberdade, hoje sei que não há meio termos em ser livre. A meia liberdade é uma ilusão e não passa apenas uma maneira de se enganar de uma maneira gentil. Mesmo quando mentimos em segredo, a mentira precisa ser boa para que exista segurança suficiente para que se possa sustentá-la. Respiro fundo e volto no tempo. Olho para mim nos anos que se passaram e consigo aprender novamente certas coisas. 
     O Daniel chorão da infância sabia ser alheio num estado sublime que beirava a perfeição. O Daniel sério do início da juventude aprendeu sobre o quanto dói a solidão forçada, quando mudou de colégio e ficou três meses sem trocar uma palavra com pessoa qualquer. O Daniel de 2009 era criativo e matava aula de toda maneira imaginável, incitava que os colegas matassem aula também, iniciou um período duradouro de guerras de papel higiênico molhado e hoje me pego rindo da minha infantilidade. O Daniel dos dois primeiros anos de faculdade tinha depressão profunda e pelo menos duas vezes por mês neste período, vomitava por aproximadamente 12 horas consecutivas. Àquela época, febril e triste, incompreendendo a razão das minhas fraquezas, admito que pensei que não sobreviveria e que nem valia a pena sobreviver. Houve sempre, porém, um instinto ferino em mim, como um animal que vocifera quando parece prestes a estar abatido. Foi meu ímpeto em proteger os mais fracos que me tornou fraco, mas quando deixei tudo isso para trás e resolvi o que havia para resolver, reergui-me como por mágica. É estranho o quanto a fase sombria me apetece e não por me provocar uma espécie de sensação de reviravolta heroica. Creio que nunca tenha aprendido tanto sobre o mundo do que sozinho no meu quarto. Acredito que nunca tenha entendido as pessoas quanto nos tempos em que minha mente parecia funcionar muito mais velozmente. Cheguei a ler o livro III da Crônica do Matador do Rei, mesmo que ele não tenha sido escrito naqueles dias e nem mesmo esteja pronto agora. 

     Nós, seres livres, somos capazes de escolher. Se optamos pela reclusão e reclamamos que estamos sós, é mero exercício de uma hipocrisia direcionada, extremamente pessoal. Construímos o que nos destrói. E tudo bem que seja assim, pois na realidade a maioria avassaladora não se preocupa como diz que se preocupa. Ver a casca basta. Se o externo está bem, todo o resto deve estar. Não vou criticar e darei de ombros se me criticarem excessivamente. Ouço até quando me importo. Refuto o que não me interessa. O interno não aguenta tinta. A história escrita não se reescreve, mas sempre continua. Ostento meus fracassos como se eles fossem mais importantes que os êxitos. É a minha tendência avessa agindo novamente. Os novos amores se findaram antes do início. Não houve deus que atendesse meus suplícios. Aprendi a rir disso. Tive bons motivos para desconfiar de todos, mas entreguei meu coração nas mãos de estranhos. Pude aprender que as noites são cheias de tesouros improváveis e maravilhosos. Conquistei-os. Nunca havia imaginado recomeços, mas recomecei. Nunca havia imaginado que me perdoaria pelas minhas falhas e nem que perdoaria os que falharam comigo, mas também perdoei. Meu orgulho é obstinado, mas não insensato. Sou consciente de meu valor e por isso sempre agradeço. Nos dias ruins, porém, eu me esqueço. Hoje tenho plena consciência de que não preciso buscar por saídas. Encontrei pelo menos cinco pessoas nas quais posso confiar a minha vida. Meu lado certo é o avesso e assim vai ser para sempre. 

     Olhos no alto, tênis no asfalto. Não há problema em ser diferente. Habilidoso em imaginar, eu vi ontem mesmo despencar, lá do alto uma estrela cadente. Eu a segurei e fui preenchido por uma sensação quente. Meus olhos direcionados para o céu, eu desejei apenas saltar e nunca mais tocar o chão. Se eu pudesse voar, eu sinto que se dissiparia de minha alma essa implacável solidão. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário