terça-feira, 6 de agosto de 2019

Estrelas fixas

     Fui até a farmácia andando. Eu precisava comprar dois remédios e gosto de caminhadas, assim, não vi problema qualquer em me exercitar um pouco, quebrando essa espécie de morbidez que me tornou letárgico no dia de hoje. Pensei em não levar o celular, pois eu me lembrava do nome dos remédios e acaso fosse assaltado, bom, eu não perderia meu aparelho. Mudei de ideia instantes antes de deixar o apartamento e parti. Era bom correr algum risco, fingir-me preocupado com algo improvável, supor que alguém tentaria me machucar ou me roubar. Recordei-me da única ocasião qual caminharam estranhamente na minha direção com uma faca, mas era uma moradora de rua idosa e ela nunca me alcançou. Surge em meu semblante um sorriso discreto, como se essa fosse uma espécie de recordação doce, mas é puramente um reflexo ocasionado por palavras. Quando alguém caminha mal intencionado na sua direção com uma faca, você teme. Ri da memória e posteriormente ri do passado. Tudo soa como uma piada amarga. Foi em uma noite num bairro rico, depois do shopping, onde havia árvores altíssimas. Provavelmente elas ainda estão por lá. Aos domingos várias famílias levavam seus cães para uma volta ou duas, mas numa dessas improváveis noites de sábado onde nada acontece, eu poderia ter morrido. Segredei ao meu irmão mais novo o lugar qual guardo todos os meus projetos e fiz com que ele me prometesse que publicaria ao menos um de meus livros. Sobrevivi e me senti com sorte. Quão devaneante posso ser quando não faço questão de me manter neste mundo? Quão distante posso ir sem correr o risco de mergulhar fundo?

     Ando com passos rápidos, pois é assim que me acostumei ao longo da vida. Respirei esta noite de terça-feira, mas ela só tinha cheiro de fumaça da sobaria que fica aqui na região. Talvez não fosse uma má ideia comer sobá, mas desanuvio a minha mente para focar em coisas práticas. Sem nuvens nos pensamentos, sem nuvens no céu. O vento é gelado e quando noto as estrelas, desacelero-me, vou devagar. Um poema do Leminski recém decorado me ocorre, chama-se Estrelas Fixas, pego-me quase sem perceber, recitando-o baixinho...



Aqui sentiram centenas
As penas que lhes convêm.

Sentindo cena por cena,
alguém lembrou de um poema
que lhe lembrava de alguém.

Rimas mil girem vertigens
sinto medos de existir. 
Estes versos existirem,
já não preciso sentir. 

     Nunca cansei de me surpreender com as pequenas mágicas, tal qual nunca me importei em desvendar grandes tramas. A minha alma quando calma, quase nunca se agita na mesma semana. Olhei para o firmamento e desisti de entender. Senti o passar do tempo e me senti envelhecer. O meu rosto mudou um pouco e meu tom de voz parece mais rouco. Ainda nunca fumei um cigarro comum, mas dou de ombros. Vou encontrar a libertação no gesto do primeiro cigarro no momento certo. É certo de que minha face outrora foi mais bela. Recordo-me dos vinte anos e de como não usei a minha beleza em meu favor. Matei o que costumam chamar de aventura, pois acreditava viver a maior das aventuras. Amor também acaba, sim, senhor! Quando chegar ao fim desta estrada, será preciso iniciar uma nova jornada, não fique estagnada, peço, por favor. Andei atrasando o relógio para ver se tudo voltava a parecer certo. Andei me sabotando para sentir que certas coisas ainda jaziam perto. Cheguei na farmácia, peguei os remédios e saí. Segurei a sacola como quem segura a vida. Forçando um falso temor de perdê-la, apliquei mais força do que precisava. Senti minha mão se tencionando e meus músculos todos reagindo ao emprego exagerado de força. Suspirei e aliviei a pressão. Quase rasguei a sacola plástica e não sei explicar a razão. É assim que é, pois é assim que é. Viver é abstenção em si mesmo? Sofri minhas dores e perdas em loops que pareciam infinitos. Demorei a encerrar um antigo amor, pois um dia se apresentou como o mais bonito. Até que entendi meu papel. Somos quem somos, mas ainda somos quem temos a expectativa de ser simultaneamente com a nossa ideia de nós mesmos nos outros. 
     Interrompo a minha caminhada e me apoio em uma árvore notável. Deve estar aqui há pelo menos vinte anos. Viverá até muito depois de minha morte, se não a forçarem para baixo. Observo a cidade e suas luzes. Um prédio próximo têm mais de suas janelas iluminadas. Olho-o por dois ou três minutos, mas ninguém se esgueira na janela para ver a noite enluarada. Anoiteço também, pois meu corpo lumia e vira breu em horários distintos. Sou tomado de ímpetos maus, vorazes e famintos. Força-se em mim uma vontade que posso derrotar: ataque, fira, machuque! Respiro fundo e posso me acalmar, essa agressividade não é nada que eu não eduque. Estava escrito hoje mesmo no livro qual ainda não encerrei a leitura "A bondade vem de dentro, 6655321. Bondade é algo que se escolhe. Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser um homem". Reflito, repenso-me, olho e enxergo. A vida é como é. Carros passam e eu fico. Lado a lado com fantasmas, eu finalmente me fixo. Talvez exista um lugar confortável para cada um de nós. Talvez um dia ouçam minha tão incompreendida voz. Apesar dos pesares e das dúvidas que pairam, eu agradeço por ter a opção de escolher. 

     Interlúdio. O criador de universos observa. A invernia se espalha pelos quatro cantos. O lobo uiva celebrando a sua solidão. É solitário, mas não se preocupa. Os fantasmas aparecem e somem. A confiança é um prato que se come frio. 

     Uma mulher se esconde bem, mas eu a enxergo. Enrolo-me com as palavras e ela também. Parece simpática aqui diante de mim. Capturo-a em memória. Pelo menos nesta lembrança, ela não pode atuar de maneira diferente. Não me aproximo mais, pois ela parece querer distância. Conheço esse jeito fugaz e felino. Arisca, ela permanece sozinha e acredita que esse é seu destino. Não se perdoa pelos erros que cometeu e nem percebe que a vida já engoliu tudo. Fui engolido também. A gente se levanta, vê? Tudo bem, tudo bem... Ela não sabe, mas eu já a vi outras vezes. Talvez ela nem se indague, porém, sou uma espécie de príncipe dos reveses, embora ninguém se reveze nunca comigo. Nunca deixo meu trono assim sou alvo fácil para ser atingido, mas não caio. Eu olho e vejo, mas desaprendi a agir. Talvez o único interesse cultivado seja o jamais tocado. Da primeira vez que a vi, completamente alheia ao mundo, certamente alguns nem a notaram. Contraponto dos brilhos mais brilhantes, discreta ela captou meus olhos ligeiros. Rio de mim. Sou uma espécie de piada sem fim. Derrotado em campos de batalha sem fim, eu fui o último da linha de frente a cair. Fracasso e não me esqueço. Humilde, eu agradeço pelas minhas lições. Foi assim que aprendi a tocar diversos corações. 

     Volto a caminhar. Chego em casa alguns minutos depois. O dia foi pesado. A raiva qual havia sentido mais cedo é agora mais fraca. Cônscio de mim, eu sei que preciso descansar. A fúria que me acometeu foi justa, mas a tristeza que fica depois do tumulto me pertence. Certos desgastes são inequivocamente individuais. Cumprimento meu cachorro tão cheio de energia ao me encontrar mais uma vez. Minha gata também me saúda. Volto até a janela. As estrelas não saíram do lugar. Estão fixas no céu como se pregadas em um mural. As pessoas não mudaram. Não estou surpreso. Todos valem meu tempo? As pessoas merecem tanta dedicação? Valem mesmo a pena? Eu ainda quero mudar o mundo agora. Será que ainda vou querer coisas melhores quando amanhecer amanhã? 

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