segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Manhãdrugada

     Não dormi e assim senti como se tivesse acordado cedo. Estranhamente não me senti pesado e nem minimamente cansado. Os picos de energia são malucos. Noite passada fiquei gastando palavras e tentando produzir um texto que eu julgasse razoável, mas falhei. Bati no teclado de maneira insistente, mas sem raiva, embora a cada minuto minha mente se frustrasse com a minha incapacidade. Já faz algum tempo que tenho me sentido assim, compreende? Finja que sim para possamos continuar. Os vizinhos que dormiram tarde muito provavelmente continuam dormindo, mas pelas quatro e tantas vi um homem em um apartamento e uma mulher em outro, apenas de relance, concentrados em não desperdiçar o tempo. Iam para lá e para cá, arrumando-se, mas desordenando a casa. Eles precisam estar prontos. A casa pode esperar. Olha, peço, enxergue-os e pela sensibilidade tente senti-los. Eu me acelerei por dentro e o sono que havia se dissipou. Mesmo às quatro e tantas aqueles dois já tinham um lugar para ir. Vê a beleza de não dormir, mesmo com a necessidade? Você pega um pouco mais da poesia que reside sutilmente apenas na alma da cidade. Acha que estou louco, não é? É óbvio que a alma da cidade é uma soma das almas de cada pessoa que nela vivem, assim, forma-se uma espécie de amálgama não humana feita por humanos, uma centelha do Universo bem presente no nosso cotidiano, uma união invisível das principais partes que transbordam aquilo de que somos formados. Todos personificados em uma unidade qual não se nota. Egrégora. 

     A cidade é perigosa, eles dizem, mas visto meu casaco e saio para dar uma volta. O horário não é favorável, mas com minhas mãos livres posso me sentir um pouco mais seguro, assim, agradeço por não ser fumante, embora me pareça improvável que o perigo queira tirar o cigarro das mãos de um cidadão. Penso nos fumantes, mas não fumo. Os grandes escritores eram confortáveis com a fumaça, eu, entretanto, não ligo. Mesmo na fumaça que não há, vejo-me ir para um lugar distante. Transporto-me para um passado de dias e estou no Mirante 9 de julho. Gosto do lugar e gosto das pessoas estranhas que ali me cercam. Seus sotaques paulistanos enchem meus ouvidos e eu pareço habituar-me mais rapidamente do que me pensei capaz. Não sinto vontade de conversar, mas talvez eu me derramasse se simplesmente me perguntassem. A paisagem urbana acelera meu coração. Sou eu mesmo o carro em alta velocidade e o piloto enfurecido simultaneamente. Feliz o suficiente para continuar acelerando, ainda que temeroso pela colisão. Nos picos de adrenalina desconsideramos as consequências para o dia seguinte. Volto à realidade com a aproximação de um pedinte. Quer um dinheiro qualquer para comprar coisas que se compram, mas não posso dar cobertores, pois não se cobrem e trocam por coisas que se vendem. Dou R$ 1,75, como não vou ajudar este que me pede se ajudei até o Wesley com R$ 1,25 para a cachaça? Pergunto para o velho como ele se chama, ele me olha por poucos segundos, inquieta-se e sai sem me responder. Sinto cheiro de fumaça, mas meus ouvidos escutam apenas pneus de carros e buzinas. Ainda existe audição em São Paulo?

     Olho apartamentos para alugar e penso que realmente devo morar aqui. Todo mundo nessa cidade parece ser mais duro e maduro e não sou piada por ser escritor ou poeta, pelo contrário. Eu juro que até param para me ler ou olham nos meus olhos, ainda que talvez eu olhe ainda mais dentro dos olhos deles. Meu objetivo de vida é mais importante que meu trabalho de hoje. "Seu olhar é muito fixo em mim e eu fico com vergonha", ouvi alguém dizer, mas mergulho na profusão de um mar profundamente verde ou castanho, esquecendo-me do que pretendia dizer. Bem, é preciso que vocês saibam, eu sou um mergulhador nato. Geralmente compreendo a natureza selvagem das coisas, quando essas coisas, perceba, lentamente se derramam em mim. Alguns estranhos por aí dizem que sou inspirador. Seco a umidade que há nos dias, ecos longo de poesias, sombra inconfundível de Amor. O amor que tanto duvidei nos últimos meses e transparecia na minha face cansada por meio de tantos reveses, que subia por um fracasso latente que não se mede. Isso tudo aí e eu ainda inspirando. Você vê como a vida pode ser louca. Você vê como a gente realmente nunca sabe a dimensão do nosso alcance. Os mortos me inspiram com grandes textos. Talvez alguns vivos se inspirem com algo que eu fiz. Ser cônscio e capaz disso é o que sempre quis. Daí vou como posso indo, descendo, chorando, subindo, sorrindo. Daí continuo como posso, inconsequente, responsável, prudente, afável, sempre num esforço contínuo que pesa meus ossos. O que não queremos admitir ou apenas o que não gostamos de admitir, é que às vezes escolhemos, entenda, permitimos o que fazem conosco. Não são os outros, mas sim nós mesmos. É fácil ser refém de um sentimento e depois dizer que não teve saída, ainda que estejamos no absoluto controle de nossas vidas. Às vezes pego uma pedra do chão e levo para casa só para sentir que não sou obrigado a fazer tudo sempre igual. Às vezes passo um dia inteiro sem dormir só para me sentir um pouquinho mais especial. Trabalho e sigo firme. Escrevo e sigo acreditando. Passou-se a noite, a manhã, a tarde, outra noite, adentrei a madrugada e é quase manhã de novo. Estou aqui pensando em fritar um ovo, pois agora senti fome. O chocolate amargo não pode mais me alimentar e nem a água mata minha sede. Que é que um dia finda a solidão que me arremete? Gargalho alto com uma piada antiga. Permito-me sonhar. Insisto em realizar. É um tempo estranho no céu de São Paulo. O limite entre a madrugada e manhã. Quantos conhecem essas manhãdrugadas? São perfeitas para o meu coração.

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