quarta-feira, 18 de setembro de 2019

O morador de rua

      O morador de rua levanta e caminha. Às vezes ele passa a noite inteira em marcha, passo ante passo, buscando se afastar das coisas quais ele não quer que se aproximem. Ele discretamente lê as capas de jornais. Outrora ele fora alfabetizado, mas esconde essa capacidade. Talvez os outros que dividem a rua com ele se sentissem enraivecidos. É melhor se fazer ignorante. Quando se recorda da vida de antes ele sempre sente vontade de se embriagar. É melhor ser um ignorante. O morador de rua segue caminhando ao longe e só vai parar com o nascer do sol. A melhor hora para se distanciar é nas quartas e quintas de noite durante os jogos de futebol. Quando os perigos se afastam é que seu coração desacelera um pouco. Ele foi assaltado, espancado e humilhado por tantas vezes que perdeu a conta. Ele não quer ser ferido hoje.

     O morador de rua acorda com um chute no abdome. O policial fala qualquer besteira de maneira vil e diz que ele está dormindo em local proibido. O homem concorda com a cabeça, embora ainda tenha lucidez o bastante para saber que poderia muito bem dormir ali. Devagar ele se levanta e passa por quem não quer passar por ele. Evitam o contato de sua pele como se ele fosse excessivamente sujo ou simplesmente contagioso. Agora ele não chora mais. Não há Deus que o salve da miséria. Sonhos e esperanças agora se misturam com a pilhéria que nem deveria haver. Mas quando o mundo se torna ainda mais triste ele reza para os deuses que o esqueceram, pois deseja que chegue logo o amanhecer. Recorda-se de outros tempos, mas desanuvia a cabeça com rapidez. Não adianta perder tempo pensando naquilo que nunca se fez e nem naquilo que foi feito e nunca mais irá mudar. Alguns velhotes passam realmente tristes e sorumbáticos. O morador de rua identifica em seus olhos uma espécie de lamentação que persiste, ainda que não seja algo enfático. Os idosos são silenciosos em suas dores, pois mais da metade de seus amores já partiram. Os moradores de ruas se solidarizam, ainda que ninguém se solidarize com eles. Travam discussões ferozes pela proteção de um cão abandonado. Dividem sua refeição com um bicho que geralmente deixam de lado.

     O morador de rua não corresponde ao seu arquétipo estereotipado. Há um universo ali mesmo que você nunca tenha imaginado. Um dia ele nasceu e era um bebê exatamente como você foi. Talvez ele tenha sido alfabetizado ou talvez não, mas isso não torna ele criatura vil e sem coração. O morador de rua anda em frente por haver gente que gostaria de machucá-lo. Você não precisa dividir sempre o seu fardo, mas será covarde se evitar notá-lo. O morador de rua parece um fantasma ambulante errando por aí e aqui assim tão de repente. Às vezes não notamos, mas o morador de rua também é gente. Eu sei que agora vou dormir e no meu sono vou me indagar sobre alcances, relances, rompantes, crises, reviravoltas e romances. Lá fora um mendigo pode ser espancado e estamos separados por centenas de planetas ou apenas seis quadras, mas estamos universos distantes. 

     Agora certamente vou me distanciar. Nunca desvio meus olhos e me dói não fazer nada por quem vive em necessidade. Após retornar da sexta estação vou me debruçar de corpo e coração pelas pessoas dessa cidade. Quem sabe o mundo não seria melhor com menos vaidade? Acredite em si. Ajude a quem puder... Coragem! Às vezes um morador de rua só precisa de um pouco de atenção. Há coisa mais triste do que alguém que não saiba aproveitar qualquer estação?

   Lá vai ele
Vai como vai
Seu porte
possui requinte
Seu rosto marca
a sombra da morte
Codinome pedinte
Um dia ele teve nome
E até apelido
Agora é alma penada que some
Muitas vezes chamado de bandido
Mas bandido é quem rouba e mata
Ele era só um tranquilo mendigo
Daqueles que juntava latas
Discreto tipo de amigo
O morador de rua está com fome
Chora por moedas e
uma velha lhe diz: "some"
E eu o segui quando ele sumiu
Estendeu um lençol esfarrapado
E de repente dormiu
O sono marca o descanso
E eu preciso me deitar também
Os velhos estão entristecidos
com o fim da juventude.

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