domingo, 1 de setembro de 2019

Palavras que não encerram nada - Manhã de domingo

     Acordo e confiro o relógio do celular. O marcador mostra 7h19, mas pela cor do céu concluo que a atualização de software novamente bagunçou o contador de horas. São 5h19. Vou ao banheiro, mijo, lavo minhas mãos, saio e pego meu celular no quarto. Vou até a maior janela do apartamento. É um ritual em dias mortos essa aproximação do janelão. Garoa. O cachorro me segue. A gata também. Reflito que quase sempre eles se esforçam para equiparar suas rotinas com a minha. Vejo nisso um amor perfeito, totalmente livre de vícios. Movem-se até a sala e se prostram próximos, ainda que seja apenas para dormirem outra vez perto de mim. Contemplo a minha cidade e meus olhos descansam a tristeza que sinto na paisagem lúgubre que vejo. É algo que reparo em mim desde a infância. Quando estou triste e encontro algo ainda mais melancólico do que eu, admito sentir uma espécie de conforto no desconforto, empatia para com as nuvens, como se algo maior equilibrasse internamente o que visivelmente se desequilibra por fora. A vida é composta de oscilações e existimos essencialmente e com maior peso nesses intervalos para respirar. É o momento de fazer uma pausa. 
     Noite passada me esqueci de respirar. Francamente irritado, sem motivos, eu resolvi que era melhor cumprir com um capricho meu do que deixar de cumpri-lo. Vi-me em seguida numa situação constrangedora, mas pelo menos mantive meu recorde de nunca ter sido rejeitado por cães. Venci meu instinto de abraçar o animal. Perdi para meu outro instinto de fazer o que não fiz. Pouco antes disso, o que não era meu foi devolvido e me senti melhor assim. Quem dera fossem as pessoas simples como os cães. A expectativa de quem imagina como sou faz a vilania da minha imagem. Gente que não faz ideia de como sou é dotada de uma certeza arrogante de me conhecer. Tenho sido sensacional. Tenho sido um derrotado. Todos são tão ridículos quanto eu. 

     Descongelo. Apenas alguns segundos se passaram na vida real e minha mente funciona sem parar, ainda que meus olhos contemplem sossegadamente o horizonte. Tiro cinco ou seis fotos com o meu celular e me sinto honestamente feliz pela praticidade da câmera rápida. Coloco-as nas redes sociais, pois estão bonitas e já é costume meu. Há pouca gente acordada para observar o mesmo céu que eu vejo. A beleza deve ser compartilhada. Tive dois sonhos na última noite e nenhum tinha qualquer elemento de terror, mas acordei com o gosto dos pesadelos na boca, como se eu mesmo tivesse experienciado algo indescritivelmente ruim. A cidade me acalma. A chuva me conforta. Sou afagado por uma brisa ululante e gelada. Respiro fundo. Vejo tudo o que não me vê. Não idealizo. Toda pessoa é singular, ainda que muitos não reconheçam em si o privilégio. Respiro fundo mais uma vez. Sinto um alívio de alma, uma desobrigação quanto ao resto. O dever pesa em meus ossos. Tenho a obrigação de fazer o meu melhor incessantemente. Sinto-me extasiado, pois outra vez me sinto absolutamente no lugar certo. Escreverei até que meus dedos doam. A dor pelo dedo indicador cortado é amortecida com marteladas no teclado. Preciso escrever. 

     O Goomba sorri ao meu lado sentado em um livro de Fernando Pessoa que está no topo de uma torre literária. Há duas pilhas de livros no meu quarto. Contei vinte e sete livros somando cada pilha e todos estão completamente fora do lugar. Ainda assim me ofertam uma sensação estranha de paz. Aceito-a. Não sinto necessidade de colocá-los nas prateleiras já lotadas e nem sei se tenho mesmo local apropriado para guardá-los, assim, que fiquem ao meu lado, fitando-me, pressionando-me, para que eu seja capaz de publicar os meus próprios. King, Leminski, Rubem Braga, Wilde, Borges, Poe... todos e mais alguns me cercam, entretanto, não me ensombram. Tenho mais vontade de escrever do que ler, mas se nem sei qual é o meu tema, se me perco tanto assim, eu devo me consternar sobre o que há de errado comigo? É estranho, pois a maioria possui a praticidade do agir e deixa a desejar no conteúdo. Quanto aos meus sonhos, eu deveria estar adiantado, certo? Tenho mais de seiscentos textos e pelo menos duas vintenas são bons o bastante. Tenho três livros prontos e outros tantos em andamento. O que é que me emperra então? Outro dia "venci" um desafio impossível. Deslizei com perfeição, acertei frases perfeitas, dialoguei com desconhecidos com a facilidade de respirar em um dia perfeito. Ultimamente, porém, eu só me questiono sobre como tenho sido a personificação de um fracasso notável. Busco ser atingido na minha parte mais vulnerável? Tenho medo de acertar e conseguir uma vida mais feliz e estável? Alguém compreende essa minha necessidade de ser tão afável?

     Não me explico, pois sinto que não tenho explicação. Às vezes tento, mas geralmente desisto. Nunca insisto. Cada um enxerga aquilo que quer. Vejo seres humanos além de sua beleza física e de seu conteúdo emocional. Romantizam-se tal qual eu me romantizo (às vezes) também. Criam uma espécie de personagem e se enfurecem pelo fato de que a maioria é incapaz de ver além do superficial, mas quando há qualquer chance esperançosa, forçam-se no sentido oposto, fugindo do que mais dizem querer. Refreio-me na maior parte do tempo, mas hoje sou capaz de dizer o que concluí. Todo mundo possui um medo imenso de si mesmo. Todo mundo se escraviza e se mata por uma ideia de felicidade, restringindo-se de todos os jeitos possíveis. Idealizar a felicidade é uma estupidez sem fim, pois há milhões de maneiras imprevisíveis de sermos realmente felizes. O tempo, entretanto, atropela a tudo e todos. Chega como um caminhão desgovernado, ignorando nossos descansos e se fazendo valer. Se o tempo é inevitável e inevitavelmente perderemos a luta, qual será a melhor maneira de aproveitá-lo? Sempre tive uma noção grande do meu potencial agressivo, dominei minhas maldades. Outrora personifiquei a fúria para fazer o que ninguém queria fazer. Sujei minhas mãos. Fui feio e rude, mas justo. Hoje sou tranquilo, mas preso dentro desse estado soporífero, às vezes, concedo-me ao ceder, permito-me sentir raiva e irritação. O que me impede de buscar o que realmente quero? Nada. Busco ser um escritor de livros, busco alguém que me faça acreditar no Amor, ainda que seja um amor diferente do qual vivi ou idealizei. Busco alguém com quem possa silenciar junto sem sentir desconforto. Por que às vezes sinto que deveria sentir vergonha de pensar assim? A revelação do óbvio é tão chocante quanto a ocultação do que aterroriza? A gente deveria se envergonhar de querer aquilo que a gente acha que precisa? 

     Não atinjo todos os meus objetivos. Meus textos de ódio já despertaram admiração alheia. Meus textos de amor já despertaram uma raiva crescente que se incendeia. Talvez eu não transmita a mensagem exata, mas o que me mata é ver toda essa gente que escolhe perder. A gente se esforça, mas nunca evita o crescimento. A gente muda a cada momento. Não obstante, brinco bastante, mas não posso andar para trás. Não andaria ainda que pudesse. É domingo. Ainda chove e eu preciso comer, assistir ao jogo junto com meus amigos e depois jogar RPG junto com outros. Aproveito minhas partes. Amadureço. Cresço. Nunca me esqueço. Não serei mais covarde. Prometi solenemente olhando no espelho. Não posso me desperdiçar. No meu peito ainda ecoa o fim do mundo, a solidão das solidões na qual reino. Não há plateia para meus próximos espetáculos. Ainda assim preciso ser majestoso. É domingo e aguardei a chuva até que chovesse. Choveu. Lembro-me das palavras que um amigo disse, ainda frescas na memória: é hora de se arriscar e deixar a zona de mediocridade. Não tenho medo de falhar. Meus receios são outros e posso muito bem esmagá-los. É hora de agir. A mudança do mundo começa pela mudança em mim. 

     É tempo de sair do eixo? Acertar o costume e o comodismo com golpes precisos de impacto? Chegou, enfim, a hora de sacudir o mundo? 

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